Ao contrário do que muitos ainda pensam, a Idade Média não foi um longo tempo de letargia e obscurantismo. Ao contrário, foi um período de muitas mudanças em todos os campos: político, econômico, social, religioso e tecnológico. Jean Gimpel chega a afirmar que entre “os séculos XI e XIII, a Europa Ocidental conheceu um período de intensa atividade tecnológica e é uma das épocas da História da humanidade mais fecunda em invenções. Essa época poder-se-ia chamar a primeira revolução industrial” (GIMPEL, 1977).
Devemos à Idade Média um enorme e variado legado: óculos, papel, livro, universidades, botão, anestesia, moinho de vento… Selecionamos vinte itens e, para não deixar a leitura cansativa, eles foram divididos em dois artigos. Nesse artigo, trataremos do seguinte conteúdo:
CONTEÚDO
- A invenção dos óculos
- A invenção do livro
- A difusão do papel
- A difusão dos algarismos indo-arábicos
- Anestesia: a invenção árabe das esponjas para dormir
- A criação das Universidades
- Letras de câmbio, nota promissória, contabilidade, bancos
- Montepio: o ancestral do empréstimo consignado
- Escala e nomes das notas musicais
- A invenção do relógio mecânico
1. A invenção dos óculos
Os óculos de leitura colocados no nariz como auxílio visual para ambos os olhos foram inventados no final do século XIII no norte da Itália, possivelmente em Pisa. Tinham lentes polidas conexas fixadas em aros de ferro unidos por rebites, semelhantes a um compasso. Não possuíam hastes que só surgiram no século XVII. Os óculos medievais ficavam presos no nariz.
Não se sabe quem inventou os óculos, mas foram os monges os primeiros e os mais beneficiados com a inovação. Os óculos permitiram-lhes continuar o trabalho de leitura e cópia de manuscritos mesmo em idade avançada.
Por volta de 1300, a produção de óculos já estava estabelecida em Veneza, o grande centro de produção de vidro na época. Mas a técnica de fabricar os vitreos ab oculis ad legendum (“óculos de leitura”) era mantida em segredo pelas guildas venezianas.
2. A invenção do livro
O livro também foi uma invenção medieval. Na Antiguidade, existia o rolo de papiro que era chamado de volumen (do latim volvere, envolver, enrolar). O rolo de papiro era incômodo para ler e exigia que o leitor o manuseasse com as duas mãos desenrolando o papiro. Isso dificultava ou mesmo impedia que o leitor escrevesse durante a leitura. Para encontrar uma informação era preciso desenrolá-lo, às vezes inteiramente. Além disso, o papiro é um material frágil o que dificultava inserir ilustrações e não permitia escrever dos dois lados da folha.
A partir do século I d.C. surgiram os códices (codex) que facilitaram muito a leitura. O códice assemelhava-se a um caderno. Consistia em várias folhas de pergaminho, material feito de pele de bezerro, cabra ou ovelha, dobradas ao meio e unidas umas às outras, costuradas com um fio e encadernadas na lombada. Os primeiros textos cristãos foram divulgados em códices diferenciando os Evangelhos dos rolos em que os judeus escreveram a Torá.
O códice causou uma revolução comparável à da invenção da escrita. O texto distribuído em folhetos encadernados mudou a organização do texto e a forma de leitura e estudo. Como o códice é mais fácil de colocar na mesa e mantê-lo aberto, o leitor pode fazer anotações durante a leitura.
Graças ao códice, o leitor acessa diretamente um capítulo ou uma passagem do texto, enquanto o rolo impõe uma leitura contínua. O códice permite a leitura seletiva e não contínua, o leitor pode ir diretamente a um ponto específico do texto e comparar diferentes trechos de uma mesma obra. O códice contribui assim para a desenvolvimento de estruturas mentais mais complexas.
O códice foi o precursor imediato do livro. Sua forma foi sendo aprimorada durante a Idade Média e, gradualmente, o códice foi tendo as características de um livro moderno.
3. A difusão do papel
O papel não foi uma invenção europeia nem medieval, mas foi durante a Idade Média que o papel foi conhecido, difundido e aprimorado na Europa.
Inventado na China no século II, o papel era feito de fibras de linho, cânhamo ou casca de amoreira. Da China, o papel chegou aos reinos vizinhos no Oriente e, no século VIII, aos árabes. Estes tornaram Samarcanda, no atual Usbequistão, na Ásia Central um centro de produção de papel.
A técnica árabe de fabricar o papel chegou à Espanha muçulmana no século XII. Em 1150, os árabes instalaram uma fábrica de papel na região de Valência. Apesar da resistência de alguns governantes devido ao seu caráter perecível, o papel foi tendo cada vez mais consumo devido ao seu preço baixo. A fabricação de papel deu origem a um novo tipo de trabalho: a coleta de trapos exercida pelo trapista.
Em 1264, instalou-se a primeira fábrica de papel da Europa, na cidade italiana Fabriano. Os italianos aprimoraram a produção tornando-a mais eficiente do que a dos chineses e árabes. A fama do papel de Fabriano chegou aos nossos dias e, até recentemente, era ali que se fabricava o papel-moeda da Itália e de muitos outros países europeus.
4. A difusão dos algarismos indo-arábicos
Foi durante a Idade Média que os algarismos que hoje conhecemos chegaram à Europa. Eles tiveram sua origem na Índia e chegaram no Oriente Médio por volta de 670. Daí se difundiram no mundo islâmico incluindo a Espanha muçulmana e depois o resto da Europa. No século IX, matemáticos persas e árabes escreveram obras a respeito dos cálculos com números indianos contribuindo para a difusão desse sistema de numeração.
O mais antigo uso de algarismos arábicos na Europa está no Códice Virgilianus, um manuscrito espanhol de 976. Pouco tempo depois, o papa Silvestre II, que estudara em Barcelona durante sua juventude, utilizou o sistema de numeração indo-arábico em seus ofícios ajudando a torna-lo conhecido na Europa.
Leonardo Fibonacci (c. 1170–1250), matemático italiano que estudara em Bugia (Argélia) aprendeu o sistema de contas que usamos até hoje. Ele publicou o novo método em seu tratato Liber Abbaci, de 1202, um dos primeiros livros ocidentais a descrever os algarismos indo-arábicos. Graças a ele a nova numeração difundiu-se, primeiro na Itália e logo em toda a Europa. No entanto, Fibonacci não deu ao zero o mesmo status que os outros números. O uso do zero na aritmética prática só ganhou aceitação muito mais tarde, no século XVII.
5. Anestesia: a invenção árabe das esponjas para dormir
Na Antiguidade, numerosos povos (como os assírios, egípcios, gregos e romanos) conheciam o efeito analgésico ou entorpecente das sementes de um tipo de papoula, das quais o ópio era obtido. Também usavam a mandrágora, beladona e cicuta para aliviar a dor. Eram administrados via oral ou aplicados localmente. Contudo, muito desse conhecimento perdeu-se nos primeiros séculos da Idade Média.
Foram os árabes do mundo islâmico que recuperaram o conhecimento antigo sobre analgésicos. Eles tiveram acesso aos trabalhos de Dioscórides, um médico greco-romano do século I d.C., considerado o fundador da farmacognosia, um dos mais antigos ramos da farmacologia. No século XI, Avicena (c.980-1037), um expoente da medicina islâmica, recomendava o ópio (af-yun, em árabe) como poderoso analgésico.
No século IX, surgiu entre os médicos árabes, referências à spongia somnífera (esponja sonífera) como um método para anestesiar por inalação. A esponja era umedecida com extratos vegetais de várias plantas: ópio, mandrágora, cicuta e hiosciano e colocada sob as narinas do paciente até que ele dormisse.
A esponja sonífera difundiu-se para fora do mundo islâmico chegando à Europa cristã medieval. Com algumas variantes na composição, há receitas de esponjas soníferas que datam do século IX (Montecassino), do XIII (Bolonha) e do XV (livro de receitas de Catarina Sforza). Por volta de 1400, o cirurgião alemão e cavaleiro teutônico, Heinrich von Pfalzpaint recomendava incluir na esponja sonífera extrato de amoras amargas, eufórbia, meimendro, hera, sementes de bardana e alface; depois, para despertar o paciente, uma esponja embebida no vinagre.
As esponjas para dormir foram utilizadas até o início da Idade Moderna, sendo um dos poucos métodos eficazes para reduzir a dor cirúrgica.
6. A criação das Universidades
A universidade é uma criação da Europa medieval. Suas origens encontram-se nas escolas dos mosteiros e catedrais que remontam ao século VI. Fundadas a partir do século XI, as universidades eram associações de mestres e alunos que, inicialmente, estavam sob a autoridade do bispo da cidade. Logo surgiram conflitos de alunos e professores com os bispos que não admitiam ideias independentes. No século XIII, muitas universidades conquistaram sua independência e puderam realizar debates abertos sobre todas as questões.
As primeiras universidades na Europa com uma estrutura corporativa (guilda) foram a Universidade de Bolonha (1088), a Universidade de Paris (c.1150, mais tarde associada à Sorbonne) e a Universidade de Oxford (1167). Seguiram-se muitas outras: Cambridge, Pádua. Nápoles, Toulouse, Coimbra, Salamanca, Montpellier etc.
A universidade dividia-se em faculdades dedicadas a cinco áreas: artes liberais, teologia, medicina, direito civil e direito canônico. Os cursos eram em latim, a língua internacional da Europa. Os alunos entravam na universidade com 12 ou 14 anos e começavam a cursar o primeiro nível onde aprendiam Retórica, Gramática, Lógica, Geometria, Música e Astronomia. Depois optavam por uma faculdade.
7. Letras de câmbio, nota promissória, contabilidade, bancos
A revitalização do comércio em escala internacional (e não mais local) e a expansão das moedas na Europa medieval a partir do século XII fizeram surgir novas ideias e práticas no uso do dinheiro.
O comércio feito a longa distância e o risco de assaltos estimularam o uso das letras de câmbio, os títulos de crédito e a nota promissória. Ao invés de viajar com uma grande quantidade de dinheiro, o comerciante depositava-o em um banco (predecessor dos atuais) e recebia, em troca, um recibo (que valia tanto quanto o dinheiro deixado em custódia), com o qual saldava as próprias dívidas.
A difusão da moeda levou à exploração de novas minas de ouro (que logo se esgotaram) e a procura pelas moedas de ouro bizantinas e muçulmanas. Mais moedas em circulação criou a necessidade de instituições que as guardassem e emprestassem. No século XII, alguns mosteiros, em particular o de Cluny, emprestavam dinheiro aos leigos (LE GOFF, p.39). Mas, à medida que a procura de dinheiro aumentou, outras instituições surgiram.
O nome “banco”, porém, foi criado pelos banqueiros judeus de Florença, na época do Renascimento, designando a mesa onde eram trocadas as moedas. Em 1406, foi criado aquele que é considerado o primeiro banco moderno: o Banco di San Giorgio, em Gênova, Itália.
Os contratos de compra e venda eram redigidos pelos notários. Na contabilidade, adotava-se um registro com dupla fonte. Nele anotava-se, em uma coluna, os créditos e, na outra, os débitos, de modo que se soubesse imediatamente o estado das contas por meio de simples operações de adição e subtração.
8. Montepio: o ancestral do empréstimo consignado
Montepio, do italiano Monte de Piedade ou de Misericórdia, era um montante em dinheiro destinado a socorrer pequenos comerciantes. A palavra “pio” (piedade) denotava a função desse pecúlio: a caridade e a solidariedade.
O montepio surgiu no final da Idade Média. A ideia foi do franciscano Bernardino de Feltre que convenceu os mais abastados a doarem uma pequena parte de sua riqueza para constituir um “monte” ou uma poupança com a finalidade de socorrer alguma emergência, evitando que as pessoas tivessem como única saída buscar ajuda com os judeus.
Quem recorria ao Montepio deixava algum objeto em garantia (joias, roupas, ferramentas etc.) e obtinha um empréstimo equivalente a dois terços do valor do objeto penhorado. Era cobrado um juro baixo. O primeiro montepio foi fundado por Bernardino de Feltre em Perúgia, na Itália, em 1462, mas há referências a iniciativas semelhantes no século XIV em Florença e em Londres.
9. Escala e nomes das notas musicais
Os nomes das notas – dó-ré-mi-fá-sol-lá-si – a pauta e a escala musical são invenções do monge beneditino Guido d’Arezzo, um musicista italiano do século XI. Graças à sua invenção, as músicas passaram a ter uma escrita e os cantores podiam lê-la e entoá-la à primeira vista com exatidão, sem ajuda do monocórdio (antigo instrumento de uma só corda) e sem a condução de um maestro.
Em sua obra Micrologus, escrita por volta de 1020, Guido d’Arezzo descreveu a pauta musical e estabeleceu um número de quatro linhas (tetragrama). No tetragrama, anotou os sinais das notas, todos iguais entre si, mas assumindo significados diferentes segundo sua colocação nas linhas ou nos espaços entre elas. Surgiu assim a forma de escrita musical que ainda utilizamos.
Foi Arezzo também que batizou as notas musicais usando as primeiras sílabas da primeira estrofe do hino de São João Baptista:
Ut queant laxis (UT = DÓ)
Resonare fibris (RÉ)
Mira gestorum (MI)
Famuli tuorum (FÁ)
Solve polluti (SOL)
Labii reatu (LÁ)
Sancte Ioanne (SI)
10. A invenção do relógio mecânico
Foi por volta do século XIII, que surgiram os primeiros relógios mecânicos na Europa. Inaugurava-se assim uma nova forma de marcação do tempo, com horas teoricamente iguais e independentes das estações do ano.
É provável que relógio mecânico tenha nascido pela exigência da disciplina nas tarefas cotidianas nos mosteiros medievais. A pontualidade era uma virtude rigorosamente prescrita e o atraso ao serviço divino ou a uma refeição era punido. Marcar e regular o tempo também atendia às necessidades da vida urbana e mercantil em desenvolvimento na mesma época.
A precisão dos relógios mecânicos, contudo, era pequena; em razão do atrito dos mecanismos, a defasagem acumulada era, geralmente, de pelo menos uma hora por dia. Os primeiros relógios não tinham mostradores nem ponteiros e limitavam-se a marcar as horas. O ponteiro de minutos só foi introduzido em 1577, pelo alemão Jost Burgi.
Os relógios europeus mais antigos que se têm notícia foram desenvolvidos na abadia de Saint Albans, Inglaterra, durante a década de 1330 e no mosteiro de Pádua, Itália, entre 1348 e 1364 – ambos desaparecidos. O relógio da Catedral de Salisbury, na Inglaterra, datado de 1386, é o relógio mecânico mais antigo da Europa em funcionamento.
Fonte
- FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média. Jorge Zahar Editor.
- GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
- SILVA, Aryanne Faustina da. A instituição do tabelionato na História e sua prática no Brasil antigo. Natal, RN: ANPUH, XXVII Simpósio Nacional de História, 2013,
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