Por muito tempo, estudiosos afirmaram a inexistência de núcleos familiares entre os escravos. Os textos de viajantes e os romancistas do século XIX, por sua vez, deixaram uma imagem de devassidão sexual e de promiscuidade nas senzalas que faz supor que as relações amorosas entre os escravos eram instáveis. Crianças abandonadas vagando pelas ruas, mães com filhos de pais diferentes eram relatos comuns. Pesquisas recentes, contudo, têm revelado uma situação bem diferente.
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As narrativas dos viajantes estrangeiros
A vinda da família real e a abertura dos portos em 1808 abriram as portas do Brasil colônia para a exploração de cientistas e curiosos de diversas partes do mundo. Formaram-se expedições exploratórias conduzidas por naturalistas, médicos, botânicos acompanhados por pintores e desenhistas que documentavam suas observações.
Os desenhos dos viajantes retratavam paisagens, construções, plantas e animais, tipos humanos (índios, negros e mestiços), costumes e tradições – enfim, tudo aquilo que não podia ser transportado mas que os cientistas desejam conhecer. Desenho e escrita se complementavam constituindo valiosa fonte de informações para os pesquisadores.
Entre os viajantes que estiveram no Brasil no século XIX destacam-se: Luccock (1808), Thomas Ender (1817), Spix e Martius (1817-20), Maximilian de Wied-Neuwied (1820), Augusto Earle (1820, 1824 e 1832), Debret (1816-31), Rugendas (1822-25 e 1845), Adrian Taunay (1824), Florence (1825-29), d’Orbigny (1826), Seidler (1835) entre outros.
Rugendas, um alemão na selva tropical
Nascido em Augsburgo, na Alemanha atual, Johann Moritz Rugendas (1802-1858) chegou ao Brasil em março de 1822 integrando a expedição do naturalista e diplomata russo-alemão Georg Heinrich von Langsdorff que percorreria o interior do Brasil. Fora contratado para documentar, em desenhos e pinturas, a fauna, flora, paisagens e costumes do povo brasileiro.
A viagem começou em 1824 mas, constantes desentendimentos com Langsdorff levaram Rugendas a deixar a expedição em novembro daquele ano. Passou a viajar por conta própria percorrendo Mato Grosso, Espírito Sato e Bahia. No ano seguinte, retornou à Europa onde publicou sua obra Viagem Pitoresca através do Brasil (1827-1835) reunindo cerca de 100 litografias das imagens produzidas em sua expedição.
O olhar europeu do Brasil colonial
As imagens de Rugendas, recorrentes em livros didáticos e revistas de História, acabaram por se transformar em clichês nas representações do Brasil colonial, mesmo quando dizem respeito unicamente ao Rio de Janeiro. Por isso, é importante contextualizá-las.
Deve-se destacar, também, que o registro visual de Rugendas, assim como o de Debret e de outros viajantes do século XIX, não deve ser entendido como uma imagem real, acabada e definida. Trata-se, na verdade, de uma representação visível do olhar estrangeiro sobre o Brasil e sua gente mediada por conceitos e valores historicamente situados.
Produzidas no contexto do Iluminismo, as narrativas desses artistas refletem o ideal civilizatório europeu apregoado no final do século XVIII. Rugendas condenava o tráfico de escravos e a escravidão, mas defendia uma abolição gradual como ele mesmo esclarece:
“A emancipação dos escravos, por necessária e desejável que seja, só poderá ser feita muito lentamente e que, nas circunstâncias mais favoráveis, só se efetuará dentro de um século.” (RUGENDAS, 1972, p.153).
Segundo o artista alemão, o fim da escravidão deveria ser precedido de reformas que melhorassem a sorte dos escravos para torná-los “dignos” da liberdade – pensamento que estava de acordo com o ideário iluminista corrente que defendia uma lenta evolução das instituições.
Famílias escravas sob o olhar europeu
Segundo Rugendas, apesar dos casamentos entre os escravos serem estimulados pelos senhores, era impossível a fidelidade conjugal dado os escravos serem sexualmente desregrados.
“Em geral, os colonos facilitam os casamentos entre escravos, pois sabem, por experiência, que é a melhor maneira de prendê-los à fazenda e a mais forte garantia de sua boa conduta. Entretanto, não se pode negar que haja inúmeras exceções a essa regra e que, muitas vezes, os senhores, pelos seus exemplos, provocam eles próprios a devassidão de costumes dos escravos. Ocorre, ainda que as relações entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornam impossível a severa observância da moral ou a perseverança conscienciosa na fidelidade conjugal” (RUGENDAS, 1972, p. 142)
Debret, contemporâneo de Rugendas no Brasil, deixou a mesma impressão:
“Como um proprietário de escravos não pode (…) impedir aos negros de frequentarem as negras, tem-se por hábito, nas grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens; (…) essa concessão, feita tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma procriação destinada a equilibrar os efeitos da mortalidade”. (DEBRET, 1978, p. 268)
É preciso relativizar essas afirmações e compreendê-las em seu contexto histórico. A imagem de devassidão sexual e instabilidade familiar entre escravos registrada por estrangeiros e brasileiros “homens de bem” está carregada de preconceitos culturais e moralidades cristãs, comuns na sociedade europeia oitocentista.
Famílias escravas: forma de acomodação e resistência
Pesquisas recentes vêm revelando que o peso da escravidão não destruiu a família negra como instituição. Apesar dos obstáculos à constituição da família escrava, ela existiu de fato e gozou de vínculos estáveis, sendo importante para os escravos e também para seus proprietários. Casamentos longos, de 10 anos ou mais, e estáveis eram bastante comuns entre cativos. Muitas das uniões consensuais entre os escravos eram sacramentadas pela Igreja. Há farta documentação de registros de casamentos e batismo de escravos.
O parentesco entre os cativos era um elemento de adaptação do negro ao escravismo e de pacificação dos conflitos no interior das relações escravistas. O senhor se beneficiava da acomodação de seus escravos que se organizavam em unidades produtivas familiares cultivando roças independentes.
Por outro lado, as relações de parentesco eram, também, elemento de resistência à escravidão. A importância que o escravo atribuía à sua família e às relações de parentesco e amorosas justificou ações de resistência e violência contra os senhores que rompiam esses laços.
“Constatamos que o descontentamento escravo diante da impossibilidade de cultivar suas relações familiares, de preservar seus laços afetivos, foi demonstrado em circunstâncias as mais variadas, a exemplo das fugas em família ou em busca da família, dos crimes contra proprietários de escravos, do suicídio de escravas juntamente com o assassinato de seus filhos (…). A luta pela preservação da família e a solidariedade entre parentes constituíram-se em mais uma forma de resistência escrava, de resistência à coisificação e a desumanização. (REIS, 2001.)
A historiadora Isabel Cristina Reis lembra, ainda, o destacado papel das mulheres no sentido de defender e preservar a família negra. Elas foram as principais protagonistas da resistência contra a violência que se abatia sobre sua parentela.
Outras formas de família
A família escrava no Brasil colonial nem sempre se constitui dentro dos padrões de família nuclear e sanguínea. Os escravos usaram de outras relações de parentesco, mais simbólicas e rituais, como as de compadrio, de “famílias de santo”, das irmandades religiosas e de grupos étnicos (nações). Essas formas de parentesco lhes permitiam articular uma rede de solidariedade muito mais extensa do que a estabelecida pelos laços sanguíneos.
Muitas uniões escravas não eram sacramentadas pela igreja mas isso não impediu o estabelecimento de relações afetivas tão significativas e estáveis como as de famílias baseadas no casamento legal.
Havia ainda a família escrava cujo casal ou filhos não coabitavam a mesma casa nem a fazenda. A libertação de um dos membros – muito comum para as mulheres – levava à sua saída do espaço de convívio familiar. Daí que muitos negros escravos, livres e libertos se empenharam pela libertação de familiares e entes queridos até como forma de evitar a desagregação da família.
Além da alforria, outras ameaças à estabilidade familiar eram o comércio de escravos e o aluguel de escravas como amas de leite – situações que, com frequência, promoveram a separação da família de escravos.
“Habitação de negros”, de Rugendas
A aquarela intitulada Habitação de negros traz a representação de uma cabana de escravos construída próxima à casa-grande, em cuja varanda a senhora observa os cativos. Chama a atenção o fato de ser a moradia supostamente de uma família escrava e não a tradicional senzala coletiva onde homens e mulheres eram trancados ao final do dia de trabalho.
Vale lembrar que o termo senzala não era comum no Brasil até o século XVIII. Palavra de origem kimbundu, idioma banto, significando “povoado”, ela demorou a ser adotada na colônia. Chamava-se, até então de casa dos negros ou casa dos escravos as choupanas, cabanas, choças ou palhoças onde os escravos e suas famílias moravam.
A cabana retratada era, possivelmente, a moradia de uma família que reunia pais, filhos, avós, irmãos, sobrinhos e até mesmo afilhados. A construção de pau-a-pique e coberta de sapé foi erguida junto à casa-grande. Mais ao fundo, se vê a sombra de uma segunda moradia de escravos.
Ao redor da cabana pode-se reconhecer bananeiras, mamoeiros, uma pequena produção de abacaxis e um pé de mandioca. Galinhas ciscam no terreiro. Descreve Rugendas, a respeito:
“Em cada fazenda existe um pedaço de terra que lhes é entregue [para os escravos], cuja extensão varia de acordo como número de escravos, cada um dos quais cultiva como quer ou pode. (…) As cabanas dos escravos contêm mais ou menos tudo o que esse clima pode ser considerado necessário. Por outro lado, eles possuem galinhas, porcos, às vezes mesmo um cavalo ou uma besta, que alugam com vantagem porque a alimentação nada lhes custa (RUGENDAS, 1972, p. 141)
O grupo reunido transmite uma visão quase idílica da vida em família dos escravos que mascara a violência das relações escravistas. Interessante observar costumes negros, fazeres e objetos retratados pelo artista: o fumo de cachimbo do homem sentado (aceso pelo tição trazido pela mulher, na porta da casa), colares e pulseiras usados pelas mulheres, vestimentas, a nudez das crianças e os seios nus das escravas, a fabricação de esteiras, a faca na cintura do escravo e a tesoura na mão da escrava.
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Fonte
- BELLUZZO, Ana Maria de. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros; Salvador: Fundação Emílio Odebrecht, 1994, 3 vol.
- COSTA, Maria de Fátima & DIENER, Pablo. A América de Rugendas: obras e documentos. São Paulo: Estação Liberdade: Kosmos, 1999.
- LIMA, Valéria. A Viagem Pitoresca e a História de Debret: por uma nova leitura. Tese de Doutorado. Departamento de História do IFCH – Unicamp, Campinas, 2003.
- REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias da vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século XIX. Dissertação de mestrado.Salvador: Ed. UFBA, 2001.
- RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins / Edusp, 1972.
- SALLAS, Ana Luisa Fayet. Imagens etnográficas de viajantes alemães no Brasil do século XIX. Revista Chilena de Antopologia Visual. Santiago, n. 7, junho 2006.
- FARIA, Sheila do Castro. Cotidiano dos negros no Brasil escravista.
- FREITAS, Iohana Brito de. Cores e olhares no Brasil oitocentista: os tipos negros de Rugendas e Debret. (Mestrado). UFF: Niterói, 2009.
- SLENES, Robert. Bávaros e Bakongo na “Habitação de negros”: Johan Moritz Rugendas e a invenção do povo brasileiro. Departamento de História IFCH/Unicamp, 1995 (mimeo).
- ________. As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na Viagem Alegórica de Joahnn Moritz Rugendas. Revista História da Arte e Arqueologia, n. 2, IFCH/Unicamp, 1995-1996 p. 271-536.
- ________. Lares negros, olhares brancos: história da família escrava no século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, n. 16, mar-ago 1988, p. 189-203.
- ________. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil sudeste, séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
- ________. “Malungu, ngoma Vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, 12:48-67. São Paulo, dez.-jan.-fev. 1991-2, e Cadernos do Museu da Escravatura, 1. Luanda, 1995.
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