Depois de governarem o Egito por quase cem anos (25ª Dinastia Egípcia, 750-660 a.C.), os kushistas foram expulsos pelos assírios e retornaram ao seu país onde reorganizaram o reino de Kush, mais ao sul.
Méroe, a nova capital kuschita
O rei Aspelta (c.600-580 a.C.) mudou a capital para Méroe, mais ao sul de Napata. A escolha da nova capital pode ter sido determinada pelas densas florestas de Méroe, necessárias para fornecer combustível para os fornos de fundição de ferro.
Além disso, a localização de Méroe permitia que as mercadorias fossem transportadas pelo mar Vermelho onde mercadores gregos, indianos e asiáticos viajavam extensivamente. Com isso, Kush se libertava da dependência do rio Nilo para o acesso ao comércio exterior.
Méroe deu continuidade ao esplendor kushita estendendo-o por mais mil anos. Os reis meroítas conservaram alguns traços da cultura egípcia como os sepultamentos em pirâmides. Mas adotaram detalhes arquitetônicos e costumes próprios.
Pirâmides e templos meroítas
As pirâmides meroítas, menores e mais íngremes do que as egípcias, simbolizavam a escada para o céu que conduzia a alma do rei morto. A múmia era enterrada em uma sepultura subterrânea, abaixo da pirâmide, e não dentro dela como faziam os egípcios. Na parte externa, uma pequena capela guardava as oferendas para a alma do rei em sua viagem ao outro mundo.
Os meroítas construíram muito mais pirâmides do que os faraós egípcios. Já foram descobertas 233 pirâmides ao redor de Méroe, cem a mais das do Egito.
Enquanto as pirâmides garantiam a vida pós-morte, a vida terrena dos meroítas estava sob a proteção de diversos deuses, entre eles, Apedemak, o deus com cabeça de leão, protetor dos exércitos.
O templo do Leão erguido por volta de 230 a.C. mostra o casal real saudando Apedemak, o deus da guerra e Rá, o deus Sol. O casal real foi representado, também, na fachada principal do templo onde ambos aparecem subjugando os inimigos e ameaçando-os com uma espada. Aos pés da rainha está o leão Apedemak, simbolizando a autoridade soberana da rainha.
O rei meroíta
A realeza de Méroe, assim como em Napata, revestia-se de um caráter sagrado. O rei era considerado filho adotivo de diversas divindades. Não se sabe até que ponto ele mesmo se considerava uma divindade ou sua encarnação. Designado pela vontade divina, o rei dispensava julgamento e justiça e suas ações eram vistas como guiadas pelos deuses.
Candaces, as rainhas negras meroítas
Desde o período Napata, as mulheres de sangue real ocupavam posições proeminentes e cargos importantes no reino de Kush. Quando soberanos kushitas governaram o Egito (25ª dinastia, dos “faraós negros”), a função de grande sacerdotisa do deus Âmon, em Tebas, era exercida pela filha do rei, o que lhe conferia grande influência econômica e política. O importante papel da rainha-mãe nas cerimônias de escolha e coroação de seu filho é mencionado pelos reis kushita Taharqa e Anlamani, no século VII a.C.
Posteriormente, as rainhas-mães passaram a assumir o poder político e proclamaram-se soberanas, chegando a adotar o título real de “Filho de Rá, Senhor das Duas Terras”. Muitas delas tornaram-se famosas e, entre os séculos II a.C. e IV d.C., Méroe teve um matriarcado tipicamente local em que o poder foi exercido por uma linhagem de Candaces ou Kandake, título derivado da palavra meroíta Ktke ou Kdke que significa rainha-mãe.
Conhece-se o nome de oito candaces em que se destacam: Shanakdakhete (177-155 a.C.), Amanirenas (40-10 a.C.), Amanishaketo (10 a.C.-1 d.C.) e Amanitore (1-20 d.C.).
A candace Amanirenas desafiou as legiões romanas combatendo-as em uma guerra que durou cinco anos (27-22 a.C.). Seu exército de 30 mil guerreiros aniquilou as tropas romanas comandadas por Petrônio, forçando o imperador Augusto a celebrar um tratado de paz com a candace em condições favoráveis aos meroítas: os romanos foram obrigados a entregar os pontos que tomaram e os meroítas ficaram isentos da obrigação de prestar homenagem ao imperador romano.
Não se sabe com certeza se o tratado com os romanos foi firmado pela candace Amanirenas ou por sua sucessora Amanishaketo. Os historiadores romanos Estrabão, Plínio e Díon Cássio referem-se à rainha meroíta de forma pejorativa descrevendo-a com um olho só e de “aparência viril”. De qualquer forma, este arranjo manteve-se até o final do século III d.C., com relações, em geral pacíficas, entre Méroe (que os romanos chamavam de Nobatae) e o Egito romano.
Em 1834, a pirâmide da candace Amanishakheto foi saqueada por Giuseppe Ferlini, um caçador de tesouros que destruiu dezenas de pirâmides meroítas em busca de ouro. As joias encontradas pelo aventureiro surpreenderam o mundo: elas testemunham o esplendor do Reino de Méroe. São coroas, anéis, braceletes, pingentes, broches, selos reais, colares de ouro com incrustações de concha, cornalina, faiança e lápis-lazúli.
Escrita meroíta
Os meroítas registraram sua história em pedra, em papiros e nas paredes dos templos. Aos poucos, os hieróglifos egípcios restringiram-se ao tribunal e templos.
A partir do século II a.C., desenvolveram um sistema de escrita alfabética, com 23 sinais representando consoantes, vogais e silábicas. Em 1909, o especialista inglês F.L. Griffith achou a chave para a decifrar algumas palavras, especialmente nomes. Mas não avançou muito além disso e a escrita meroíta permanece indecifrada. Não se conseguiu, também, relacionar a língua meroíta a outras línguas conhecidas.
Fim do reino de Méroe e da Núbia
Por volta de 350 d.C., o reino meroíta foi invadido pelo império de Axum e desmoronou. A penetração do cristianismo através do Egito mudou costumes e valores meroítas.
A partir dos séculos VII e VIII, contínuas migrações de árabes no Egito e Sudão acabaram por suprimir a identidade cultural núbia. A maior parte da população adotou a língua árabe e a religião muçulmana. Em 1504, quando a Núbia foi dividida entre o Egito e o sultanato de Sennar, já nada mais restava da cultura ancestral.
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Veja a primeira parte desse artigo:
Fonte
- LECLANT, J. O Império de Kush: Napata e Méroe. In: MOKHTAR, Gamal (editor). Op. cit, cap. 10, p. 273-295.
- HAKEM, Ali A. M. Ali. A civilização de Napata e Méroe. In: MOKHTAR, Gamal (editor). Op. cit, cap. 11, p. 297-331.
- KI-ZERBO. História da África Negra. Lisboa: Publicações Europa-América, 1999.
- M’BOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações. Lisboa: Vulgata, 2003.
- COSTA E SILVA, Alberto da. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
- Site The Nubian Net. http://www.thenubian.net/
- Sudan’s pyramids, nearly as grand as Egypt’s, go unvisited. News Network Archaeology.
[…] Na Núbia surgiram reinos poderosos tão brilhantes e antigos quanto o Egito. Durante séculos, as riquezas do reino de Kush foram levadas para o Egito. Mais tarde, por volta de 750 a.C., a situação se inverteu: Kush conquistou o Egito. Faraós kushitas governaram o Egito na 25ª dinastia, conhecida como “Dinastia dos Faraós Negros” (750 a 660 a.C.). A partir do século VII a.C., as histórias das duas civilizações seguiram caminhos diferentes. O reino de Kush reorganizou-se mais ao sul da Núbia, tendo por capital a cidade de Méroe (veja o vídeo sobre o período Meroíta aqui.) […]
[…] A partir do século VII a.C., as histórias das duas civilizações seguiram caminhos diferentes. O reino de Kush reorganizou-se mais ao sul da Núbia, tendo por capital a cidade de Méroe (veja o vídeo sobre o período Meroíta aqui.) […]
Excelente material professora (res). Sou apaixonado por história.
Quem ignora a história não conhecerá a verdade de seu presente.