Ó abre alas que eu quero passar!
Eu sou da Lira, não posso negar!
A marcha-rancho, composta por Chiquinha Gonzaga em 1899 foi sucesso de carnaval por mais de dez anos e sem concorrentes. Dedicada ao cordão Rosa de Ouro, acabou sendo a composição preferida dos foliões de 1900, de 1901, de 1902… até 1910 pelo menos. Chiquinha Gonzaga foi pioneira na produção carnavalesca, antecipando-se em vinte anos à fixação do gênero. O samba ainda não tinha sido alçado à categoria de gênero musical.
Abolicionista e divorciada nos tempos do Império (um escândalo!), Chiquinha foi também pioneira no que mais amava: foi a primeira mulher a fazer do piano uma profissão (outro escândalo!) e a compor música para teatro e dança de salão (mais outro escândalo!) – música popular genuína que ousava incluir maxixe, lundu e umbigada – os ritmos apreciados pela gente pobre de origem escrava (escândalo total!).
Sem medo de ser feliz
Francisca Edwiges Neves Gonzaga (1847-1935), a Chiquinha, casou-se aos 16 anos de idade. Um casamento espinhoso e cheio de brigas: o marido proibia-a tocar piano e Chiquinha criticava-o pela desumanidade com que tratava os escravos. Sete anos depois, deixou o marido. A família a repudiou, o pai virou-lhe as costas e a considerou morta. Chiquinha tinha, então, 23 anos de idade e três filhos pequenos que lhe foram tirados: o mais velho ficou com o pai, a menina foi criada pelos avós e o caçula, ainda um bebê, foi morar com uma tia paterna.
Chiquinha recomeça a vida ao lado do engenheiro João Batista de Carvalho. Afinidade plena: ambos tinham o mesmo interesse pela música e pela dança. Para evitar outro escândalo (ela ainda era oficialmente casada), partiu com ele para fora do Rio de Janeiro. Foi viver em acampamentos e canteiros de obra da construção da Estrada de Ferro Mogiana, onde João trabalhava.
A ferrovia foi inaugurada e o casal retornou ao Rio de Janeiro, em 1875. Chiquinha estava grávida. Jacindo, o (ex) marido, sentiu-se afrontado com a gravidez da esposa (oficial). Denunciou publicamente Chiquinha de adultério (um crime!) e apelou ao Tribunal Eclesiástico. Audiência marcada, mas Chiquinha não compareceu. Ultraje! Dias depois nasceu a criança, uma menina, Alice – que não foi batizada para evitar a prova de adultério tão perseguida por Jacinto, o (ex) marido.
A ação continuou, à revelia de Chiquinha. Jacinto defendeu-se dizendo que foi um bom marido e pai não deixando faltar nada em casa. Chiquinha acusou-se de maus-tratos, admitiu o abandono do lar, mas não o adultério. A sentença saiu em 1877: Chiquinha foi culpada de todas as acusações do marido. O divórcio foi dado, gravando um estigma perverso para a mulher em uma sociedade machista e patriarcal. Chiquinha estava, então, sozinha, pois a união com João terminara em 1876. A pequena Alice ficou com o pai que lhe escondeu o nome da mãe.
A liberdade desperta a criatividade
Sem pai, sem marido e sem amante, Chiquinha alugou uma casinha de porta e janela na Rua da Aurora (atual General Bruce), no bairro de São Cristóvão. Para sobreviver, passou a dar aulas de piano. Mas foi ao lado de amigos músicos que sua vida tomou um rumo definitivo.
Juntou-se ao grupo do flautista Joaquim Callado, que se dedicava ao novo ritmo musical que então se popularizava – o chorinho. Chiquinha tornou-se a pianista do grupo. Na época, o pianista de choro era chamado de “pianeiro” e Chiquinha foi a primeira pianeira e a primeira “chorona” do país. Tocava em bailes recebendo dez mil-réis por noite.
Nesses encontros musicais, Chiquinha criou sua primeira composição: o choro Atraente que foi publicado em 1877. Na época, ter uma partitura publicada era o caminho seguro para a consagração. A venda de composições era o meio de vida dos músicos, assim como as apresentações e as aulas particulares.
O sucesso de Atraente foi imediato: era véspera de Carnaval e a música tocou em residências, grêmios literários, associações, sociedades recreativas, confeitarias e teatros. Atraente chegou à 15ª edição ainda em 1877.
O sucesso, porém, não livrou Chiquinha do preconceito e da discriminação: seu nome corria pela cidade, nem sempre com comentários elogiosos. Era uma mulher divorciada, metida em rodas boêmias, tocava violão (instrumento visto com desprezo pela elite), compositora de músicas “saltitantes” e com títulos atrevidos. O reconhecimento musical só ocorria entre as camadas populares, pois os músicos eruditos, bem como os políticos conservadores, desconsideravam as composições de Chiquinha.
Preconceitos, outros escândalos e a vida segue
Chiquinha não se deixou intimidar pelas críticas e foi além: envolveu-se abertamente na causa abolicionista e na campanha republicana. Chegou a vender suas partituras de porta em porta para angariar fundos para a Confederação Libertadora. Com o dinheiro arrecadado na venda de suas músicas, comprou a liberdade de José Flauta, um escravizado músico.
Durante a República. chegou a confrontar o governo por ocasião da Revolta da Armada. Compôs uma cançoneta chamada Aperte o botão, vista como irreverente por Floriano Peixoto que mandou apreender as músicas de Chiquinha e lhe dar ordem de prisão. Mas, sendo filha de um importante membro do Exército, Chiquinha teve a prisão relaxada.
Em 1899, aos 52 anos, Chiquinha Gonzaga já era um nome famoso e estabelecido na música carioca. A convite de José Vasco Ramalho Ortigão, presidente do Clube Euterpe, Chiquinha tornou-se sócia honorária da agremiação. Frequentada por jovens interessados em música, o clube organizava concertos e encontros líteromusicais, além de oferecer cursos de diversos instrumentos. Foi neste lugar que Chiquinha conheceu João Batista Fernandes Lage, de 16 anos.
O relacionamento amoroso não demorou a acontecer. Para evitar mais escândalos, Chiquinha acobertou o caso apresentando Joãozinho como seu filho. Entre 1902 e 1909, eles viajaram para a Europa, residindo por três anos em Lisboa. Chiquinha participou da vida cultural da cidade colaborando em diversas atividades.
Foi nessa época que sua composição Ó Abre Alas! alcançou enorme sucesso nos carnavais na primeira década do século XX.
De volta ao Brasil, Chiquinha foi convidada para alguns saraus no Palácio do Catete, residência oficial do Presidente da República. Foi ali que, em 1914, realizou o recital de lançamento do maxixe Corta-Jaca acompanhado ao violão por Nair de Tefé, a primeira-dama. Foi um escândalo! A imprensa fez críticas ácidas ao governo de Hermes da Fonseca por promover e divulgar no Palácio do Governo, músicas de origem vulgar, consideradas “selvagens” e “chulas”. Uma absurda quebra de protocolos.
Luta pelos direitos autorais
Chiquinha liderou a campanha pela defesa dos direitos autorais dos músicos. Ela mesma sofreu com a exploração indevida de seu trabalho: em 1903, encontrou composições suas editadas em Berlim, sem seu conhecimento.
Brigou e venceu a ação contra a Casa Edison que violara os direitos do autor, amparada pela lei número 496, de 1898, que regulava o assunto. A Casa Edison foi obrigada a pagar 15 contos de réis à Casa Buschmann & Guimarães, detentora do repertório de Chiquinha. O diretor dessa casa era João Batista, o Joãozinho de Chiquinha.
Após anos de campanha pelos direitos autorais, Chiquinha liderou um grupo de artistas e intelectuais para a fundação da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat), em 1917, pioneira na proteção dos direitos autorais de teatrólogos e compositores musicais. O primeiro presidente da Sbat foi João do Rio, renomado jornalista, cronista e teatrólogo brasileiro.
Último ato
Chiquinha faleceu em 28 de fevereiro de 1935, antevéspera de Carnaval. Estava com 87 anos. Joãozinho continuava ao seu lado. Ele foi o responsável por manter o acervo de Chiquinha Gonzaga a salvo. Em 1937, ele adquiriu legalmente o sobrenome do Gonzaga, após obter um registro em cartório como filho legítimo de Francisca Edwiges Neves Gonzaga e Jacinto Ribeiro do Amaral.
Em 1997, Chiquinha foi homenageada pela escola de Samba Imperatriz Leopoldinense com o enredo “Eu sou da lira, não posso negar” de Zé Catimba, Chopinho, Amaurizão e Tuninho Professor. Naquele ano, comemorava-se os 150 anos do nascimento de Chiquinha Gonzaga. Uma justa e correta homenagem: um enredo de escola de samba para quem foi pioneira da música carnavalesca e compôs cerca de 2.000 obras remarcáveis.
Fonte
- DINIZ, Edinha. Mestres da música no Brasil – Chiquinha Gonzaga. São Paulo: Moderna, 2001.
- LAZARONI DE MORAES, Dalva – “Chiquinha Gonzaga – Sofri, chorei. Tive muito amor”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
- Lei n. 496, de 1º de agosto de 1898. Câmara Legislativa do Brasil.