Quando se pensa em Brasil Colônia, a ideia recorrente é de uma sociedade dual formada por uma elite senhorial branca, poderosa e detentora de terras e escravos, e uma numerosa camada de africanos e indígenas escravizados. Apesar da historiografia, desde a década de 1980, ter revisto esse estereótipo, ele ainda é reproduzido no ensino de História.
Para desconstruir essa visão e apresentar outras nuances da sociedade no Brasil colonial, propomos um trabalho, com os alunos, de interpretar e comparar duas pranchas de Debret: Uma senhora de algumas posses e Família pobre. Ambas retratam, segundo o olhar do artista francês, duas famílias brancas à margem daquela visão estereotipada: a primeira, de poucas posses, e a segunda, vivendo miseravelmente. As duas imagens retratam uma cena doméstica em que mulheres, senhoras brancas e negras escravizadas, exercem o trabalho feminino por excelência: costurar, cuidar da casa e dos filhos.
Aos alunos do fundamental, sugerimos, como atividade completar acompanhando a leitura iconográfica, colorir uma das pranchas. Além do aspecto lúdico, a atividade dirige o olhar do aluno para os elementos que compõem a cena, refinando a leitura interpretativa da imagem.
- BNCC: 8° ano. Habilidades: EF08HI12, EF08HI14, EF08HI19, EF08HI20
Este artigo remete para atividades no site Stud História. Veja no final.
Debret: o artista e sua obra
Jean-Baptiste Debret (1768-1868) veio ao Brasil em 1816, já maduro, com 48 anos, a convite de D. João VI, como integrante da missão francesa. Era membro de uma família burguesa francesa culta e esclarecida. Pintor da corte de Napoleão Bonaparte, decidiu deixar a França quando o imperador perdeu o poder.
No Brasil, Debret foi o pintor oficial da família real para quem executou retratos, telas históricas, pinturas murais, quadros religiosos e alegorias. Registrou, também, em suas telas e aquarelas sobre papel, os costumes, usos e paisagens da cidade do Rio de Janeiro. Escreveu textos descritivos explicando suas litografias, fornecendo informações sobre aspectos sociais, econômicos, políticos e geográficos. Este vasto material compõe um documento histórico de importância capital para a recriação da realidade brasileira na primeira metade do século XIX.
Em 1831, Debret regressou à França onde, três anos depois, publicou Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, 1816-1831, coleção composta de três volumes com um total de 156 estampas acompanhadas de suas explicações.
As mulheres brasileiras à época de Debret
Debret comenta em seu diário que as mulheres brasileiras não recebiam educação o que as impedia de se comunicarem com os estrangeiros e a se manterem “isoladas na escravidão de seus hábitos rotineiros”. De fato, como lembra Mary del Priore: “As mulheres (senhoras e sinhás) pouco saíam de suas casas, empregando seu tempo em bordados e costuras, ou no preparo de bolos e frutas em conserva. Eram chamadas de ‘minha senhora’, pelos maridos” (PRIORE, 2016, p. 350).
Apenas algumas mulheres da elite conseguiam estudar através de professoras particulares contratadas pelos pais para dar aula em suas próprias casas. Escolas eram raras, praticamente só nas capitais e em número maior para meninos. Foi somente em 1827 que foi criada legislação determinando que houvesse “escolas de primeiras letras” em todas as cidades, vilas e lugarejos mais populosos do Império. Essas escolas consistiam em ensinar a ler e escrever e instruir sobre as quatro operações. Mas a lei pouco efeito teve já que numa sociedade escravocrata e predominantemente rural, não interessava aos poderosos locais que a população tivesse acesso ao ensino.
As filhas de famílias abastadas, além de aprender a ler e a escrever, tinham aulas de piano e de francês que eram ministradas em suas próprias casas por professoras particulares ou em escolas religiosas. A essa educação, acrescentavam-se “habilidades com a agulha, os bordados, as rendas, as habilidades culinárias, bem como as habilidades de mando das criadas e serviçais” (LOURO, 2004, p. 446). Quanto às meninas das camadas populares, a educação escolarizada era deixada de lado devendo se dedicar ao trabalho doméstico, da roça e aos cuidados com irmãos menores. As órfãs eram, em geral, educadas por ordens religiosas femininas, que tinham a intenção de preservá-las de qualquer vício e do “mau caminho”.
As aquarelas de Debret permitem observar o modo de vida doméstico de duas mulheres em situações econômicas opostas: uma relativamente rica e outra miserável. Ambas são servidas por escravas e ambas realizam o característico trabalho feminino. A observação dos componentes de cada cena informa outras diferenças e semelhanças entre as imagens: espaço físico, mobiliário, trajes, atividades simultâneas e a presença de outros personagens na cena.
Segue abaixo a descrição feita por Debret de suas aquarelas.
Uma senhora de algumas posses em sua casa
“Tentei captar essa solidão habitual desenhando uma mãe de família, de pequenas posses, em seu lar onde a encontramos sentada, como de hábito, sobre sua marquesa (…) lugar que serve, de dia, como sofá fresco e cômodo em um país quente, para descansar o dia inteiro, sentada sobre as pernas, à maneira asiática.
Imediatamente ao seu lado e bem ao seu alcance se encontra o gongá (paneiro) destinado a conter os trabalhos de costura; entreaberto, deixa à mostra, a extremidade do chicote enorme feito inteiramente de couro, instrumento de castigo com o qual os senhores ameaçam seus escravos a toda hora.
Do mesmo lado, um pequeno mico-leão, preso por sua corrente a um dos encostos desse móvel, serve de inocente distração à sua dona (…). A criada de quarto, mulata, trabalha sentada no chão aos pés da madame – a senhora. É reconhecido o luxo e as prerrogativas dessa primeira escrava pelo comprimento de seus cabelos cardados, (…) penteado sem gosto e característico do escravo de uma casa pouco opulenta.
A menina no centro, à direita, pouco letrada, embora já crescida, conserva a mesma atitude de sua mãe, mas sentada numa cadeira bem menos cômoda, e esforça-se por ler as primeiras letras do alfabeto traçadas sobre um pedaço de papel.
À direita, outra escrava, cujos cabelos cortados muito rentes revelam seu nível inferior. Avança do mesmo lado um moleque com um enorme copo de água, bebida frequentemente solicitada durante o dia para acalmar a sede devido ao abuso de alimentos apimentados. Os dois negrinhos, apenas na idade de engatinhar, que gozam, no quarto da dona da casa, dos privilégios do mico-leão, experimentam suas forças na esteira da criada”. (DEBRET, 1971)
Uma família pobre em sua casa
“Observa-se uma família caída da opulência ao último grau de pobreza pelas desgraças sucessivas. Sempre com o escravo mais velho, ainda válido, permanecendo sozinho junto aos seus senhores, provendo-lhes os últimos socorros de suas forças quase esgotadas.
O homem rico, no Brasil, como em outros lugares, ao primeiro revés da fortuna, suprime seus criados de luxo; supressão esta fácil e eficiente, pois os escravos, se inteligentes e de bom físico, se vendem caríssimo. Esgotado esse recurso (…) o senhor se vê constrangido a livrar-se até dos seus escravos mais velhos, concedendo-lhes a liberdade tardia que os reduz a mendigos. Mas, o negro menos caduco fica para servir seus senhores e a estes obedece até morrerem.
(…) O desenho representa o interior de uma casa de uma viúva pobre, deixada só, com sua filha e uma velha negra (…). O interior da casa da pobre viúva compõe-se de duas peças (ambientes) de tamanhos diferentes. A menor, representada ao fundo, servia de cozinha, a julgar pelo seu fogão, hoje inútil; a maior, a única habitada, tem sobre seu chão úmido um estrado velho e quase podre, sobre o qual está sentada a velha mãe, ocupada em fiar algodão, último recurso adequado à sua idade.
O estrado serve, de noite, de leito para a negra que nele estende sua esteira. A rede, suspensa durante o dia para não impedir a passagem, é descida à noite, para servir de leito comum às duas senhoras.
O resto da mobília se restringe a um grande pote quebrado, utilizado para a água, e uma lâmpada de lata, muito ordinária [fixada na parede, atrás da velha].
No primeiro plano, a moça ainda na flor da idade, sentada numa esteira, fabrica renda com a qual se veste. A negra velha, útil companheira de infortúnio, com seu barril sobre a cabeça, passa o dia todo como carregadora de água nas ruas da cidade para trazer às suas senhoras, a cada noite, de 6 a 8 vinténs, com os quais devem viver essas três pessoas.
Escolhi para este desenho, o momento do regresso da negra, que está entregando à sua senhora, o lucro do dia, do qual retirou o necessário para comprar uma penca de bananas destinada à ceia frugal de todos os habitantes da casa.
Algumas galinhas de diferentes raças, criadas em liberdade dentro e fora da casa, alimentam-se de insetos, tão abundantes no Brasil. Elas servem de especulação lucrativa, pois oferecendo-as como presentes a seus protetores provocam gestos generosos nos dias de festas importantes”. (DEBRET, 1971)
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Fonte
- DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, 1816-1831. São Paulo: Melhoramentos, 1971.
- BANDEIRA, Julio & LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil. Obra completa. Rio de Janeiro: Capivara, 2008.
FARIA, Sheila de Castro Faria. Mulheres. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. - LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
- SANTOS, Vania da Silva Fontes & OLIVEIRA, Maria da Piedade Santos. A educação da mulher no século XIX. Web Artigos.
- SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. Dicionário do Brasil Joanino (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
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