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O alfabeto da Grande Guerra para crianças francesas

8 de abril de 2024

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Alfabetos temáticos eram livros muito populares entre as crianças nos séculos XIX e XX. Cada letra correspondia a uma palavra que estava relacionada ao tema do alfabeto que podia ser, por exemplo, alfabeto de animais, de plantas, de flores, de frutas, de nomes de pessoas etc.

Logo no início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), foi publicado, na França, o Alfabeto da Grande Guerra que trazia na capa pour les enfants de nos soldats destinado, portanto, aos filhos dos soldados franceses. Com o recrutamento obrigatório, quase todas as crianças tinham um pai ou parente servindo no exército.

Capa do “Alfabeto da Grande Guerra”. Observe na datação que a guerra estava em curso quando o livro foi publicado em 1915.

O texto e as ilustrações eram de André Hellé (1871-1945), renomado pintor, ilustrador e designer de brinquedos de madeira.

Com o Alfabeto, as crianças aprendiam o vocabulário militar que em breve faria parte de todas as conversas em família. Este alfabeto não era usado oficialmente nas escolas, mas provavelmente muitas crianças receberam uma cópia ou tinham à disposição nas bibliotecas públicas.

As 26 letras do alfabeto receberam uma palavra relacionada à guerra e, em especial, às forças militares francesas. Os textos são patrióticos, exaltam a coragem e o poder bélico da França e até vingativos para com os alemães. As ilustrações nunca mostram combates, violência, mortes nem tropas inimigas.

O Alfabeto da Grande Guerra é hoje tema de estudo nas escolas secundárias da França cujos alunos fazem uma leitura crítica dos textos e imagens em seu contexto histórico.

Acompanhe, a seguir, letra por letra como o Alfabeto apresenta a guerra às crianças.

Índice e letra A.

O índice (table de matières) traz sete soldados uniformizados representando os diferentes corpos do exército francês e dos aliados e, embaixo, suas respectivas bandeiras.

A – Alsace, a primeira letra do alfabeto é dedicada à Alsácia. A imagem mostra a população recebendo com flores as enérgicas tropas francesas.

Localizada a oeste do Reno e fronteira natural que separa a França da Alemanha, a Alsácia foi anexada ao Império Alemão em 1871. Em 1914, depois da Alemanha ter declarado guerra, as tropas francesas cruzaram a fronteira para reconquistar a Alsácia. “

Letras B e C.

B – batterie refere-se às armas de artilharia. A imagem retrata uma carroça puxada por cavalos levando um canhão, e o texto elogia o canhão de fabricação francesa.

“  Leve, flexível, preciso e rápido, o canhão 75, obra dos Coronéis Deport e Sainte-Claire-Deville, ganhou popularidade inegável desde o início da guerra, graças ao seu maravilhoso disparo. A bateria francesa de 75 consiste em quatro canhões.”

C – charge (carga) refere-se a uma manobra militar em que tropas avançam sobre seus inimigos como mostra a ilustração de soldados correndo em direção ao inimigo.

“Apesar do uso de armas de longo alcance, é o ataque de baioneta, é a luta corpo a corpo, homem a homem, que decide a vitória. A carga de baioneta é o momento supremo do combate.”

Letras D e E.

D – drapeau (bandeira) cercada por soldados em posição de sentido.

“Emblema nacional, a bandeira é também o sinal de mobilização dos soldados que se reúnem à sua volta para a seguir e defender. Uma bandeira pode ser decorada quando o regimento a que pertence se destacou em combate. »

E – estafette (correio ou mensageiro) que aparece pilotando uma motocicleta e à frente das tropas a cavalo.

“Responsáveis ​​por manter contato com tropas distantes entre si, para que os diferentes movimentos de uma ação possam ser coordenados, os mensageiros, também chamados de agentes de ligação, cumprem uma missão perigosa que exige coragem e determinação.”

Letras F e G.

F – factionnaire (oficial sentinela) apresenta um soldado escondido atrás de uma árvore. Este, carregado com todo o seu equipamento, está instalado em uma posição desconfortável.

“Com os olhos alertas, escondido o melhor que pode, o sentinela olha e escuta. É da atenção que ele dá à sua função que depende o destino das tropas que estão atrás dele, a quem ele deve alertar sobre a aproximação dos inimigos.”

G – grand’garde, a tropa da frente de combate.

“À frente das forças principais, os Grandes Guardas são instalados para deter um movimento ofensivo do inimigo e dar tempo às tropas que cobrem para se prepararem para a defesa ou para enviarem reforços para repelir o atacante.”

Letras H e I.

H – Highlander refere-se ao soldado do regimento escocês que são apresentados de uma forma mais folclórica do que militar.

“A Grã-Bretanha, aliada da França, enviou vários regimentos highlander ao continente. Esses soldados de elite, originários das montanhas da Escócia, usam o kilt, uma pequena saia curta que deixa os joelhos expostos, e partem para o ataque ao som de gaitas de foles. »

I – infirmièr (enfermeira), a única presença feminina no livro.

“Nas ambulâncias, nos hospitais e até nos campos de batalha, mulheres devotadas vêm em socorro dos feridos e prestam-lhes os cuidados prescritos pelos médicos sob cujas ordens se colocaram voluntariamente.”

Letras J e K.

J – Joffre, referência ao general Joseph Jacques Joffre que tornou-se conhecido por ter vencido os alemães na primeira batalha do Marne, em 1914.

“Depois de ter decidido que “todos os esforços do exército devem ser usados ​​para atacar e repelir o inimigo”, o general Joffre, generalíssimo das forças franco-inglesas, conquistou, em 13 de setembro, a vitória do Marne e aniquilou o repentino plano de ataque. »

K – kilomètre (quilômetro) refere-se à extensão da frente de combate a leste e oeste da França.

“Nenhuma guerra reuniu um número tão grande de combatentes ou incluiu operações que ocorreram numa frente tão extensa (aproximadamente 3.000 quilómetros) como a grande guerra europeia de 1914.”

Letras L e M.

L – lance-bombe (lança-bombas), uma arma de fogo antiga mas que ainda foi utilizada na Primeira Guerra Mundial.

“Os exércitos da Grande Guerra utilizavam canhões de longo alcance que lançavam os seus projéteis por mais de 30 quilômetros; também utilizavam, para a guerra de trincheiras, morteiros ou lança-bombas em uso no século XVII.”

M – mitrailleuse (metralhadora), inventada no final do século XIX, ela foi amplamente utilizada na defesa das trincheiras, camufladas em posições estratégicas.

 “Espreitando no abrigo de uma trincheira, as metralhadoras muitas vezes param, com seu fogo rápido e mortal, o ímpeto de um adversário determinado: em um crepitar feroz, cospem constantemente seus projéteis: a linha inimiga se curva, recua e o ataque é interrompido.”

Letras N e O.

N – noir (negro) em alusão às tropas coloniais da África convocadas para lutar pela França.

“As Tropas Negras formadas com os nativos das colônias francesas da África, Argélia, Marrocos e Senegal foram transportadas para o Norte desde o início das operações e participaram das batalhas da Grande Guerra.”

O – observateur (observador) que, instalado em cesta suspensa, avista os movimentos de tropas.

“Graças ao uso do balão, os oficiais observadores podem surpreender os movimentos do inimigo ou localizar a posição de sua artilharia. Eles transmitem suas observações ao comando, que toma as providências necessárias.”

Letras P e Q.

P – poilu (“peludo”), apelido dado aos soldados franceses que estiveram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Poilu era o homem de barba e cabelo mal-cuidados, associado ao indivíduo corajoso e viril. O termo remonta às tropas da Convenção, de 1793.

“Assim como os soldados da Convenção lutaram em 1793 pelos Direitos Humanos, os “poilus” da Grande Guerra, barbudos ou não, lutam pelos Direitos das Nações contra a opressão e a supremacia da Alemanha.”

Q – quartier-géneral (quartel-general) refere-se à base militar onde todas as operações são estudadas e decididas.

“É no quartel-general que todas as informações relativas à localização, às forças e aos recursos do inimigo são centralizadas. É do quartel-general que são enviadas as ordens de ataque, permanência ou retirada, dependendo da situação.

Letras R e S.

R – russe (russo) alusão ao aliado da Tríplice Entente; mostra um soldado russo a cavalo, de prontidão, resistindo aos rigores do inverno.

“Desde o início da guerra, a onda gigantesca que é o exército russo tem atingido a fronteira austro-alemã com todo o peso dos seus nove milhões de homens, utilizando, no seu fluxo e refluxo, as forças dos seus adversários.”

S – sous-marin (submarino). Um submarino emergindo das águas é a única representação da superioridade do armamento alemão. O texto, porém, destaca as ações ilegais contra civis  realizadas pelos submarinos alemães.

“Os submarinos devem ficar à espreita e torpedear navios de guerra inimigos. Contra a lei das nações, os submarinos alemães destruíram navios mercantes, com os seus passageiros, e estes eventos foram celebrados pelos alemães como grandes vitórias navais. “

Letras T e U.

T – tranchée (trincheira) mostra soldados nas trincheiras que observam, através de um periscópio, o que está acontecendo no terreno.

“Para se proteger da artilharia, a infantaria cava abrigos no solo e ali se esconde: esses abrigos são trincheiras. Por meio do periscópio, dispositivo de espelho que se estende além do aterro da trincheira, o vigia acompanha os movimentos do inimigo. »

U – uniforme refere-se ao uniforme dos soldados franceses: jaqueta ou casaco azul, calça vermelha e quepe azul e vermelho. As cores vistosas dos uniformes mostraram-se excessivamente visíveis, não apenas durante o dia mas também à noite, dificultando o soldado se ocultar. Depois da guerra, o uniforme foi mudado.

“Um uniforme muito visível traz muitas desvantagens para a tropa que o veste. Na França, o uniforme azul claro ou “azul céu” substituiu o sobretudo índigo e as calças vermelhas que podiam ser vistas de longe.”

Letras V e W.

V – voiture (viatura), os carros blindados. O texto menciona o “zepelin”, um tipo de aeróstato dirigível usado como bombardeio pelos alemães, e o “taube”, um avião monoplano, o primeiro avião de combate produzido na Alemanha.

“Automóveis blindados, portando canhões ou metralhadoras, realizam reconhecimentos ousados, acompanhando os zepelins e os taubes com seu fogo e preocupando o inimigo com sua mobilidade. Na maioria das vezes são dirigidos por artilheiros e marinheiros.”

W – wagon (vagão). O texto exalta os blindados belgas, aliados dos franceses.

 “Os belgas, cujo território neutro foi violado pelos alemães, ofereceram uma resistência heroica aos seus invasores. Os trens blindados belgas, armados com canhões, podem se deslocar a toda velocidade até o local do combate e apoiar as manobras de infantaria.”

Letras X e Y.

X – refere-se aos obstáculos defensivos, feitos de ferro em forma de X (chamados cheval de frise, em francês, cavalo de frisa) que serviam de barreira para proteger as trincheiras.

“As trincheiras são flanqueadas por metralhadoras. Estão, além disso, protegidas contra ataques inimigos por redes de arame farpado, por fossos e por uma fila de cavalos de frisa que têm a forma de X com pontas afiadas.”

Y – yacht (iate) refere-se às embarcações utilizadas pela Cruz Vermelha para transportar os soldados feridos.

“Barcaças e iates de recreio foram especialmente equipados para a Cruz Vermelha receber feridos próximos às linhas de combate e transportá-los, por via marítima, até o local de sua evacuação.”

Letra Z.

Z – zouave (zuavo) refere-se às unidades de infantaria ligeira formadas por soldados da Argélia. O texto tem um toque de ironia afirmando que os zuavos só foram criados para preencher a última letra do alfabeto.

“  Um humorista disse que os zuavos foram criados para servir de tema à última letra dos alfabetos ilustrados. Mas esta certamente não é a sua única razão de ser. Os soldados alemães que os viram trabalhando puderam testemunhar isso.”

O Alfabeto da Grande Guerra continuou sendo editado mesmo depois de terminada a guerra. Pode-se pensar o efeito dessa leitura sobre as criança em que a guerra é naturalizada e “higienizada” de toda violência e horror. Menos de vinte anos depois do fim da Primeira Guerra, estourou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Aquelas crianças que lerem o Alfabeto eram, então, adultos, recrutados para o combate contra o mesmo inimigo.

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