A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, ocorrida em 26 de julho de 2024, foi uma verdadeira aula de História, Arte e Cultura. Pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos Modernos, a festa de abertura não aconteceu num estádio, mas no coração de Paris tendo o rio Sena como passarela das delegações. No trajeto de 6 quilômetros, sucederam-se numerosas referências históricas e culturais que tiveram por cenário os principais monumentos e edifícios de Paris: a catedral de Notre Dame, o palácio do Louvre, o Museu Orsay, o Grande Palácio, o Hotel des Invalides, a Conciergerie e a Torre Eiffel.
Foi uma ousada (e polêmica) homenagem aos valores da República e à diversidade em todos os campos. Nas 3 horas e meia que durou a cerimônia, selecionamos 15 referências históricas e culturais.
1. Figura mascarada correndo nos telhados
Servindo como fio condutor de toda cerimônia, uma misteriosa figura mascarada e encapuzada com gaze branca levou a tocha olímpica através de Paris correndo pelos telhados da capital, pontes, museus, catacumbas encontrou alguns ratos (mais uma referência ao cotidiano parisiense) e até o crocodilo Eleanor, o réptil do rio Nilo que viveu nos esgotos de Paris e foi capturado em 1984.
O mascarado representa o personagem Arno Dorian de Assassin’s Creed, famosa série de videogames desenvolvida pela empresa francesa Ubisoft, cujo episódio “Creed Unity” se passa em Paris. A empresa é também lembrada pela doação de US$ 500 mil para ajudar na reconstrução da Catedral de Notre-Dame.
Mas a figura homenageia diversos outros personagens mascarados da cultura francesa como o Fantasma da Ópera (1909), personagem fictício do romance homônimo de Gaston Leroux, o Homem da Máscara de Ferro, o misterioso prisioneiro da Bastilha no final do século XVIII, assim como outros mascarados como Arsène Lupin (1874) e Fantômas (1911).
O personagem mascarado foi interpretado por doze pessoas, a maioria especialista em parkour, um treinamento para superar todo tipo de obstáculo em ambientes urbanos.
2. O roubo de Monalisa e as obras-primas do Louvre
A figura mascarada entra no Louvre e percorre suas galerias onde podemos ver muitas obras-primas do acervo do museu incluindo a Vitória de Samotrácia, a Vênus de Milo, a Grande Odalisca (1814), A Morte de Marat (1793), A Jangada da Medusa (1818-1819) entre outras. As obras foram animadas e os personagens saíram de suas molduras para assistir aos jogos olímpicos.
O personagem mascarado notou, então, que a Monalisa não estava em seu lugar.
Nas águas do rio aparece um submarino e começa uma sequência humorística de animação protagonizada pelos Minions. Eles roubaram a Monalisa, lembrando o fato real ocorrido em 1911 quando a pintura de Leonardo da Vinci foi roubada e ficou dois anos desaparecida. A tela que, até aquele momento, não gozava de fama, ganhou repercussão mundial tornando-se a obra de arte mais conhecida e visitada da História contemporânea.
A inserção dos Minions é uma homenagem a Pierre-Louis Coffin, animador e diretor francês que participou da produção do filme, um enorme sucesso de bilheteria.
Depois de muitas atrapalhadas dos Minions, a Monalisa aparece flutuando nas águas do Sena.
3. Rostos gigantes emergem do Sena
Rostos monumentais, reproduções de obras-primas da pintura, emergem do rio Sena com os olhos logo acima do nível da água para observar os atletas que passavam nos barcos acenando à multidão. São referências às pinturas expostas no Museu do Louvre e também uma lembrança enigmática da ameaça da subida das águas.
Reconhecemos os rostos da mulher de turbante de O Trapaceiro com Ás de Ouro, da negra Madeleine, de Gabrielle d’ Estrée e até do pajem da corte do xá do Irã – cinco obras do acervo do Louvre. Uma maneira incomum de apresentar algumas obras do museu como uma brincadeira “adivinhe quem eu sou”. Veja nas imagens a seguir.
4. Museu d’Orsay vira uma máquina do tempo
O mascarado com a tocha olímpica entra no Museu d’Orsay. Graças a uma máquina do tempo, ele assiste ao primeiro filme dos Irmãos Lumière – uma referência da importância da França na invenção do cinema. Vemos o trecho famoso “A chegada do trem a La Ciotat” que foi apresentado no Grand Café de Paris em 28 de dezembro de 1895.
Em seguida, o mascarado fazendo o primeiro vôo em um balão de ar quente, vai ao espaço, encontra a Lua caolha de Voyage dans la Lune (1902) do cineasta Georges Méliès (um curta-metragem mudo inspirado nos romances de Júlio Verne) ao lado de O Pequeno Príncipe (1943), de Antoine de Saint-Exupéry, e daí chega à Estação Espacial Internacional ISS.
5. A Liberdade guiando o povo
A figura mascarada desce pelo telhado até o prédio do teatro Châtelet onde ocorre o ensaio do musical Os Miseráveis, baseado na obra homônima de Victor Hugo, de 1862. A escolha é intencional: além de homenagear um romance emblemático da literatura francesa, o tema retrata a miséria e a desigualdade social que vai resultar na revolta em Paris em 1832.
Os personagens do musical reproduzem uma barricada numa evocação do quadro A liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugene Delacroix, outra obra-prima do Louvre homenageada na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos.
A pintura é um ícone da liberdade (representada pela mulher que ergue a bandeira francesa) e da revolução comandada pelo povo que aparece representado pela figura de um intelectual burguês, um operário e um adolescente.
6. As heroínas francesas em estátuas douradas
Ao som da Marselhesa, o hino nacional francês, dez estátuas douradas emergem às margens do rio. Elas homenageiam dez mulheres na história francesa que foram pioneiras em diferentes campos: política, esporte, filosofia, cinema, ciência, direitos da mulher.
Ao lado de cada estátua, anéis dourados descrevem essas personalidades na tela em seis idiomas: francês, inglês, chinês, espanhol, italiano e árabe.
A presença feminina na cerimônia é predominante. O próprio logo dos jogos olímpicos é uma mulher de cabelos curtos – lembrando o corte usado pelas mulheres no início do século XX como símbolo da emancipação do patriarcado.
Evoca, também, o romance La Garçonne (1922), de Victor Margueritte que escandalizou a sociedade da época por retratar uma jovem que decide viver livremente e em seus próprios termos, o que incluía ter múltiplos parceiros sexuais, tanto homens quanto mulheres.
Em contraponto à presença feminina, ficaram ausentes da cerimônia grandes nomes masculinos da História Francesa como Napoleão Bonaparte, Carlos Magno e os Luíses.
7. A festa dos deuses olímpicos
A cena mais polêmica da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos foi o quadro “Festividade” que mostrava o banquete dos deuses olímpicos. Sentados em uma longa mesa, estavam várias drag queens entre as quais a famosa Nicki Doll e a DJ Barbara Butch usando uma espécie de halo prateado.
Ao centro, em uma bandeja cheia de frutas e flores, estava o cantor Philippe Katerine pintado de azul com um collant da mesma cor representando Dionísio. Parece lógico que, sendo uma festa olímpica, os deuses olímpicos sejam homenageados e que Dionísio, o deus do vinho e da alegria comande os festejos.
A cena, porém, foi interpretada como uma paródia ou mesmo blasfêmia da Última Ceia de Leonardo da Vinci, pintada em 1495-1498, o que provocou indignação da extrema direita e dos católicos que consideraram uma “zombaria do Cristianismo”.
Especialistas em arte lembraram do quadro A Festa dos Deuses, de Jan Harmensz van Biljert, do século XVII, mantida no museu Magnin em Dijon, uma referência muito mais direta. Nele aparece Dionísio nu diante de uma longa mesa em cujo centro está sentado Apolo coroado e ao seu lado uma alegoria da Primavera brandindo um pequeno objeto da mesma forma que um dos personagens da cerimônia.
8. Maria Antonieta decapitada
Nas janelas da Conciergerie, apresentou-se o grupo francês de havy metal Gojira reinterpretando a canção revolucionária Ah! ça ira, ça ira (“Ah! vai ficar tudo bem”), popularizada durante a Revolução Francesa. A música evoca o passado revolucionário da França assim como os atentados terroristas ocorridos recentemente e lança a mensagem otimista “vai ficar tudo bem” firmando a confiança no futuro.
Mas a letra de Ah! ça ira, ça ira vai além disso, é um tapa da cara dos conservadores. “Ah! Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem! Os aristocratas vão ser enforcados! Os padres vão ser enforcados! E quando nós enforcarmos todos, vamos enfiar-lhes uma pá no rabo.” É uma música demolidora e que ganhou maior agressividade nos acordes estridentes da banda Gojira.
A Conciergerie é a famosa prisão onde ficaram presos os condenados da Revolução Francesa, entre os quais a rainha Maria Antonieta e o rei Luís XVI. Em uma das janelas aparece a figura da rainha vestida de vermelho e segurando a sua cabeça ensanguentada.
A imagem dramática é uma referência aos santos cefalóforos (“segurando a cabeça): santos que foram decapitados e que os pintores e escultores representavam segurando a cabeça entre as mãos.
A perfomance faz alusão ao martírio dos guilhotinados, um alto preço pago pela França pelo estabelecimento dos seus valores republicanos.
A apresentação termina com uma explosão de fitas vermelhas que jorram das janelas da Conciergerie lembrando o sangue derramado durante o período do Terror (1793).
9. O barco da resistência
Em meio à explosão vermelha, surge um barco trazendo a cantora Marina Viotti, uma das mais importantes sopranos líricas da ópera mundial, que canta a famosa ária L’amour est um oiseau rebelle (“O amor é um pássaro rebelde”) da ópera Carmem, de Bizet. A cena simboliza a liberdade em movimento.
Georges Bizet (1838-1875) é um reconhecido compositor francês de óperas. Sua obra Carmem (1875), tornou-se um sucesso espetacular e duradouro. A protagonista, uma mulher sedutora e independente, foge aos estereótipos das heroínas da época. Novamente, a figura da mulher dona de seu destino é a grande homenageada na cerimônia.
O barco é semelhante ao que compõem o brasão de Paris que também traz o lema da cidade: Fluctuat nec Mergitur (“batido pelas ondas, mas não afunda”). Estas palavras recordam os perigos que Paris passou, as revoluções sanguinárias e as crises que a cidade sofreu sem sucumbir. O lema expressa a ideia de vitalidade, força e perpetuidade da cidade.
10. Os célebres cabarés de Paris
A cantora Lady Gaga interpretou Mon truc en plumes (“Meu truque com plumas”), de Zizi Jeanmaire numa escadaria dourada inspirada na sala do Grand-Palais e sob uma lendária placa Guimard do metrô de Paris. Com um corpete de cetim preto tendo às costas um grande tufo de penas e usando meia arrastão, ela é acompanhada por dançarinos vestidos de preto agitando grandes leques de penas cor-de-rosa vibrante (recuperados dos acessórios do antigo cabaré Lido).
É uma homenagem aos cabarés e espetáculos parisienses e, em especial, a Zizi Jeanmaire (1924-2020), dançarina, atriz e cantora francesa. Ela começou na ópera e migrou para o teatro de revista onde teve enorme sucesso com Mon truc en plumes (1961) em que se apresentava com doze jovens carregando leques de penas rosa. A música foi um enorme sucesso e repetida em mais de 60 shows por Jeanmaire,
11. A deusa Diana em ritmo afrobeat
A cantora Aya Nakamura, nascida em Bamako, no Mali, e criada na França, é um ícone da música afrobeat, pop e R&B. Na frente do Louvre e ao lado da Guarda Republicana, ela cantou seus sucessos Pookie e Djadja com um vestido de penas douradas assinado pela casa Dior e usando sandálias gladiador. A inspiração helênica evoca as esculturas de deusas da Antiguidade, incluindo Diana, a Caçadora.
12. A deusa Sequana cavalgando pelo Sena
A misteriosa amazona que atravessou o Sena cavalgando um cavalo de metal é uma homenagem à Sequana, a deusa celta do rio Sena, particularmente de suas nascentes, e da tribo gaulesa, os sequanos. As nascentes, chamadas Fontes Sequanae (“As nascentes de Sequana”) estão localizadas em um vale no noroeste de Dijon, na Borgonha, onde um santuário à deusa foi construído no século II a.C. Sequana era conhecida pelo poder de curar e realizar desejos.
Montada em um cavalo, a figura faz alusão, também, à Joana d’Arc, famosa heroína da História da França e personagem fundadora da nacionalidade francesa.
O cavalo articulado de metal foi feito em Nantes pelo Atelier Blam e foi montado por Morgane Suquart, a própria artista e designer que o concebeu.
A deusa Sequana percorreu o trajeto da ponte de Austerlitz à ponte de Iena levando a bandeira olímpica até a Praça Trocadéro, onde todos os atletas haviam desembarcados. Cada vez que o cavalo atravessava uma ponte, duas asas de pomba se iluminavam no topo da estrutura – uma alusão à soltura de pombas praticada anteriormente nos Jogos Olímpicos. Representa o ideal de paz entre as nações durante a Trégua Olímpica.
13. O balão de ar quente
A espetacular pira olímpica suspensa por um balão de ar quente que se eleva no ar é uma homenagem ao primeiro voo controlado de um balão de ar quente criado pelos irmãos Montgolier e que foi guiado por dois franceses em 21 de novembro de 1783, em Paris. O vôo ocorreu nos Jardins das Tulherias, no mesmo local onde foi acessa a pira olímpica.
A tradição da chama olímpica remonta ao mito de Prometeu que roubou o fogo da forja de Hefesto para entrega-lo aos mortais. Durante a celebração dos Jogos Olímpicos antigos, em Olímpia, o fogo era mantido acesso enquanto durassem as competições.
O caldeirão, como foi chamada a pira olímpica pela organização, é formado por um anel que parece de fogo. Na verdade, é uma mistura de luz e vapor gerado com eletricidade. Trata-se de uma criação da empresa francesa de energia EDF, com o objetivo de tornar os Jogos mais sustentáveis.
O caldeirão, com uma altura total de 30 metros, sobe até atingir impressionantes 60 metros acima do solo podendo ser visto em diversos pontos da cidade. Na sua base, um anel de 7 metros de diâmetro simboliza a fraternidade, um dos valores fundamentais da República Francesa.
Na frente da catedral de Notre-Dame, uma sequência coreográfica homenageou a catedral, os bombeiros e os trabalhadores que atuaram nas obras de reconstrução após o incêndio devastador de 2019. Na torre restaurada, apareceu a silhueta de Quasímodo, o célebre Corcunda da Notre-Dame na obra de Victor Hugo.
Algumas referências à arte contemporânea também entraram na cerimónia. Assim, os fogos de artifício acima da ponte de Austerlitz fizeram alusão às impressionantes obras pirotécnicas do artista chinês Cai Guo-Qiang, em particular Quando o céu floresce.
Para quem assistiu pela TV, foi esclarecedor. Estão de parabéns!