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Esperança Garcia, a escrava que escreveu uma petição ao governador

8 de março de 2022

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No dia 6 de setembro de 1770, no interior do Piauí, uma escrava jovem, de 19 anos de idade, escreveu, de próprio punho, uma carta para o presidente da província de São José do Piauí, denunciando os maus tratos e reivindicando o que lhe era direito. A carta era assinada por Esperança Garcia.

Duzentos anos depois, uma cópia da carta foi descoberta pelo historiador Luiz Mott, no Arquivo Público do Piauí, quando realizava sua pesquisa de mestrado, em 1979. É o mais antigo documento conhecido de reivindicação de uma mulher negra e escravizada a uma autoridade no Brasil.

Quem foi Esperança Garcia

Esperança Garcia nasceu na fazenda Algodões, região próxima a Oeiras, a 300 quilômetros da futura capital, Teresina. A fazenda pertencia aos jesuítas e é possível que eles tenham ensinado Esperança a ler e a escrever português. Não era uma coisa comum no Brasil colonial. Era proibida a leitura para escravo; quem fosse visto ensinando escravo a ler era preso e processado.

Quando os jesuítas foram expulsos do Piauí em 1760, Esperança tinha apenas 9 anos de idade. A fazenda foi incorporada à Coroa e passou a ser administrada pelo capitão Antônio Vieira do Couto. Tempos depois, já adulta e casada, Esperança Garcia foi separada do marido e filhos e levada para outra propriedade onde trabalharia como cozinheira para o capitão Antônio Vieira de Couto.

Longe da família e sofrendo maus-tratos, ela usou a escrita para reivindicar uma vida com dignidade e que fossem respeitadas as precárias leis concedidas aos escravos. Denunciou seu feitor dos abusos físicos cometidos contra ela e seu filho pequeno. A carta foi enviada para Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, presidente da Província de São José do Piauí, cargo equivalente a governador do Piauí.

A carta de Esperança Garcia ao governador

Carta de Esperança Garcia, de 6 de setembro de 1770, e sua assinatura (detalhe).

Carta na grafia original (1770)

“Eu Sou hua escrava de V.S administração do Cap.am Antoº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am pª Lá foi administrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella passo mto mal.
A primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo huã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço esplicar q Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar.
Pello ã Peço a V.S pello amor de Ds e do Seu Valim ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

Transcrição da carta em português atual (tradução livre)

“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha os olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

O destino da carta

Esperança tinha 19 anos quando escreveu a carta. Não se sabe se a carta foi respondida. Depois disso, Esperança fugiu e ficou desaparecida. Talvez tenha retornado à fazenda Algodões, onde vivia.

Seu nome só reapareceu em documentos datados de 1778 que apresentam uma relação de escravizados daquela fazenda onde é mencionado o casal Esperança e Ignacio, ela com 27 anos, ele 57.

Como a carta é reconhecida hoje

Ao escrever a carta, Esperança Garcia tinha consciência do seu mundo e se reconhecia como membro de uma comunidade política. Conhecia os limites da escravidão e poderia ter usado outras estratégias de resistência, mais comuns no período, como a fuga para um quilombo, o suicídio ou mesmo o assassinato.

Ao invés disso, Esperança reivindica aquilo que lhe era de direito, segundo as leis da época. Fala em nome próprio e de outras mulheres que também sofriam maus-tratos. Utilizou as obrigações religiosas (o batismo e a confissão) como argumentos estratégicos para sensibilizar seus superiores.

Em termos formais, a carta escrita por Esperança atende aos elementos jurídicos essenciais de uma petição: endereçamento, identificação, narrativa dos fatos, fundamento no direito e pedido.

Além de uma notificação de denúncia, a carta traz um pedido de proteção do Estado, como um Habeas Corpus: “ponha os olhos em mim”. O documento é reconhecido como expressão do exercício da advocacia em nome próprio e de outras mulheres. Por isso, em 5 de setembro de 2017, a Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Piauí, concedeu a Esperança Garcia o título simbólico de Primeira Mulher Advogada do Piauí. Há reivindicações de juristas e advogadas negras para um reconhecimento também da OAB Nacional.

“When the Slave Esperança Garcia Wrote a Letter”, edição em inglês, de Sonia Rosa, ilustrações de Luciana Justiniani Hees, Groundwood Books, 2015.

“When the Slave Esperança Garcia Wrote a Letter”, edição em inglês, de Sonia Rosa, ilustrações de Luciana Justiniani Hees, Groundwood Books, 2015.

Trabalhando a carta em sala de aula

ACESSE

Fonte

  • SHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (orgs.). Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
  • MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrônio Portella. 1985.
  • Instituto Esperança Garcia.
  • ROSA, Sônia. Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta. Ilustrações de Luciana Justiniani Hees, Rio de Janeiro: Pallas.

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