Muitas coisas que hoje nos parecem tão comuns, eram desconhecidas pelas pessoas no Império Romano. Até mesmo, certos detalhes repetidos em filmes romanos e seriados não passam de estereótipos profundamente enraizados no imaginário contemporâneo, construídos desde o início do cristianismo. Veja a lista das ideias erradas mais comuns que temos sobre os antigos romanos.
1. Escravos como remadores
Apesar das famosas cenas de clássicos do cinema, como “Ben Hur” e “Cleópatra”, as galeras romanas não eram movidas por escravos acorrentados levando chicotadas para acelerar o movimento dos remos. Os remadores romanos eram profissionais pagos, e os da Marinha eram soldados alistados.
Os romanos confiavam sua marinha a homens livres, especialmente a marinha de guerra. Somente em situações de extrema urgência colocaram escravos manejando os remos e, neste caso, prometendo-lhe a liberdade.
Somente séculos depois, já na Idade Média, que escravos e condenados começaram a ser cada vez mais utilizados como remadores. Mas a prática foi sendo abolida na Idade Moderna. Na França, por exemplo, o rei Carlos IX proibiu, em 1564, a condenação de prisioneiros para as galés.
2. Aperto de mãos como cumprimento
Este é outro favorito de Hollywood. O aperto de mãos e de antebraços – um gesto viril entre heróis de filmes e também em filmes romanos – não tem base na realidade histórica. Os antigos romanos não apertavam as mãos da mesma maneira como fazemos hoje, como uma saudação casual. Apertar as mãos ocorria somente para selar um acordo ou tratado. O aperto de mão que se vê, inclusive, em moedas romanas, simbolizava a confiança e concórdia mútuas. Era também, aparentemente, parte do ritual do casamento. O gesto de cumprimento entre amigos entre os antigos romanos era abraçar ou beijar, assim como se faz entre as populações mediterrâneas e latinas.
3. Som da espada sendo desembainhada
Imagine a cena: o legionário romano tira sua espada da bainha pronto para o combate. Que som você ouve? Um silvo agudo do aço: tshizzzzzz…. O ruído de uma espada desembainhada é onipresente em filmes romanos e programas de televisão; mesmo em história em quadrinhos ou nos jogos eletrônicos ele está presente. Mas esse som nunca existiu. Na verdade, as bainhas eram feitas de madeira e couro – materiais que amortecem o som. Talvez, no máximo, se ouvia algo semelhante a uma leve batida quando a lâmina batia no interior da bainha. Imagine, contudo, como ficaria sem graça a cena abaixo, sem o som da espada.
Luta entre Aquiles e Boagrius, no filme Troia (2004)
O vídeo a seguir é um exemplo do uso, pelo cinema, do “som” da espada sendo desembainhada. A Guerra de Troia que teria ocorrido por volta de 1250 a.C., é muito anterior à história romana mas, no cinema atual, o som metálico da espada sendo puxada da bainha é um mito.
4. Armadura perfurável
O exército romano era um dos mais fortemente blindado na antiguidade. A armadura romana era muito eficaz para manter seu portador vivo e relativamente ileso. O tipo mais famoso, era a couraça de tiras de metal, a chamada segmentata lorica (couraça segmentada). As tiras eram dispostas horizontalmente e sobrepostas para baixo; os ombros eram protegidos por faixas adicionais (“guardas de ombro”).
Na prática, era quase impossível cortar ou esfaquear com uma arma de mão um soldado vestindo essa couraça de metal. Um golpe de espada para penetrar na armadura romana precisaria de uma força descomunal. Uma lança ou dardo pesado lançado da cavalaria poderia romper a couraça; uma flecha de um arco poderoso lançada próxima, poderia perfurá-la. Mas contra a maioria das armas que um soldado romano enfrentava no campo de batalha, sua armadura de metal era, de fato, uma boa proteção.
5. Óleo altamente inflamável
Cenas de batalha em filmes romanos de guerra ou medieval apresentam, comumente, grandes bolas de fogo. De fato, os romanos usavam armas incendiárias: combinações de breu e enxofre, ou apenas palha seca em chamas. Estas armas foram ainda utilizadas no mar; um grafite do século I a.C. mostra uma galera com um lançador de bola de fogo na proa. Os romanos também conheciam o petróleo natural, mas ele foi pouco usado. Mas nada disso se parece com um óleo altamente inflamável. O óleo do mundo antigo, utilizado em lâmpadas, nos alimentos e pelos massagistas nas termas, era derivado do azeite de oliva que não é particularmente inflamável. Além de ser muito escorregadio, ele não causaria nenhum feito como uma bomba incendiária. Na Idade Média, surgiram armas incendiárias feitas a base de óleo de nozes, cannabis, linho ou algodão lançadas por catapultas.
6. Cavalos magníficos e incansáveis
A cavalaria romana foi essencial para a mobilização da infantaria atuando, em muitos casos, como suporte aos legionários em situações cruciais nas batalhas. Contudo, não era principal máquina militar romana. Os animas precisavam de consideráveis quantidade de cevada, água e muito descanso. Apesar de todos os cuidados, cavalos corriam o risco de doenças e lesões graves principalmente nas patas e cascos devido, em grande parte, ao fato de não serem ferrados. A ferradura só vai aparecer na Europa por volta do século X.
Considerando isso, é impensável a viagem de Maximus Decimus Meridius, o herói do filme “O Gladiador” (2000, direção de Ridley Scott), cavalgando sem parar do Danúbio até a Espanha, uma distância de 2.600 km. Mesmo trocando de montaria ao longo do caminho, ele levaria uns 40 dias sem um dia de descanso!
Outro detalhe falseado nos filmes romanos é o tamanho dos cavalos romanos. Eles eram pequenos, parecidos com pôneis, porém muito resistentes. Os romanos tinham especial predileção pelos garanhões da Pártia, Pérsia, Arménia, Capadócia, Espanha e Líbia – mas esses animais eram, em geral, reservados aos generais e imperadores. Além disso, estavam longe de parecer com os atuais, que são resultados de cruzamentos e melhoramento da raça.
Os cavalos eram equipados com sela mas sem estribos, desconhecidos pelos romanos. Os estribos surgiram no século VII, quando o Império Romano já havia desaparecido. A ausência do estribo, contudo, não impedia o equilíbrio do cavaleiro sobre o animal que, como foi dito, era pequeno, bem como o romano que tinha, em média, 1,67 m de altura.
7. Tambores
Os tambores são uma parte importante da nossa concepção dos exércitos históricos, usados para marcar o ritmo da marcha dos soldados. Tambores de guerra eram usados na África, na Índia, na China… mas não em Roma Antiga. O tambor como conhecemos hoje era praticamente desconhecido no mundo romano; o instrumento mais próximo que possuíam era uma espécie de grande pandeiro. Então, como os exércitos romanos marcavam o ritmo da marcha? Possivelmente eles usavam flautas, como os gregos, ou gaitas de foles primitivos, mas é muito provável que os soldados romanos não marchavam no mesmo ritmo.
8. Braçadeira de couro
A braçadeira de couro cobrindo o pulso e o antebraço é um ítem obrigatório nos trajes dos legionários, dos gladiadores e até de escravos romanos. Muitas vezes, ela é reforçada com fivelas, rebites, placas de metal ou mesmo pele de leopardo. Isso é fantasia inventada pelo cinema. Um rápido olhar na iconografia romana nos mostra que os romanos não usavam nada no braço nem no pulso.
Havia, sim, um bracelete de ouro ou prata, chamado armilla (no plural, armillae) que era uma condecoração militar ao legionário que demonstrasse bravura em combate. A armilla é frequentemente mostrada nos relevos de lápides romanas.
Por que, então, os filmes romanos e até ilustrações em livros escolares mostram soldados com braçadeiras? Uma teoria é que diretores de cinema precisavam de algo para esconder a marca pálida deixada pelo relógio no pulso do ator. O adereço acabou virando um ítem obrigatório na composição de personagens lutadores, como se vê na imagem de abertura desse artigo, extraída do filme Risen (Ressusrreição, 2016).
9. Imperador Júlio César
Os diretores de cinema, em geral assessorados por especialistas, dificilmente caem nesse erro grosseiro. Mas as produções mais baratas e até propagandas com cenários históricos comumente repetem o velho equivoco: chamar Júlio César de imperador romano. Júlio César, influente político e líder militar romano, viveu décadas antes da instalação do Império Romano. César foi assassinado em 44 a.C.
Anos depois, seu sobrinho neto, Caio Otaviano, foi aclamado imperador, o primeiro do Império Romano (27 a.C.). Como Otaviano, que passaria para a história como Augusto, adotou, também, o título de César, é provável que isso tinha gerado a confusão em chamar Júlio Cesar de imperador romano.
10. Polegar para baixo indicava a morte do gladiador
A pintura acima, de Jean-Leon Gerome, chama-se “Polegares invertidos”. Mostra um gladiador vitorioso pisando sobre o derrotado e aguardando a decisão do público. Vestais na primeira fileira e o público acima apontam os polegares para baixo enquanto o imperador (à esquerda) só observa. A tela ficou conhecida e logo ganhou uma interpretação popular: o público estaria pedindo a morte do perdedor. Há quem afirme que foi essa imagem que gerou o equívoco do gesto e seu significado. Não existe, na farta documentação de Roma Antiga, nada que permita definir o significado dos polegares. As fontes são escassas e conflitantes. Nas sátiras de Juvenal («verso pollice vulgus cum iubet», em tradução livre: “virando o polegar quando as aclamações..” ) há menções pouco esclarecedoras sobre o gesto. Outras fontes deixam entender que este gesto era para poupar o gladiador, que a morte era o polegar para cima ou na horizontal. Neste caso, as vestais da pintura estariam clamando pela vida do perdedor e não a sua morte.
De qualquer maneira, é importante lembrar que os gladiadores eram profissionais caros e muito bem treinados. Não era comum a plateia pedir a morte do perdedor, salvo se ele tivesse lutado de forma desonrosa ou vil. Faziam-se apostas e todos queriam uma revanche para ver o “seu” gladiador em uma nova luta.
11. Imperadores loucos
Nesse quesito, os imperadores Calígula e Nero são os mais lembrados por seus (supostos) acessos de loucuras que incluíam assassinatos de familiares. Essa percepção vem dos próprios historiadores antigos, da elite senatorial que se opunha ao poder imperial. É preciso fazer uma leitura crítica das fontes. O imperador Calígula (37-41 d.C.) é tratado, nas poucas fontes sobreviventes, como um tirano demente marcado pela crueldade, perversidade sexual e extravagância a ponto de nomear seu cavalo favorito para o senado. A relação de Calígula com o Senado foi tensa e cheia de conflitos pois o imperador esforçou-se para aumentar sua autoridade de princeps e reduzir a influência dos senadores. Nesse sentido, nomear seu cavalo para o senado pode ser entendido como uma maneira de mostrar aos senadores o que eles valiam.
Nero (54-68 a.C.) também foi atacado por sua paixão pelas corridas de bigas, peças teatrais e lutas de gladiadores. Foi acusado por Suetônio de ter colocado fogo em Roma em 64 d.C. e, enquanto a cidade ardia, ficou tocando sua lira admirando a catástrofe. Suetônio sequer tinha nascido quando esse fato ocorreu; o único historiador que viveu durante essa época e que descreveu o incêndio foi Plínio, o Velho. Ele não acusa Nero. Os incêndios acidentais eram comuns na Roma Antiga. Segundo o historiador Tácito, Nero sequer estava na capital imperial quando o incêndio começou e, ao ser informado, viajou depressa para Roma e abriu as portas do seu palácio às pessoas que perderam suas casas e ainda criou um fundo para pagar alimentos aos sobreviventes.
Os assassinatos cometidos pelos imperadores também devem ser analisados com cuidado. Nero é lembrado por uma série de execuções sistemáticas, incluindo a da sua própria mãe e de seu meio-irmão Britânico, possível rival. A fiabilidade das fontes que descrevem os atos tirânicos de Nero é atualmente controversa. As circunstâncias da morte de Agripina, mãe de Nero, são incertas por causa das contradições nas fontes. O assassinato de Britânico por envenenamento também é posto em dúvida, o jovem era epilético e pode ter sofrido uma morte súbita causada pela epilepsia.
12. Orgias
A ideia de depravação dos costumes com sexo desenfreado e aberrações de todo tipo é outra distorção que inspirou a literatura e o cinema. A descoberta, em Pompéia, de mosaicos com cenas de sexo de figuras mitológicas ou humanas reforçou ainda mais essa concepção da sociedade romana.
Na verdade, a sexualidade em Roma Antiga era regulada por normas sociais e padrões morais que afetavam a vida pública, privada e militar. Pudor, “vergonha”, era um fator regulador do comportamento. Havia restrições legais sobre certas transgressões sexuais, tanto no período republicano quanto no império romano. Os censores, agentes do governo, tinham, entre suas funções, supervisionar a moral pública, com o poder de excluir pessoas da lista de cidadãos por má conduta sexual, o que as impedia de obter uma magistratura ou de servir no exército.
O sexo em si, não era considerado imoral em Roma antiga. Admitia-se que os homens mantivessem relações sexuais fora do casamento, e esperava-se que as mulheres se casassem bastante jovens e se devotassem à maternidade e à fidelidade. A prostituição era legal em todo o império romano. A maioria das prostitutas eram escravas ou forras e o governo tomava algumas medidas de regulação exigindo, por exemplo, que elas se registrassem com os edis.
Os excessos sexuais cometidos por alguns imperadores romanos e outros notáveis, como descritos por historiadores romanos, são, provavelmente, exemplos de má prática moral e, muitos deles, são exagerados. O cristianismo tratou de reforçar os desvios acabando por imprimir no imaginário e na cultura popular, a ideia de uma sociedade romana depravada com orgias e abusos sexuais de todo tipo. Os célebres poemas de amor de Ovídio, por exemplo, por muito tempo foram considerados pornográficos pela Europa cristã.
Recomendo a leitura
- Roma antiga: A arte como propaganda do poder imperial – Vídeo
- A fabulosa engenharia de Roma antiga – Vídeo
Achei interessante a proposta deste texto. Me incomodei, no entanto, com o item número 10, pois a autora deixou de tratar de um ponto importante que é o homoerotismo que estava presente em todas as camadas sociais de Roma. O homem romano, cidadão livre, podia não apenas manter relações sexuais fora do casamento, mas também com pessoas do gênero masculino. De acordo com ideologias presente na aristocracia romana, pouco importava o gênero do parceiro(a) sexual, pois o que importava era o seu status. Assim, eram aceitas, e até mesmo esperava-se do homem romano livre, de acordo com um discurso aristocrático,… Leia mais »
Mas um homem romano ser passivo a outro de classe inferior era muito mal visto pela Sociedade. O próprio Julio César era extremamente zombado por esse rumor do rei Nicomedes.
Assim como era obrigação de um romano ter filhos. Otávio até criou leis para prejudicar celibatários e desincentivar essa prática.
Sim, há inúmeros relatos de possíveis críticas que Júlio César e outros que assumiram o papel passivo teriam recebido de seus contemporâneos. Eles terem supostamente assumido o papel passivo ou de penetrado, independente das críticas, demonstra no entanto que havia uma diferença entre o discurso e a prática (como apontei no meu comentário). O fato de regras existirem não significava que o homem romano se circunscrevia somente ao que lhe era recomendado. Não quis afirmar em nenhum momento que Roma era um ‘paraíso homoerótico’ ou que não era também esperada a relação entre gêneros opostos. Muito pelo contrário. Como toda… Leia mais »
Boa discussão. Convido os colegas Victor Menezes e Ezequiel Lustosa a escreverem artigo sobre a sexualidade romana no blog. Como disse, anteriormente, é um tema pertinente e sobre o qual os professores de História carecem de informações.
Sim, entendo seu ponto, mas apenas fiz essa ressalva, pois o fato dos romanos aceitarem e até incentivarem o homossexualismo (com ressalvas como destacado até aqui), é conhecido pelo público comum. Porém, como é um conhecimento superficial, as pessoas tendem a chegar a conclusões precipitadas como que Roma era um “paraíso homoerótico” e todo o machismo e homofobia que existem no Ocidente seria por um “retrocesso causado pelo Cristianismo”. Quando na verdade é perceptível que muitos males em nossa Sociedade já existia na Roma Antiga, sendo alguns realmente intensificados com o Cristianismo e outros atenuados. Só apontei tudo isso porque… Leia mais »
Importante destacar também que o ato sexual não era o único definidor de virilidade ou de efeminação no mundo romano. Outras características como a forma de se vestir, de falar, de se pentear e de se depilar, entre outras, também era levada em consideração. Lembro que César foi acusado, de acordo com Suetônio, por seus inimigos políticos de ser um efeminado não apenas por conta de seu suposto relacionamento com Nicomedes, mas também porque supostamente se depilava com frequência e era vaidoso com seu corpo, entre inúmeras outras ações que são mencionadas em sua biografia. Assim, ser considerado um efeminado… Leia mais »
Obrigada Victor por sua pertinente análise que só enriqueceu o post. O tema da sexualidade na Antiguidade e, em especial, no mundo clássico e pré-cristão, é realmente um tema importante que merece ser tratado em artigos específicos. Há muitos preconceitos e visões estereotipadas que precisam ser desconstruídas e um blog, como este, dedicado a professores e estudantes de História tem que abordar. Um abraço.
A cena do filme Troia. Se você está falando do Império Romano que começou em 33 AC, qual a relação com a guerra de Tróia (gregos e troianos) em época distinta?
Leia direito o texto, que está explicado.
Oi Gilberto, de fato, a Guerra de Troia não tem nada a ver com o Império Romano (salvo se eu tivesse tratando da mitologia romana que remonta as origens de Roma a Eneias, herói troiano). O vídeo serviu apenas para ilustrar o efeito sonoro que os filmes dão à espada sendo desembainhada.
Eu gostei do artigo, mas fiquei desapontado com o número 4. Acho que este deveria ter sido sobre como a armadura segmentada foi uma breve exceção e que a cota de malha predominou antes, durante e depois.
Tá bom! Calígula não era depravado e Nero não mandou pôr fogo em Roma! Só faltou dizer que Nero estava certo em culpar os cristãos pelo incêndio e de jogá-los aos leões. Opa! Será que Nero também não mandou jogar os cristãos às feras?
Repare, Levi, que estamos falando em episódios ocorridos a uns 2000 anos. Quem escreveu sobre eles? Quem eram esses autores? Eles foram testemunhas desses fatos? A história do início do cristianismo foi escrita por cristãos e sua versão foi integralmente aceita pela Igreja sem contestação, sem verificação das fontes. A História (tradicional) não é o que aconteceu no passado, mas a versão que chegou a nós.