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As Declarações dos Direitos do século XVIII: avanços e limites

25 de agosto de 2020

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Quando se pensa na história dos direitos civis e políticos é unânime pensar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 26 de agosto de 1789, em plena efervescência da Revolução Francesa, apenas seis semanas depois da queda da Bastilha. Esse documento tem sido exaltado na história ocidental como fundante dos direitos civis e políticos.

De fato, a Declaração de 1789 teve forte impacto no desenvolvimento das ideias de democracia e liberdade individual na Europa e no mundo. Contudo, ela não foi a primeira declaração dos direitos e nem foi plenamente respeitada ao longo da revolução. Encontrou oposição, já que democracia e direitos individuais foram frequentemente considerados sinônimos de anarquia e subversão.

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão tem um preâmbulo e 17 artigos.  O preâmbulo declara que “a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos” contrapondo-se ao Antigo Regime centrado no absolutismo monárquico e na sociedade de ordem, responsável por usurpar os direitos naturais do homem.

Os 17 artigos combinam direitos de várias categorias concentrando-se nos direitos civis que garantem a liberdade individual e nos direitos políticos, relativos à participação política. A declaração define os direitos “naturais e imprescritíveis” como a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Reconhece a igualdade, especialmente perante a lei e a justiça. Por fim, reforça o princípio da soberania popular e da separação entre os poderes.

A Declaração representava um grande avanço pelos direitos básicos do ser humano, apesar de ignorar os direitos sociais (direito à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho etc.). Estes, que servem para garantir mais igualdade (ou menos desigualdade) entre os cidadãos, seriam conquistados em sucessivos movimentos dos trabalhadores nos dois séculos seguintes.

O retrato icônico da Declaração dos Direitos

Ainda em 1789, quando a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão foi publicada, o pintor Jean-Jacques-François Le Barbier pintou uma representação do documento que se tornou um ícone por suas simbologias. A pintura a óleo traz o texto completo da Declaração, escrito em letras douradas, e disposto como as tábuas dos Dez Mandamentos.

A analogia traz uma mensagem clara: tal como as tábuas dadas Moisés representavam a aliança de Deus com o povo de Israel, a Declaração era a aliança do povo em benefício de toda a Nação, e seus artigos, a lei e o mandamento do cidadão.

Declaração dos Direitos do Homem

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pintura de Jean-Jacques-François Le Barbier, c. 1789, óleo sobre tela, 71 cm x 56 cm, Museu Carnavalet, Paris.

No centro do quadro, servindo como linha separadora dos artigos, há um feixe de varas unidas por uma correia ou fita. É um antigo símbolo romano (fasces), significando a soberania, a união e a força em torno do chefe. Diferente do fasces romano que traz um machado, este tem uma lança, símbolo da autoridade pública e do Direito tendo a função de proteger os contratos. A Declaração é um contrato social.

O barrete frígio (gorro vermelho) espetado na lança, é outro antigo símbolo romano. Era entregue ao escravo alforriado como sinal de sua libertação. Na Revolução Francesa, o barrete foi usado pelos sans-culottes e burgueses como símbolo da liberdade e de adesão à causa revolucionária. Hoje serve, também, de símbolo do Senado dos Estados Unidos.

A figura feminina à esquerda representa a Nação ou o povo francês: ela usa as cores da revolução (vermelho, azul e branco) e em suas mãos segura as algemas e correntes do Antigo Regime, agora rompidas. A Nação está coroada simbolizando a soberania popular.

O anjo à direita é o mensageiro divino. Sua mão esquerda aponta para o texto da Declaração enquanto a direita, segurando um cetro, símbolo de força e autoridade, aponta para o triângulo radiante.

O triângulo é o Olho da Providência ou do Pai omnisciente, que tudo vê, irradiando a luz divina. É o olho de Deus observando a humanidade. Representa a aprovação divina às normas ali presentes. É também símbolo adotado pela maçonaria significando o olho supremo da Razão e das Luzes que dissipam as nuvens da ignorância e da intolerância. O mesmo símbolo está presente, por exemplo, no verso das notas de um dólar e no selo dos Estados Unidos.

Influência da Revolução Americana (1775-1783)

A Revolução Americana, que precedeu a Revolução Francesa (1789-1799), influenciou os debates na Assembleia Nacional francesa em torno da declaração de direitos. Entre os deputados constituintes, havia treze nobres que tinham sido enviados à América por Luís XVI para apoiar a guerra de independência dos Estados Unidos. Incluía o marquês de La Fayette, o visconde de Noailles (que propôs o fim dos privilégios senhoriais e direitos feudais), o duque de Rochefoucauld d’Enville (que traduziu a Constituição americana de 1787 para o francês).

A Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, cujo principal autor foi Thomas Jefferson, baseou-se nas ideias de governo contratual de John Locke bem como no filósofo iluminista Montesquieu. Seu famoso preâmbulo declarava que todos os homens são criados iguais e têm direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Seguia-se uma lista detalhada dos atos de tirania cometidos pelo rei George III, seus ministros e Parlamento contra o povo americano, em tom semelhante ao da Declaração de Direitos Inglesa (Bill of Rights), de 1689.

Posteriormente, a Constituição dos Estados Unidos, em vigor em 1789, veio a primeira aplicação dos princípios iluministas. A constituição foi ratificada pelos treze estados americanos em 1790. Somente depois disso, em 1791, uma Declaração de Direitos foi incorporada ao texto constitucional como emendas (10 no total). Baseada nos princípios do Bill of Rights, de 1689, ela garantia a liberdade de expressão, de imprensa, de culto, de reunião e de petição. Os cidadãos americanos tinham direito a um julgamento rápido e justo, a uma fiança razoável e de portar armas. Não podiam ser forçados a incriminar a si próprios ou sofrer busca e apreensão injustificada ou punições cruéis e incomuns.

“Os homens nascem livres”

O preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, afirma que “todos os homens nascem iguais; foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; entre esses direitos estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. A Declaração francesa de 1789, seguindo o mesmo princípio, estabelece no artigo I: “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.

A expressão “os homens nascem livres” não se referia ao conjunto da população nem à humanidade em geral, mas limitava-se aos cidadãos livres e do sexo masculino. Não incluía, portanto, as mulheres, os africanos escravizados e os indígenas. Esses grupos eram invisíveis ao olhar crítico dos pensadores do século XVIII. Mesmo as mulheres tendo participado ativamente dos episódios da Revolução Francesa, elas foram mantidas  à margem dos direitos reivindicados pelos revolucionários. Nas colônias inglesas ocorreu o mesmo. Thomas Jefferson, um dos heróis da democracia norte-americana, era proprietário de mais de 180 escravos exatamente à época que redigia a declaração de independência proclamando que todos os homens foram criados iguais e com o direito à “vida, liberdade e à busca da felicidade”. Ele mesmo teria tido seis filhos com sua escrava Sally Hemings.

A declaração francesa ignora o direito à busca da felicidade, ao qual prefere as noções de utilidade ou interesse público. Ela também é mais tímida no diz respeito ao direito do cidadão de rejeitar e de se rebelar contra um governo opressor. Em seus 17 artigos, não há nenhum específico sobre isso, mas somente um vago direito de “resistência à opressão” (artigo II),  enquanto a declaração americana é explicita em afirmar o direito e o dever dos homens em rejeitar, abolir e estabelecer um novo governo diante de abusos e de usurpação dos direitos dos governados.

O direito das mulheres

Em setembro de 1791, a escritora francesa Marie Gouze, conhecida como Olympe de Gouges, redigiu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã reivindicando a inserção dos direitos das mulheres à Declaração de 1789.

A Declaração de Olympe de Gouges também consiste de um preâmbulo (dirigido à rainha Maria Antonieta) e 17 artigos. Nela, a autora proclama “A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem” (artigo I).

Não era, contudo, um mero contraprojeto para as mulheres, mas de universalização dos direitos. No preâmbulo, esclarece que “os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados” e reconhece que a nação “é a união da mulher e do homem” (artigo III). Em muitos trechos, Olympe substituiu “o homem” por “a mulher e o homem”, de modo a deixar clara a concordância entre os dois sexos. O artigo VII afirma firmemente que não há direitos especiais para as mulheres: “Nenhuma mulher é excluída [da lei]; ela é acusada, presa e detida em casos estabelecidos pela lei.”

Um princípio básico defendido por Olympe é que a identidade dos deveres deve conduzir à dos direitos. Assim, se a mulher contribui como o homem para a manutenção da força pública e para as despesas de administração, se ela “participa de todos os trabalhos ingratos, de todas as fadigas, deve então participar também da distribuição dos postos, dos empregos, dos cargos, das dignidades e da indústria (artigo XIII).

Olympe exigia tratamento igual para as mulheres em todas as áreas da vida, tanto públicas quanto privadas: ter direito ao voto e à propriedade privada, poder participar da educação e do exército e exercer cargos públicos, chegando mesmo a exigir igualdade de poder na família e na Igreja. A frase mais famosa de sua declaração é: “A mulher tem o direito de subir ao patíbulo [forca]; ela também deve ter o direito de ir ao pódio [palanque]” (artigo X).

A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã foi rejeitada pela Convenção em 1791. Durante o período do Terror (1792-1793), Olympe de Gouges se opôs à pena de morte e demonstrou apoio aos girondinos o que foi interpretado pelos jacobinos como traição à Revolução resultando na sua prisão e execução na guilhotina em 3 de novembro de 1793.

Sua Declaração foi esquecida e permaneceu ignorada por quase duzentos anos até ser publicada em 1986 pela militante feminista francesa Benîte Groult.

O significado histórico da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã reside no fato de ser a primeira declaração universal dos direitos humanos, isto é, que propõe um critério válido igualmente para homens e mulheres.

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