Fala-se muito em “golpe” e “governo golpista” no Brasil especialmente a partir de agosto de 2016 quando se iniciou o processo de impeachment de Dilma Rousseff, processo denunciado como sendo uma “ação golpista” arquitetada pelos adversários da presidente e de seu partido. O uso desmedido de um termo acaba por distorcer e esvaziar o seu próprio conceito. É hora de colocar os pingos nos ii. Vamos voltar ao conceito e à sua história que, no caso do Brasil, foi muito mais comum do que se imagina.
- BNCC: 8º ano. Habilidade: EF08HI06
- BNCC: 9º ano. Habilidades: EF09HI17, EF09HI19, EF09HI22, EF09HI25
Origem do termo “golpe de estado”
A expressão coup d’Etat surgiu no século XVII com Gabriel Naudé, em Considérations politiques sur le coup-d’état (1639), para definir a decisão de Catarina de Médici de eliminar os heguenotes (protestantes) na noite de São Bartolomeu (23 e 24 de agosto de 1572, em Paris), e também a proibição do imperador romano Tibério à sua cunhada de contrair núpcias para evitar o perigo de que os eventuais filhos dela pudessem disputar a sucessão imperial com os filhos do imperador.
Estes e outros exemplos de golpe de Estado mencionados por Naudé têm em comum serem um ato executado pelo soberano para reforçar o próprio poder. Esta decisão é geralmente tomada de surpresa para evitar reações por parte daqueles que deverão sofrer as consequências.
O conceito foi ganhando novos contornos com o advento dos regimes constitucionais. Passou a ser definido como todo movimento de subversão da ordem constitucional, toda derrubada de um regime político que viola a Constituição do Estado, por parte dos próprios detentores do poder político.
Neste sentido, foi um Golpe de Estado a tomada de poder por Napoleão Bonaparte no 18 Brumário, quando este, em 1799, assumiu o poder da França substituindo o Diretório por um consulado e logo por seu governo individual e ditatorial. Foi também um Golpe de Estado o que Luís Bonaparte realizou em 1851, quando deu um golpe na II República de que era presidente, conseguindo proclamar-se o novo imperador da França.
O objetivo de todo golpe de Estado é tomar o poder, derrubando o governo em exercício. Ele instala uma outra forma de governo, em geral uma ditadura.
O Golpe de Estado pode ser acompanhado ou seguido de mobilização política ou social. Pode ser executado por um grupo militar ou pelas forças armadas como um todo. Num caso contrário, pode ser executado justamente por contar com a neutralidade e cumplicidade das forças armadas.
Brasil: independência à sombra do golpe
Considerando que Golpe de Estado é o movimento de subversão da ordem política engendrado pelos detentores do poder, pode-se dizer que a própria independência do Brasil foi um Golpe de Estado. Afinal, ela foi promovida pela elite política sob liderança do próprio herdeiro da Coroa portuguesa. Um Golpe de Estado clássico que, após um período de guerras, consolidou-se preservando a ordem social e econômica.
Menos de um ano depois, ocorreu outro golpe: a dissolução da Assembleia Constituinte por D. Pedro I, com o apoio dos militares. Foram presos vários deputados, entre eles, José Bonifácio e seus irmãos Antônio e Martim Francisco. A Constituição outorgada de 1824 nascia, assim, de cima para baixo, imposta pelo rei ao “povo”, isto é, aos brancos e mestiços livres que votavam e que, de algum modo, tinham participação na vida política.
Poucos anos depois, a abdicação de D. Pedro I, em 7 de abril de 1831, abriu o período das regências, um dos mais agitados da história política do país. “Entre as classes e os grupos dominantes, não havia consenso sobre qual arranjo institucional mais conveniente para seus interesses. Mas ainda, não havia clareza sobre o papel do Estado como organizador dos interesses gerais dominantes, tendo para isso de sacrificar em certas circunstâncias interesses específicos de um determinado setor social” (FAUSTO, 1995.)
As rebeliões e tensões políticas do período regencial levaram a novo golpe, promovido pelos liberais que, naquele momento, estavam na oposição: o Golpe da Maioridade (julho de 1840). Três meses antes, o conservador Pedro de Araújo Lima, senhor de engenho de Pernambuco, havia sido eleito regente. Imediatamente, os liberais criaram o Clube da Maioridade e lançaram a campanha pela antecipação da maioridade do jovem D. Pedro.
Os liberais apresentavam à Câmara dos Deputados o projeto de lei “maiorista”, que permitiria ao imperador de quatorze anos assumir o trono imediatamente (a idade legal mínima era dezoito anos). Os conservadores, no governo, procuraram esticar a discussão do projeto para ganhar tempo. Com o apoio declarado do próprio D. Pedro, os liberais conseguiram que a Assembleia Geral aprovasse o projeto a 23 de julho de 1840 (veja proclamação abaixo). Os liberais tiraram proveito imediato do golpe: já no dia 24 de julho de 1840, D. Pedro II formava um novo ministério com os liberais que, com isso, tiraram os conservadores do poder (por pouco tempo, porém).
Proclamação da Assembleia Geral ao povo
Brasileiros!
A Assembleia Geral Legislativa d Brasil, reconhecendo o feliz desenvolvimento intelectual de S.M.I. o Senhor D. Pedro II, com que a Divina Providência favoreceu o Império de Santa Cruz; reconhecendo igualmente os males inerentes a governos excepcionais, e presenciando o desejo unânime do podo desta capital; convencida de que com este desejo está de acordo o de todo o Império, para conferir-se ao mesmo Augusto Senhor o exercício dos poderes que, pela Constituição lhe competem, houve por bem, por tão poderosos motivos, declará-lo em maioridade, para o efeito de entrar imediatamente no pleno exercício desses poderes, como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil.
Brasileiros! Estão convertidas em realidades as esperanças da Nação; uma nova era apontou; seja ela de união e prosperidade. Sejamos nós dignos de tão grandioso benefício.
Paço da Assembleia Geral, 23 de julho de 1840.
Durante os primeiros anos do Segundo Reinado, as elites imperiais foram desenhando um acordo político para formalizar as regras do poder de maneira a atender os interesses de todos os grupos. A fórmula resultou em um sistema de governo assemelhado ao parlamentar que ganhou o nome de Parlamentarismo às Avessas. “Tratava-se de um sistema flexível que permitia o rodízio dos dois principais partidos no governo. Para quem estivesse na oposição, havia sempre a esperança de ser chamado a governar. Assim, o recurso às armas se tornou desnecessário.” (FAUSTO, 1995.)
A República dos golpes: 1889, 1930, 1937, 1945…
Pode-se dizer que a instauração da república no Brasil nasceu de um Golpe de Estado executado por uma facção do Exército, um motim de soldados, como avalia José Murilo de Carvalho. As forças armadas não estavam unidas, das altas patentes do Exército apenas o marechal Deodoro da Fonseca esteve, e quase não houve participação da Marinha.
Apesar do apoio de civis republicanos descontentes com a monarquia, estes estiveram ausentes do golpe em si. Seu papel foi importante para a organização do novo regime. A falta de coesão entre as forças republicanas, que tinham interesses e projetos diferentes de República, e a reação de monarquistas levaram aos dez anos de conturbação política que se seguiram ao 15 de novembro.
O movimento armado de 1930 é outro tema polêmico na história do Brasil: teria sido revolução ou golpe de estado? Não vamos discutir o conceito de revolução aqui, que merece um texto mais amplo, bem como os grupos sociais que atuaram neste evento. Pode-se dizer que o movimento de 1930 culminou com o Golpe de Estado que depôs o presidente da república, Washington Luís, em 24 de outubro de 1930, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e, uma semana depois, em 1º de novembro, colocou no poder uma junta militar.
Getúlio Vargas, que assumiu o poder em 1930, protagonizou outros golpes de Estado. O golpe de 1937, executado pelo próprio chefe de Estado, Getúlio Vargas, com apoio de militares, suspendeu as eleições, fechou o Congresso Nacional, anulou a Constituição de 1934 e outorgou uma nova constituição que lhe conferia plenos poderes. Estava instalada a ditadura do Estado Novo.
Vargas saiu do poder derrubado pelo golpe militar de 1945 liderado por generais de sua confiança: Góis Monteiro, Cordeiro de Farias, Newton de Andrade Cavalcanti, além do próprio candidato presidencial, Eurico Gaspar Dutra. Não houve resistência ao golpe por parte de Getúlio nem da população.
Vargas foi substituído pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares (não existia a figura do vice-presidente na Constituição de 1937). Após três meses, o presidente interino passou o poder a Eurico Gaspar Dutra, presidente eleito em 2 de Dezembro de 1945.
Embora deposto, Vargas não foi mandado ao exílio, não teve seus direitos políticos cassados nem teve que responder a qualquer processo judicial por atos cometidos no exercício da presidência. Expulso do Palácio do Catete, RJ, Vargas refugiou-se em sua estância em São Borja, RS, numa espécie de “auto-exílio” interno.
O “golpe branco” de 1961
Nem todo golpe é militar. Há o chamado “golpe branco” que acontece quando grupos políticos e sociais usam de pressão – e não de força armada – para impor um governante, forçar uma decisão governamental em claro desprezo às normas legais. Foi o que aconteceu após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, quando os militares e as elites se opuseram à posse do vice-presidente, o esquerdista João Goulart, e pressionaram o Congresso a aprovar uma emenda à Constituição de 1946 instaurando o parlamentarismo.
João Goulart assumiu a presidência como chefe de Estado, isto é, representante da nação, mas sem o poder de governar. O chefe de governo era o primeiro-ministro. Em pouco menos de um ano, sucederam-se três primeiros-ministros: Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima.
Com apoio nas bases populares e sindicalistas, Goulart conseguiu antecipar o plebiscito para janeiro de 1963 e reverteu facilmente o sistema para presidencialismo. Assim, em 1963, Goulart recuperou a chefia de governo.
O golpe militar de 1964
Enquanto o golpe do parlamentarismo foi um golpe branco, realizado pelo Congresso, o de 1964 foi um clássico Golpe de Estado civil-militar. O golpe de 1964 vinha sendo preparado com antecedência e planejamento. Um processo que envolveu a destruição da legitimidade do governo junto ao povo, com boicotes e campanhas negativas realizadas especialmente por meio da imprensa (jornais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Diário de Notícias), a cooptação de aliados e lideranças políticas e sociais, o apoio da Igreja e do empresariado e, até mesmo o apoio militar e logístico norte-americano (a chamada Operação Brother Sam)
O golpe foi executado na noite de 30 de março de 1964 pelo general Olympio Mourão Filho com apoio do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. No dia 1º de abril, numa sessão tumultuada do Congresso, Moura Andrade, presidente do Senado, declarou vaga a presidência da República (apesar de João Goulart estar no país).
Alegando que o presidente havia fugido do Brasil, Moura Andrade empossou o deputado Ranieri Mazzili, presidente da Câmara, no cargo maior do país. Em seguida mandou desligar os microfones e as luzes rapidamente sob protestos de Tancredo Neves.
Contudo, quem passou a exercer o poder de fato, foi uma junta militar constituída pelos ministros militares: Artur da Costa e Silva (Guerra), Augusto Rademaker Grünewald (Marinha) e Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáutica).
João Goulart, apesar de contar com o apoio do III Exército, comandado pelo general Ladário Teles, se recusou a resistir o que poderia desencadear uma guerra civil. Optou por ir embora do Brasil exilando-se no Uruguai. O golpe de 1964 levou o país a uma ditadura que durou vinte anos.
Conclusão
O Golpe de Estado é, portanto, um ato subversivo de tomada do poder que viola a legítima instituição estabelecida no Estado, isto é, as regras legais de sucessão. Distingue-se dos conceitos de revolta, motim, rebelião, revolução ou guerra civil. É um crime contra a democracia.
Na História contemporânea, o Golpe de Estado tem sido um fenômeno típico de sociedades politicamente instáveis e com uma frágil cultura democrática. A falta de uma consciência social, de cidadania e de participação política favorecem a existência de golpes de Estado e de outras mazelas políticas. Investigar mais a fundo os Golpes de Estado ocorridos na história da República brasileira e refletir sobre o papel dos grupos em sua execução ou mesmo na ausência de ação é uma forma de fortalecer a vigilância cidadã contra ameaças à democracia.
Fonte
- BARBÉ, Carlos. Golpe de Estado. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: UnB, São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.
- CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras., 1987.
- FERREIRA, Mário & NUMERIANO, Roberto. O que é golpe de Estado. São Paulo: Brasiliense, 1993.
- LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
- SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Pauloo: Contexto, 2005.
- FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp /FDE, 1995.
- Portal FGV CPDOC. 1930: Ruptura ou continuidade?
Parabéns pelo belíssimo texto professora!
Obrigada Marcelo!
Professora, uma dúvida: Se passar por todo o processo legítimo de cassação, ainda assim é golpe ou é impeachment?
Vc está se referindo ao impeachment. No meu entender, seria um “golpe branco” se fosse feita uma alteração na Constituição e da Lei de Impeachment com o objetivo de mudar o resultado final, seja para condenar ou absolver a presidente. Também se configuraria um golpe se não fosse dado à presidente o direito de defesa previsto, ou se ocorresse uma ação armada ou anticonstitucional como, por exemplo, a presidente ser presa, o Congresso fechado etc. Mas não sou jurista e, certamente, um jurista apontaria outros elementos que poderiam configurar um golpe.
Obrigada pelo retorno.
muito bom
pra vc, esse ano de 2016, 2017, pode se assemelhar com a revoluçao francesa??? onde os ricos se prevalece dos mais pobres, tirando seus direitos,,,e outra, sobre partido, nunca tive preferencia por isso,mas nao tava muito contenet com PT, mas hoje ja tenho minha duvidas sobre o partido q ta hoje (PMDB), pois lendo algumas historias ví q o PT tambem nasceu de uma luta popular e social por igualdade, apesar de hoje o foco nao ser mais esse, agora a briga por poder, DIREITA xESQUERDA,qual a origem de direita e esquerda? pois sei q isso vem lá de traz…
Ser esquerda, é ser contrário as práticas capitalista que tira da saciedade os direitos sociais. igualdade, segurança, educação, saúde, moradia, trabalho, comida na mesa, participar dos meios de vida para todos.
Boa noite professora… Com a distância necessária e com os fatos que hoje se apresentam, creio que podemos avaliar, por base do texto apresentado, que os caracteres do “golpe” em 2016, se tornam evidentes, já que toda a estrutura do poder foi usada em favor das elites que estavam em busca de um “golpe branco” para legitimar seu candidato ao poder.
Assim os boicotes na câmara promovido pelo então deputado E. Cunha, os pagamentos de propinas para forçar um resultado, tanto na Câmara como no senado, dão base para que este conceito não se esvazie, não acha?!
Concordo Ciro. O golpe de 2016 ficou mais claro nesse ano. As máscaras caíram. E continuarão caindo em 2018, ano de eleições.
Verdade Ciro Lins. Especialmente se considerarmos a análise feita no texto sobre os antecedentes do golpe de 1964: “O golpe de 1964 vinha sendo preparado com antecedência e planejamento. Um processo que envolveu a destruição da legitimidade do governo junto ao povo, com boicotes e campanhas negativas realizadas especialmente por meio da imprensa (jornais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Diário de Notícias), a cooptação de aliados e lideranças políticas e sociais, o apoio da Igreja e do empresariado e, até mesmo o apoio militar e logístico norte-americano (a chamada Operação Brother Sam)”. Isso não lembra o… Leia mais »
Mas então podemos dizer que tudo que ocorre no pleito político seja algum tipo de golpe, já que sempre há alianças, propinas, apoio de lideranças sociais e de bancadas específicas, mídias etc. Todas aprovações de leis, campanhas políticas, eleições são golpes aplicados diariamente na população.