Ruby Bridges, uma menina negra de 6 anos de idade caminha para a escola escoltada por quatro agentes federais enviados pelo presidente Eisenhower para protegê-la. A volta deles, uma multidão de brancos de todas as idades protestam com ameaças, xingamentos e cartazes com frases ofensivas. O episódio ocorreu no dia 14 de novembro de 1960 em Nova Orleans, Luisiana, Estados Unidos
Contexto histórico: segregação e movimento negro
O racismo e a discriminação étnica nos Estados Unidos intensificaram com a Guerra Civil (1861-1865) e chegaram à década de 1950 com leis, práticas e ações discriminatórias contra a população americana de ascendência africana, indígena e asiática. Os americanos de ascendência europeia (brancos, portanto) desfrutavam de vantagens em questões de cidadania, processo penal, educação, imigração, aquisição de terras e direito ao voto.
Neste contexto racista, cresceram as ações violentas da Ku Klux Klan, fundada em 1865, foram aprovadas leis estaduais segregacionistas, conhecidas como Jim Crow e, por causa delas, Rosa Parks foi presa em 1955.
Em 1905, ativistas pelos direitos civis aos negros criaram a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (National Association for the Advancement of Colored People – NAACP) que combateu em duas frentes: na educação e em questões judiciais. Em 1955, a NAACP era a maior organização de defesa dos direitos civis no mundo possuindo com meio milhão de sócios. Foi nesse ano que ocorreu a prisão de Rosa Park, uma costureira que participava como secretária na NAACP, por recusar-se a obedecer à ordem de segregação racial num ônibus da cidade de Montgomery, no Alabama. Sua prisão motivou um amplo movimento de boicote aos ônibus durante um ano causando enormes prejuízos ao sistema de transporte público da cidade.
A menina Ruby Bridges nasceu em meio ao movimento dos Direitos Civis. No ano de seu nascimento, 1954, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que as leis estaduais de segregação racial em escolas públicas violavam a 14ª Emenda da Constituição. Eram, portanto, inconstitucionais. A decisão unânime da Corte foi uma grande vitória do movimento pelos direitos civis e abriu caminho para a integração racial no ambiente escolar.

A segregação educacional, isto é, a escolas públicas separadas para estudantes brancos e pretos, foi a política adotada por boa parte dos governos estaduais dos Estados Unidos (em vermelho e azul) por praticamente um século.
A difícil integração racial
Os estados do sul (em vermelho no mapa acima) resistiram fortemente à decisão da Suprema Corte que deu um prazo de seis anos para a integração racial. Próximo a esse prazo, menos de 2% das escolas do sul haviam sido integradas. Ocorreram protestos e violência em muitos locais. Em 1957, tropas federais foram enviadas a Little Rock, em Arkansas, para escoltar nove estudantes negros do Ensino Médio impedidos de entrar na escola por estudantes brancos e suas famílias.
Em Nova Orleans, o Conselho Escolar estabeleceu um exame de admissão aos alunos da cidade. Os testes eram propositadamente difíceis, com a intenção de dificultar ou impedir a matrícula de crianças negras em escolas brancas. Dos 135 alunos que concorreram, só seis foram aprovados. Ruby Bridges, porém, com 6 anos de idade, passou no teste que a habilitava frequentar a Escola Primária William Frantz, até então exclusiva para brancos.
O pai de Ruby inicialmente relutou, prevendo a confusão que ocorreria, mas sua mãe sentiu que a mudança era necessária não apenas para oferecer à sua filha uma educação melhor, mas para “dar este passo a frente… para todas as crianças afro-americanas”. A mulher finalmente convenceu o marido a deixar a filha ir para a escola.
A família de Ruby, contudo, sofreu represálias. O pai perdeu o emprego no posto de gasolina apenas porque a filha passou nos testes. Os donos do mercado onde habitualmente a família fazia suas compras, disseram-lhe para não voltar mais à loja. Seus avós, que viviam no Mississipi, foram expulsos das terras onde trabalhavam há 25 anos como rendeiros porque a neta ousou frequentar uma escola de brancos.
Ruby vai para a escola e a cidade se enfurece
As aulas começavam em setembro, mas os deputados de Luisiana encontraram maneiras de impedir a execução da ordem judicial federal e atrasar o processo de integração. Depois de esgotar todas as táticas de protelação, a Câmara teve que ceder, e as escolas designadas seriam integradas em novembro.
O clima na cidade de Nova Orleans era tenso, as famílias brancas combinavam boicotar Ruby. Ela era a primeira aluna negra a ter aulas num local até então exclusivo dos brancos. A NAACP, a comunidade de defesa da população negra, deu suporte aos pais de Ruby: como a mãe ficaria junto à filha nos primeiros dias de aula, a associação cuidou das crianças mais novas (Ruby era a primogênita) além de vigiar e proteger a casa da família. O Presidente Eisenhower enviou quatro agentes federais para proteger Ruby no percurso de ida para a escola e volta para casa, dois caminhariam à frente de Ruby e dois atrás dela.
O primeiro dia de aula de Ruby foi na segunda-feira, 14 de novembro de 1960. Os pais brancos tiraram seus filhos da escola e todos os professores se recusaram a lecionar enquanto uma criança negra estivesse matriculada. Apenas uma professora concordou ensinar Ruby – Barbara Henry, de Boston que há dois meses mudara-se para Nova Orleans.
Durante um ano, Barbara foi a única professora de uma turma de uma única aluna. A menina estranhou a princípio, pois nunca tivera uma professora branca. Hoje recorda-a como a melhor professora que teve na vida. Professora e aluna não faltaram um dia sequer.
No primeiro dia nem houve aulas, com Ruby e sua mãe refugiadas na sala da diretora. O caos na escola e nas ruas impediu que elas fossem para a sala de aula.

Ruby Bridges chegando à Escola Primária William Frantz escoltada por quatro agentes federais enquanto policiais a aguardam na entrada.

Na saída da escola, Ruby Bridges é novamente escoltada até sua casa. A faixa no braço dos agentes informa “U.S.Marschals Service”, uma agência de aplicação da lei e um órgão de polícia federal dos Estados Unidos, pertencente ao Departamento de Justiça.
Uma cidade racista em fúria
Protestos e tumultos tomaram conta das ruas próximas à Escola Primária William Frantz onde Ruby estava matriculada. Por todo lado ouviam-se gritos de Go home, nigger! e No nigger allowed here! (“Volta pra casa, crioulo!”, “Negro não é permitido aqui!”). Oo termo nigger, nos Estados Unidos, tem forte conotação pejorativa, considerado insulto racial mais ofensivo, depreciativo e carregado de ódio.
Um político local racista incitava as famílias brancas gritando: Don’t wait for your daughter to be raped by these Congolese! Do something about it now! (“Não espere que sua filha seja estuprada por esses congoleses! Faça alguma coisa agora!”
Mulheres erguiam cartazes com frases como Integration is a Mortal Sin (“Integração é Pecado Mortal”) e Race Mixing is Communism (“Mistura racial é Comunismo”). Veja as fotos a seguir. Estudantes mais velhos entoavam hinos como Glory, glory, segregation, the South will rise again (“Glória, glória, segregação, o Sul ressurgirá”).

“Integration is a Mortal Sin” (Integração é Pecado Mortal) – racismo e dogmas religiosos se misturavam e mobilizavam cristãos brancos contra negros

“We want to keep our school white” (Queremos manter nossa escola branca) – cartazes como este e outros (veja ao fundo) inundaram as ruas por onde Ruby Bridges passava a caminho da escola.

“Race mixing is Communism” (Mistura racial é comunismo) – o racismo a serviço da ideologia anticomunista da Guerra Fria.
As ameaças à vida de Ruby
A conselho da mãe, Ruby rezava a caminho da escola. Caminhava sem olhar para os lados, entre gritos e impropérios. Anos depois, um ex-membro dos U.S. Marshals comentou: “Ela nunca chorou, nunca choramingou. Seguindo o seu caminho, marchava em frente como um pequeno soldado. Todos tínhamos muito orgulho dela”.
Em sua autobiografia, Through My Eyes, Ruby relata que, por algum tempo, não entendia que as manifestações eram contra ela. Recordava-se dos gritos e dos objetos que a multidão arremessava, porém o que mais a assustou foi ver uma boneca vestida de preto dentro de um caixão fúnebre. A macabra mensagem causou-lhe pavor. No mesmo grupo hostil, uma mulher ameaçou-a de envenenamento. Isso levou os agentes a determinarem que a menina só poderia comer o que trouxesse de casa.

A boneca vestida de preto em um caixão funerário foi a visão mais aterrorizante para Ruby Bridges.
Ruby nada sabia sobre segregação racial ou discriminação até o dia que um menino lhe disse na cara: “Não posso brincar com você. A minha mãe proibiu porque você é preta”. Ela comenta em sua autobiografia: “Nesse momento, tudo fez sentido para mim”. Compreendeu, finalmente, que tudo o que passou devia-se ao fato de ser negra. Não guardou rancor do colega de escola, pois também ela, segundo diz, teria cumprido as ordens da sua mãe se esta a tivesse proibido de brincar com alguém.
A solitária vida escolar de Ruby
Alguns pais mantiveram seus filhos na escola, apesar dos protestos e dos tumultos. Ruby, porém, continuou a ter aulas sozinha. Não comia na cantina, não saía para o recreio, não brincava com outras crianças. A professora comia com ela na sala de aula e a entretinha com jogos no intervalo. Quando precisava ir ao banheiro, a professora ou os agentes federais a acompanhavam pelo corredor.
Entre as crianças que foram à escola estava Pam, a primeira menina branca que brincou com Ruby. O pai de Pam, Lloyd Foreman, um pastor metodista de 24 anos, passou a ser o alvo dos protestos da vizinhança branca.
No primeiro ano escolar, o psiquiatra infantil Robert Coles ofereceu-se a dar suporte psicológico a Ruby. Os encontros eram semanais na casa da menina e resultaram no livro infantil The Story of Ruby Bridges. Robert Coles doou os direitos autorais da obra à Fundação Ruby Bridges, que fornecia material escolar para crianças carentes de Nova Orleans. Anos depois, já adulta, Ruby soube que as roupa impecáveis que usava para ir à escola foram doadas por um parente de Robert Coles. Sua família nunca teria condições de comprar os vestidos, meias e sapatos que estão documentados nas fotografias de ida e volta da escola.
No segundo ano de Ruby na escola William Frantz tudo parecia ter mudado. O contrato da professora Barbara Henry não foi renovado, então ela e o marido voltaram para Boston. Também não havia mais agentes federais; Ruby ia para a escola sozinha todos os dias. Havia outros alunos em sua turma do segundo ano, e a escola começou a ter matrículas novamente. Ninguém falava sobre o ano anterior. Parecia que todos queriam deixar a experiência para trás.
Ruby concluiu o ensino fundamental e se formou na escola integrada Francis T. Nicholls High School, em Nova Orleans. Em seguida, estudou turismo na escola de negócios de Kansas City e trabalhou para a American Express como agente de viagens internacional.
A pintura de Norman Rockwell
Em 1963, o pintor e ilustrador Norman Rockwell imortalizou o primeiro dia de aula Ruby Bridges na pintura The Problem We All Live With (“O Problema com o Qual Todos Vivemos”). A imagem dessa pequena menina negra sendo escoltada para a escola por quatro homens brancos corpulentos estampou a capa da revista Look em 14 de janeiro de 1964.

“The Problem We All Live With”, óleo de Norman Rockwell, 1963, 91 cm x 147 cm, Museu Norman Rockwell em Stockbridge, Massachusetts
O vestido branco contrasta com a pele negra da menina, com os tons cinzas dos ternos dos agentes e a descoloração geral da tela. Ela se destaca na tela atraindo nosso olhar. Caminha segura mas não altiva. Os livros e a régua mostram-na como aquilo que era: uma estudante a caminho da escola. Não se vêem os rostos dos agentes, mas é evidente a sua função como indicam as faixas com a sigla “U.S.Marschals Service”, a agência d0 Departamento de Justiça. Ruby parece pequena e frágil, protegida por gigantes de que não vemos os rostos.
Três detalhes representam a tensão que ocorria naquele momento. Na parede, no centro da tela, a inscrição racista “Nigger” e a mancha do tomate arremessado cuja pompa escorre como sangue humano. Outro detalhe na parede, no lado esquerda e à altura do peito do agente de cinza claro, a inscrição sutil e esmaecida de três letras – “K K K” – clara alusão à tenebrosa Ku Klux Klan.
A tela não mostra a multidão enfurecida, mas apenas as marcas do ódio covarde daqueles que só agem em bando.
Seu título The Problem We All Live With ((“O Problema com o Qual Todos Vivemos”) deixava claro que não era um problema localizado, nem uma luta entre ativistas negros e sulistas racistas, mas uma questão que dizia respeito a toda a sociedade.
Lembremos ainda que quando Ruby foi à escola, em novembro de 1960, ainda não havia ocorrido a Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade, em agosto de 1963, em que Martin Luther King pronunciou seu célebre discurso “Eu tenho um sonho”. A Lei dos Direitos Civis (Civil Rights Act) só seria aprovada em julho de 1964.
Ruby desafiou e enfrentou uma cidade racista e hostil com a coragem da inocência. Mais tarde, ela comentou: “O racismo é uma doença de adultos e devemos parar de usar nossas crianças para propagá-lo.”
Fonte
- BRIDGES, Ruby. Through my Eyes. Nova York: Scholastic, 1999.
- BRIDGES, Ruby. Ruby Bridges Goes to School. Nova York: Scholastic, 2009.
- COLES, Robert. The Story of Ruby Bridges, special anniversary edition, Nova York: Scholastic, 2020.
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