Em fevereiro de 2018, a BBC transmitiu uma minissérie em oito partes, Troy, Fall a City, que contava a história da Guerra de Troia. Posteriormente, a Netflix lançou a minissérie nos Estados Unidos. A escalação de David Gyasi, um ator britânico filho de pais Ashanti, de Gana, para interpretar Aquiles provocou uma tempestade de críticas racistas nas redes sociais. Outras controvérsias foram em torno dos personagens Zeus, Atenas, Eneias, Pátroclo e Nestor também interpretados por atores negros.
Esse é um tema que muitos tratam como “modismo” do protagonismo negro contemporâneo. O assunto, porém, é muito mais antigo do que o público leigo imagina, e está coberto por camadas milenares de representações diversas.
- BNCC: 6° ano – Habilidade: EF06HI09
- Ensino Médio – Habilidades: EM13CHS104, EM13CHS501
A primeira questão que se coloca é: quem eram os gregos? Como eles se viam?
Tim Whitmarsh (1969-), especialista em Antiguidade Clássica da Universidade de Cambridge, responde para a revista digital Faros o seguinte:
“os gregos teriam uma gama de cores de cabelo e tipos de pele na Antiguidade. Não há razão para duvidar que o seu tipo de pele fosse mediterrâneo (mais claro que alguns e mais escuro que outros europeus), com uma boa mistura de misturas”. […]
“Era improvável que os gregos históricos tivessem a pele uniformemente clara, e, também, seu mundo era o lar de “etíopes”, um termo vago para chamar os norte-africanos de pele escura.” […]
O mundo grego – que eles viam como um disco circular rodeado por uma corrente de oceano em constante movimento – era muito mais “fluido” do que o nosso. Houve muitas viagens nesse período – as pessoas se mudavam do Egito para a Grécia, de leste para oeste. Era um mundo sem fronteiras, sem estados nacionais. Estava tudo interligado.
Este fluxo foi tanto étnico como geográfico.Os gregos não dividiram o mundo em preto e branco. Eles não se viam nesses termos. Todas as nossas categorias – preto e branco, por exemplo – são formadas por um conjunto de circunstâncias históricas modernas.”
Para entender a questão da cor da pele nos textos gregos antigos, há cinco pontos a serem considerados.
1. Os etíopes: belos e superiores
Fontes antigas contém muitas expressões de admiração pelos negros africanos, especialmente por por aqueles que os gregos chamavam de “etíopes”, nome usado na Antiguidade para se referir à pele negra. Por exemplo, Heródoto (3.20) chama os etíopes de as pessoas mais bonitas do mundo. Em Homero (II. 1.423), Zeus e os demais deuses olímpicos passam dias felizes com os etíopes.
Os antigos gregos consideravam a pele escura mais bonita e um sinal de superioridade física e moral. Na Odisséia, quando Atena quer fazer Odisseu parecer um deus antes dele entrar em seu palácio, ela lhe dá roupas novas, escurece sua barba e o torna de pele escura” (Odisseia 16.175: μελαγχροιής , melanchroiês , que é um composto de melan , “escuro”, e chroiê , “carne”).
2. Pele branca: característica feminina e de pessoa fraca
Em contraposição, na Grécia antiga acreditava-se que a pele excessivamente branca era sinal de um homem fraco e afeminado. Xenofonte relata que o rei espartano Agesilau II (c.445-359 a.C.) mandou despir os prisioneiros de guerra para que seus soldados os vissem “brancos, gordos e preguiçosos” e assim acreditarem que a “guerra seria uma briga com mulheres”
3. Zeus e Odisseu nos textos antigos
Sófocles, o mais popular dos dramaturgos gregos, retratou Zeus como negro. No fragmento 269a de sua peça Ínaco (Inachus), Zeus é descrito pelo refrão da peça como “preto” – αἰθός / aithos – que, na Antiguidade, faria parte da palavra “etíope” e, portanto, está ligada à pele negra. É possível que um Zeus negro tenha aparecido no palco na encenação desta peça. Sófocles pode ter tornado Zeus preto porque Épafo, rei do Egito, filho de Zeus e Io, era negro. Ele é mencionado por Ésquilo em Prometeu Acorrentado como “o escuro Épafo”.
Na Odisséia (16.175), é dito que Odisseu tem “pele negra e cabelos lanosos” e, a certa altura, somos informados de que a deusa Atena o torna bonito ao restaurar sua cor natural de pele negra.
Zeus, rei dos deuses, é outro caso difícil de determinar. No mito, Zeus revela-se aos mortais de diferentes formas: um cisne, um touro, uma águia, uma chuva de ouro.. Não seria incomum apresentar-se negro como o ator Hakeem Kae-Kazim, em Troy, Fall of a City.
4. Aquiles de cabelos “loiros”: será?
Na Ilíada (livro 1, linha 197), Homero descreve Aquiles como tendo cabelos loiros o que é apenas uma tradução aproximada. O termo ξανθός / xantho / xanthē pode significar “dourado”. No livro 23, linha 141 da Ilíada, Aquiles lança uma “mecha de cabelo xanthos” na pira funerária de Pátroclo. Na obra, são as únicas passagens que mencionam o cabelo de Aquiles. Duas únicas palavras em um poema com 15.693 versos.
Por outro lado, Menelau, o rei de Esparta, é descrito como xanthos vinte e sete vezes. Pode-se pensar que seu cabelo xanthos é a característica definidora de Menelau, mas não é o que caracteriza Aquiles.
E ainda, a palavra xanthos é usada no grego antigo para descrever muitas coisas que consideramos amarelas como mel, luz solar e azeite e também como adjetivo em cintilante, brilhante.
Outro complicador dessa tradução é que as cores nos poemas homéricos nem sempre equivalem aos nomes que usamos para elas. “As pessoas nas culturas antigas viam as cores de uma maneira totalmente diferente de nós. A descrição da cor mais notoriamente desconcertante no antigo mundo mediterrâneo é o ‘mar vinho escuro’ na Ilíada e na Odisseia”, comenta Mark Bradley, professor de História Antiga na Universidade de Nottingham.
O mar é descrito como “vinho escuro” em passagens trágicas do poema em que a descrição representa mais o clima da cena do que a cor superficial. Qualquer referência à cor nos poemas homéricos deve ser examinada pelo seu simbolismo mais amplo, incluindo a descrição do cabelo de Aquiles e da pele “negra” de Odisseu.
5. Africanos negros na Guerra de Troia
O poema Aethiopis (Etíopes), provavelmente composto no século VIII ou VII a.C. relata eventos do final da Guerra de Troia que não foram mencionados por Homero na Ilíada como a intervenção das Amazonas na guerra, a morte de Aquiles e a participação do príncipe etíope Memnon ao lado dos troianos.
Memnon, um dos maiores guerreiros da guerra de Troia, foi frequentemente representado como um negro africano. Ele é descrito por Hesíodo (século VIII-VII a.C.), na Teogonia (985) como nascido com a pele de bronze.
O poema Aethiopis conta que Memnon chega a Troia para lutar ao lado dos troianos. Memnon assemelha-se a Aquiles: ambos têm uma mãe divina e um pai mortal; ambas as mães preveem a morte de seus filhos; ambos têm uma armadura especial feita pelo deus Hefestos; ambos recebem a imortalidade após a morte (na versão de Aethiopis).
As semelhanças seguem nas motivações de ambos guerreiros: Memnon mata Antíloco, filho de Nestor, o que leva Aquiles a matar Memon com vingança. O mesmo padrão é narrado na Ilíada em que Nestor mata Pátroclo, e Aquiles em vingança mata Heitor.
As semelhanças entre o heroi aqueu/grego e o príncipe etíope podem explicar a representação de Aquiles com a cor da pele de Memnon, na versão BBC/Netflix. Por que não, afinal?
Conclusão
O que chamamos de “poemas” homéricos não eram originalmente obras escritas, mas apresentações orais. Os intérpretes destes épicos, conhecidos como “rapsodos”, não recitavam poemas memorizados, mas improvisavam novas versões destas conhecidas histórias cada vez que se apresentavam.
Os principais contornos das histórias eram fixos – os gregos sempre saqueavam Troia, Odisseu sempre voltava para casa – mas os rapsodos gozavam de considerável liberdade na forma de retratar os personagens, quais detalhes e episódios enfatizavam, o grau em que expandiam ou contraíam a narrativa etc.
Os textos da Ilíada e da Odisseia que chegaram aos nossos dias são apenas uma versão das muitas versões possíveis realizadas na Antiguidade. Discute-se muito quem foi Homero: pode ser o nome do intérprete de uma versão ou pode ser um nome usado, na Antiguidade como uma espécie de “marca” para denominar toda a tradição que produziu os poemas.
A julgar pelos escritores mais proeminentes e célebres da Grécia Antiga (Heródoto, Sófocles, Ésquilo), a representação de deuses e heróis como negros teria sido aceita pelo público da época sem estranheza ou indignação. Os antigos gregos não tinham preconceito contra a pele negra e até a considerava bonita associando a pele escura às proezas militares.
Fonte
- FAROS. Scholars respond to racist backlash against Black Achilles, part 1: ancient greek attitudes toward Africans. 11 mai 2018.
- HERODOTO, História. Menção sobre os etíopes.
- HOMERO, Ilíada. Menção aos etíopes.
- XENOFONTE, Agesilau 1.28
- ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado.
- HESÍODO, Teogonia (984)
- SEAFORD, Richard. Black Zeus in Sophocles’ Inachos. The Classical Quarterly, v. 30, n, 1, 1980.
- DEE, James H. Black Odysseus, white Caesar: when did “white people” become “white”? The Classical Journal, v. 99, n. 2, dez 2003-jan 2004.
- SMITH, Amanda. Were the ancient greeks and Romans colour blind? 14 abr 2014.
- BRADLEY, Mark. Color and meaning in Ancient Rome. Cambridge University Press.
Sugiro a integração na lista das Fontes a seguinte obra inédita que os egiptólogos africanos consideram como uma das maiores e melhores obras de referência em ci~encias humanas: Anta Diop, Cheikh, Nations Nègres et Culture, Présence Africaine, 1954.
A obra de Cheikh Anta Diop é um importante ponto de inflexão na historiografia africana (mas não é inédita, ao contrário, é bem conhecida). “Nations Nègres et Culture, Présence Africaine (1954) abriu novos horizontes de reflexão e de investigação. Passadas sete décadas de sua publicação, os avanços da pesquisa em História, Arqueologia, Filologia e Genética revisaram teorias e paradigmas e a obra de Anta Diop entrou na roda das polêmicas polarizadas entre os que a aplaudem e aqueles que a desqualificam.
Uma correção a se fazer, ouve muitas poucas verdades e muitas verdades pela metade, a pele branca era dita como um padrão de beleza feminino, não fraqueza, porque os guerreiros da época tinham normalmente a pele bronzeada devido ao sol, a pele mais escura está relacionada com trabalho braçal, não como uma superioridade física. Agora, sobre os deuses, os deuses gregos normalmente eram retratados com pele clara ou bronzeada, mas não necessariamente negra, sem falar que os deuses da época não tinham lá uma forma definida. Sem falar que os etíopes eram um povo admirado, mas não considerado superior, em… Leia mais »