Mitos, lendas, contos populares são narrativas oriundas da tradição oral, cuja origem se perde no tempo e que são transmitidos de geração para geração. Por sua natureza fantástica e personagens sobrenaturais, atribui-se à palavra mito o sentido de invenção, ficção, ilusão, narrativa inverídica, inventada. Talvez por isso os mitos tenham sido banidos do ensino de História como o foi da Filosofia que opõe o mito ao “logos”, o relato racional, analítico, verdadeiro.
Daí muitos perguntarem: “Pra que serve a mitologia?” “Quem precisa de mitos e deuses no mundo tecnológico de hoje?”
O que essas pessoas não sabem, é que nossa sociedade está carregada de rituais de mitologia. Uma cerimônia de casamento ou de formatura, um baile de debutantes ou a posse de um presidente da República evocam rituais antiquíssimos assentados na mitologia. O tribunal, com juízes de toga, espaços delimitados e regras de conduta é um local carregado de força ritualística da mitologia.
Quando o juiz adentra o recinto do tribunal e todos se levantam, você não está se levantando para o indivíduo, mas para a toga que ele veste e para o papel que vai desempenhar. (…) Com isso, você está se erguendo diante de um personagem da mitologia. (…) Quando se torna juiz ou presidente dos Estados Unidos, um homem deixa de ser o que era e passa a ser o representante de uma função eterna; deve sacrificar seus desejos pessoais e até mesmo suas possibilidades de vida em nome do papel que agora desempenha. Isso quer dizer que há rituais oriundos na mitologia atuando em nossa sociedade. (Campbell: 1990)
Mircéa Eliade (1907-1986) e Joseph Campbell (1904-1987) foram os maiores estudiosos de mitologia e seus trabalhos são ainda hoje referência para antropólogos, historiadores e psicanalistas interessados nos mitos.
A Antropologia entende a mitologia como a expressão de uma consciência humana mais profunda, uma reflexão alegórica capaz de revelar os valores morais de uma sociedade (Malinowski) ou o pensamento e as estruturas sociais de um grupo (Lévi-Strauss). Para a História, a mitologia é uma representação de episódios verdadeiros do passado. Assim, a Ilíada e a Odisseia são importantes documentos para compreender as sociedades do período pré-homérico. A Psicanálise utilizou o mito como base para o estudo da mente humana que expressa o inconsciente individual, segundo Freud, ou o inconsciente coletivo, como afirmava Jung.
Todas as sociedades elaboraram mitos e eles continuam vivos sendo permanentemente renovados ou recriados como se vê em muitos jogos eletrônicos. Umberto Eco, por exemplo, estuda os mitos da sociedade ocidental contemporânea presentes na propaganda e no cinema.
Os mitos em sala de aula
Independente do estudo e da abordagem dada à mitologia, os mitos exercem grande fascínio sobre nossas mentes. Em sala de aula, a mitologia atua no aluno em duas direções: na imaginação e no sentimento. O aluno deixa-se levar pela narrativa e a desenha mentalmente estimulando sua imaginação e criatividade. Ao mesmo tempo, emociona-se com os episódios percebendo intuitivamente o valor simbólico das metáforas e – talvez seja o mais importante – reconhecendo, nas figuras da mitologias, contradições, tal qual o ser humano.
Os mitos antigos, em especial os mitos gregos, são carregados de qualidades contraditórias, têm um lado positivo e outro negativo. Hermes tanto pode ser visto como símbolo da inteligência realizadora humana como a representação das perversões desta inteligência: ele é malicioso, trapaceiro e mentiroso. Zeus é a fonte da verdade, o juiz dos mortais e imortais mas é, também, uma divindade despótica e voluntariosa.
Uma aula destinada ao estudo de mitologia deve privilegiar a sua narração oral, de preferência feita pelo professor. Lendo ou não, o professor deve usar toda a expressividade de voz, gestos e expressão facial para dar vida ao mito. Neste momento, perante a classe, ele se transforma em um antigo contador de história, um aedo ou um griot cuja maior intenção é prender a atenção dos ouvintes. Não precisa de imagens nem de projeção de Power Point. Deixe que cada aluno crie o rosto das figuras da mitologia e imagine os detalhes de cada cena.
A espontaneidade da fala e a dramatização do narrador são as marcas de seu discurso. A narração ou leitura bem feita pelo professor tem ainda um outro efeito didático: ela estimula a leitura espontânea do aluno. Atento à história que causou tanta emoção, o aluno buscará, mais tarde, reviver a experiência. No silêncio de seu quarto, ele retomará o texto e, lendo em voz alta, ele reproduz a fala do professor, suas inflexões vocais, sua linguagem gestual e facial. O bom ouvinte torna-se assim, um bom leitor.
Mitos mais longos, incluindo as epopeias e sagas que fazem parte de nossa herança cultural como a Guerra de Troia ou Os Cavaleiros da Távola Redonda, por exemplo, demandam um tempo de aula que nem sempre o professor dispõe. Uma sugestão, é iniciar sua narração em sala de aula e parar no momento mais emocionante deixando ao aluno a tarefa de buscar o restante do mito. Outra estratégia é contar um pedaço diferente para cada turma e pedir aos alunos que recolham as partes e recomponham a narrativa.
Dessa forma, a narração do mito torna-se um estímulo à leitura e pesquisa do aluno, além de um recurso para o desenvolvimento de sua criatividade e imaginação.
A força simbólica dos mitos
Os mitos nasceram em um período pré-lógico e, por isso, têm uma linguagem própria, altamente metafórica que admite vários níveis de leitura. Sua força reside na capacidade de adquirir significados novos pela sua permanente atualização. Como lembra Campbell:
O mito guarda um saber fundamental e um valor simbólico. Não é uma mentira, mas uma metáfora, uma poesia que fala mais à alma do que ao intelecto. São histórias sobre a sabedoria de vida. São os sonhos do mundo e lidam com os grandes problemas humanos. (…) O mito me fala (…) como reagir diante de certas crises de decepção, maravilhamento, fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou. (Campbell: 1990)
Daí o cuidado do professor em evitar a tentação em analisá-los ou interpretá-los. Esta atitude racional (um vício de nossos tempos) destrói a força simbólica da mitologia, engessa a explicação eliminando outras possibilidades interpretativas e corrói a imaginação do aluno padronizando imagens e símbolos.
Explicar a mitologia é como explicar a piada: perde-se a graça e a espontaneidade. Ele basta por si. Para cada ouvinte ele terá um valor e cairá como semente para germinar no tempo certo. Isso lembra um episódio vivido por mim.
Anos atrás, lecionando História no ensino médio do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, precisei substituir uma colega ausente e fui orientada a não dar sequência ao tema em andamento. Diante de uma classe lotada vi-me na espinhosa tarefa de dar uma aula sem conteúdo. Como o tema era Idade Média, decidi, então, contar um mito celta: o rei Artur e a espada Excalibur.
O silêncio e os olhos fixos dos alunos na narração pesavam na minha consciência. Dentro de mim gritava o intelecto de professora: “Isso não é aula de História!”. Mas fui até o final e fiquei aliviada quando o sinal bateu devolvendo-me à rotina profissional. Passaram-se alguns anos, a turma entrou na faculdade e não nos vimos mais.
Um dia, no intervalo, recebi a visita de um ex-aluno que não reconheci de imediato. “Sou da turma do rei Artur”, foi a sua apresentação. Ri envergonhada lembrando do adolescente complicado, com notas baixas e disciplina sofrível, o tipo de aluno que lamentamos ter pouca chance de vencer na vida. Para minha surpresa, ele se formara no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e estava se preparando para um estágio no exterior. Olhando-me nos olhos, ele me disse: “Professora, eu forjei a minha própria espada.”
Aquele garoto entendeu a mensagem poderosa e subliminar da mitologia, e me deu uma lição: o ensino deve conectar o aluno com o saber exterior e suas forças interiores. O mito pode ajudar nessa conexão.
Fonte
- CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
- ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2002.
- ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 1999.
- MARCUS, Cid. Visões do mito. Disponível aqui.
Durante boa parte da Idade Média os feitos do Rei Artur eram narrados como se o possuidor da excalibur, e todo o ciclo arturiano, realmente tivessem existido. Até hoje busca-se evidências arqueológicas da existência de Artur.
O que se sabe é que a lenda nasceu por volta dos séculos V e VI quando o Império Romano esfacelava-se com as invasões germânicas. A província da Britânia tinha uma situação peculiar: foi uma das últimas a ser integrada ao Império Romano mas a conquista nunca se consolidou de fato. Parte da população bretã romanizou-se e adotou o cristianismo sem, contudo, submeter-se à Igreja de Roma; as tradições celtas e o paganismo permaneceram fortes em toda ilha. Foi nesse caldeirão cultural cristão e pagão, com costumes romanos, celtas e germânicos, que a lenda nasceu apoiando-se em elementos reais, porém… Leia mais »