Em fevereiro de 1897, uma força militar britânica invadiu a cidade de Benin, na África Ocidental. Objetos foram saqueados dos palácios reais e vendidos para cobrir os custos da invasão. Outros foram divididos entre os membros da expedição e muitos se perderam na confusão que se seguiu à devastação do reino.
Ao chegarem em Londres, os objetos reais de Benin surpreenderam os especialistas pelo refinamento, arte e domínio da tecnologia, especialmente as peças em metal. Rapidamente, museus e colecionadores de toda Europa e dos Estados Unidos interessaram-se em adquirir os fabulosos bronzes de Benin. Pintores e escultores se encantaram com as formas e linhas da arte africana e sua influência foi decisiva no movimento Modernista.
Conheça a história, a arte africana e as tradições de Benin, um antigo reino africano que ainda hoje cultua seus ancestrais, elege seu obá (rei) e que tem fortes ligações culturais com o Brasil. Não se trata, contudo, da atual República de Benin, cujo nome foi uma homenagem ao Reino de Benin. Este, no passado, localizava-se onde hoje é a Nigéria.
- BNCC: 7 ano. Habilidade: EF07HI03, EF07HI14, EF07HI16
CONTEÚDO
- Ifé, Oyó e Benin: as cidades dos orixás
- Altares e cabeças de bronze: honra aos ancestrais
- Iyoba: as rainhas-mães de Benin
- Benin e o grande obá Ewuare: mito e história
- Benin é “descoberta” pelos portugueses
- O comércio em Benin: escravos x armas
- O grande massacre de Benin
- Fonte
Ifé, Oyó e Benin: as cidades dos orixás
Desde o início da Era Cristã, as terras do Golfo da Guiné, no oeste da África, eram habitadas pelos iorubás, povo conhecido no Brasil como nagôs. Diziam ser descendentes do orixá guerreiro chamado Oduduwa (Oduduá ou Odua), considerado o primeiro governante iorubá e fundador de Ilê-Ifé, a cidade sagrada.
Entre os séculos XI e XVI, Ilê-Ifé (ou simplesmente Ifé), foi o principal centro religioso e comercial iorubano ligado às rotas transaarianas. Dali eram levados ouro, escravos, marfim, dendê, sal, peixe seco, pimentas e noz-de-cola embarcados de barco, pelo rio Níger e pela costa atlântica. Em troca, Ifé recebia tecidos, armas, cobre, latão e artigos de luxo.
No século XIV, outras duas cidades iorubanas ganharam destaque – Oyó e Benin – cujas origens também estão vinculadas a heróis descendentes de Oduduá. Segundo a tradição, um dos primeiros soberanos de Oyó foi Xangô que, depois de morto, transformou-se no orixá dos raios e trovões. O herói mítico de Benin, foi o príncipe Ogun, orixá do ferro, patrono dos ferreiros, caçadores, guerreiros, entalhadores etc.
Seja como for, nas cidades iorubás, todo futuro obá (rei) passava por um processo iniciático que o tonava descendente espiritual de Oduduá e porta-voz dos orixás. Divinizado, o obá praticamente não aparecia em público e só saia com o rosto coberto por uma franja de contas que pendia de sua coroa.
Altares e cabeças de bronze: honra aos ancestrais
Sendo um monarca divino, a influência do obá não desaparecia quando este morria. Em sua homenagem era fabricada uma cabeça de metal, que representava o obá falecido com feições jovens e personalizadas. Colocadas sobre altares, elas significavam um canal de comunicação entre os vivos e os mortos. Os altares dos ancestrais ainda são os principais meios pelos quais um obá transcende o mundo terrestre para comungar com seus antecessores para o bem do reino.
Assim, as cabeças de bronze de Benin não são apenas objetos de memória, mas codificam ritos religiosos e políticos que garantem a continuidade dinástica e a identidade social do povo. Por meio delas, o obá reinante comunicava-se com seus ancestrais e reafirmava o caráter divino e espiritual de sua liderança.
As famílias comuns também cultuam seus ancestrais para os quais erguem altares de barro e esculpem cabeças de madeira. Sinos de latão são colocados no centro do altar para serem tocados no início do ritual que é realizado, preferencialmente, pelo filho primogênito.
Os altares reais, mais elaborados e altamente decorados, exibem chocalhos, sinos, cabeças de bronze, esculturas de bronze de vários tamanhos e enormes presas de elefante esculpidas, estas apoiadas em uma cabeça coroada. As imagens representam antigos obás, grandes chefes de guerra e animais simbólicos.
Iyoba: as rainhas-mães de Benin
Os altares aos ancestrais incluiam, também, aqueles dedicados à iyoba, título da rainha-mãe, cujo culto foi introduzido pelo obá Esigie (c.1516-c.1550) para homenagear sua mãe, Idia. A rainha-guerreira Idia ficou conhecida como grande estrategista militar, conselheira política, possuidora de poderes místicos e de conhecimento medicinal. Lutou ao lado do filho na guerra pelo trono vencendo seus inimigos. A iyoba desempenhou um papel vital na estrutura de poder como uma autoridade moral suprema e força protetora de apoio ao obá.
Benin e o grande obá Ewuare: mito e história
A história de Benin, cidade e capital do grande reino do mesmo nome, começou por volta de 1200. Mas foi no governo de Ewuare, entre 1440 e 1473, que Benin atingiu seu apogeu.
O reinado de Ewuare, o grande obá de Benin, entrelaça história, mito e contos populares. Segundo a tradição oral iorubana, Ewuare era o príncipe Ogun, herdeiro do trono mas que, ainda jovem, foi expulso pelo irmão que lhe tomou o lugar. Sozinho, Ogun viajou por muitos reinos e enfrentou perigos sendo sempre salvo pelos espíritos da selva. Ganhou de um deles uma bolsa mágica, chamada Agbavbok, capaz de guardar qualquer coisa sem nunca pesar nem encher, e da qual se poderia retirar tudo o que desejasse.
Um dia, Ogun dormiu à sombra de uma irokò, árvore sagrada que, segundo os iorubás, serve de moradia para entidades sobrenaturais. (Trata-se da teca africana que, no Brasil, é associada à gameleira branca). A árvore lhe ordenou para voltar à cidade de Benin e recuperar o trono que era seu por direito.
No caminho de volta à cidade, ele salvou um leão tirando o espinho infectado de sua pata. Em gratidão, o leão lhe deu um talismã com poderes mágicos com o qual o príncipe poderia criar qualquer situação real.
Ao chegar à cidade, Ogun deparou com um desfile luxuoso para seu irmão enquanto a população vivia na miséria e com fome. Inconformado com tamanha injustiça e desigualdade, Ogun ordenou ao talismã que incendiasse partes da cidade. Tirou de sua bolsa mágica um arco e uma flecha envenenada e a lançou contra o irmão. Na confusão que se seguiu, ele foi protegido por um antigo escravo, chamado Edo, que havia cuidado dele quando criança e o reconheceu. Com ajuda do escravo, Ogun conseguiu entrar no palácio, reuniu aliados e retomou o trono. Em gratidão ao escravo que o ajudou, batizou seu povo de Edo.
Ogun adotou o nome de Ewuare e governou Benin por trinta e três anos consolidando o poder real. Adotou o critério de primogenitura na sucessão do trono, criou uma estrutura administrativa centralizada e expandiu os domínios de Benin. Reconstruiu a cidade dotando-a de muros e fossos, grandes avenidas e zonas segundo o tipo de trabalho exercido.
Ewuare expandiu as artes africanas de Benin especialmente a escultura em madeira, o entalhe do marfim e a fabricação das famosas cabeças de bronze para os altares reais. Teria sido Ewuare quem começou o trabalho com contas de coral que, segundo a tradição, ele teria roubado de Olokum, o deus das águas e da prosperidade. O coral era utilizado para fabricar colares, pulseiras, cintos, tornozeleiras, camisas e outras peças de uso exclusivo do obá. Foi ele, também que introduziu o festival Igue em homenagem aos obás e que até hoje celebrado pela população edo.
Benin é “descoberta” pelos portugueses
O navegador português João Afonso de Aveiro e seus marinheiros foram os primeiros europeus a conhecerem Benin. Era o ano 1486. Encontraram uma cidade enorme para os padrões europeus da época, cortada por uma avenida reta e longuíssima, sete ou oito vezes mais larga do que as das capitais do Velho Mundo. Dela saíam numerosas ruas nas quais se alinhavam casa de barro com a superfície finamente polida e cobertas de palha. Benin estava, então, em seu apogeu e havia suplantado Oyó e Ifé em riqueza e poder.
O palácio do obá era formado por numerosas construções, nas quais vivia o rei, suas mulheres e filhos, nobres com suas famílias, agregados, servidores e escravos. Uma multidão de atendentes e especialistas atendia às necessidades da corte e do obá: médicos, escudeiros, responsáveis pelos trajes e objetos reais, dançarinos, arqueiros, portadores de espada, adivinhos, ferreiros, escultores de marfim e madeira, chefes de cerimonial, artesãos de couro, astrólogos, meteorologistas, caçadores de leopardos, sopradores de chifre de marfim etc. Esses atendentes foram representados nas placas de bronze que decoravam os palácios reais. Fixadas nas colunas de madeira das varandas e das galerias do palácio, as placas de bronze mostravam relevos de guerreiros, ritos, batalhas e caçadas.
Chamou a atenção dos portugueses o povo de Benin não ser muçulmano e de venerar um grande personagem, que vivia em outra terra e que usava uma cruz de latão. Foi o suficiente para os portugueses acreditarem que tinham, finalmente, chegado ao reino de Preste João, o lendário soberano cristão do Oriente que dizia-se ser um homem virtuoso, generoso e muito rico. A notícia causou alvoroço em Portugal e o próprio rei D. João II pensou que havia, enfim, encontrado o aliado ideal para uma expedição à Índia.
Algumas viagens depois, desfeita a confusão, os portugueses estabeleceram uma feitoria em Benin para comerciar escravos africanos.
O comércio era monetizado e os portugueses pagavam em dinheiro edo: manilhas, barras e arames de cobre e em búzios, a moeda divisionária por excelência. É provável que a crescente entrada de metal no reino, a partir do século XV, tenha expandido a produção dos famosos “bronzes” do Benin. “Bronze” que, na verdade era latão (liga de cobre e zinco) e não bronze propriamente dito (liga de cobre e estanho). O metal, associado a Ogun, orixá do ferro, era considerado com poderes mágicos de proteção e força. Por isso, seu uso era exclusivo do obá e da corte.
O comércio em Benin: escravos x armas
Desde os primeiros contatos com os portugueses, o maior interesse do obá de Benin era adquirir armas de fogo – arcabuzes e canhões – e pólvora. Havia, contudo uma interdição que impedia a transação pois, segundo decreto papal, não se podia fornecer armas a pagãos e infiéis.
As negociações foram difíceis, já que o obá não pretendia deixar as tradições religiosas que asseguravam seu poder para se converter ao cristianismo. Permitiu, contudo, a presença de padres no reino para pregar a fé e ensinar algumas crianças nobres a falar e ler em português. Mas isso não era o suficiente para o rei de Portugal e, como as armas não chegavam, o obá passou a sabotar ou dificultar a venda de escravos para os portugueses.
Assim, o fornecimento de escravos não era constante e nem atendia aos interesses dos portugueses. Havia ocasiões que o obá ofertava só mulheres reservando os homens para suas plantações e exércitos. Em outros momentos, incluía velhos, doentes e pessoas com deformidades exigindo preços exorbitantes. Inesperadamente interrompia toda e qualquer transação com os portugueses.
No final do século XVII, quando outras nações europeias passaram a explorar a costa africana, o obá encontrou aliados entre franceses e ingleses para conseguir as tão desejadas armas. Progrediu então o comércio de mosquetes em troca de escravos. Até o século XIX, Benin foi um importante centro mercantil e fornecedor de escravos para a América. Vendiam-se aos traficantes os capturados nas guerras, os condenados pela justiça e os trazidos de mercados edos, ijós, urrobos, igalas, ibos etc. (COSTA E SILVA, 2002).
O grande massacre de Benin
No final do século XIX, a política europeia em relação à África mudou. Já não mais interessavam as relações comerciais e sim o domínio do território. O país iorubá foi conquistado pelos missionários e pelas autoridades britânicas sediadas em Lagos. O obá de Benin, contudo, resistiu e manteve sua soberania com determinação afastando de seus domínios toda presença europeia.
A situação culminou em 1897, quando uma expedição liderada pelo cônsul James Phillips entrou no território de Benin mesmo sem autorização do obá Ovonramwen (coroado em 1888). A delegação britânica foi emboscada por guerreiros edo e quase todos foram mortos, incluindo o cônsul.
Rapidamente, a Marinha britânica organizou uma expedição punitiva contra Benin. A ordem era capturar o obá e destruir a cidade. A força de invasão contava com 1.200 fuzileiros navais. Benin resistiu por 10 dias ao fim dos quais o obá foi aprisionado e exilado para Calabar, uma cidade a leste, onde veio a falecer em 1914.
A cidade foi pilhada e incendiada. Os 18 altares de ancestrais erguidos em recintos distintos foram destruídos. Cerca de 2500 artefatos religiosos e objetos reais, principalmente em bronze e marfim foram confiscados e leiloados para custear as despesas da expedição. O Museu Britânico ficou com cerca de 40% do espólio de guerra. Parte foi entregue a oficiais do Exército e Marinha Britânica. A maioria dos bronzes de Benin vendidos em leilão foi adquirida por museus, principalmente na Alemanha.
A dispersão da arte africana de Benin para diversos museus mostrou ao mundo uma arte refinada com pleno domínio da tecnologia que, até então, não se imaginava ser possível entre culturas ditas “primitivas” pelos europeus. Os bronzes de Benin levaram a uma reavaliação da arte e da cultura africana. Foram copiados e inspiraram artistas europeus, exercendo uma forte influência sobre a arte modernista.
Benin passou a fazer parte da Nigéria, protetorado britânico em 1901, e colônia em 1914. Neste mesmo ano, ocorreu o falecimento do obá no exílio. Seu filho retornou à cidade de Benin onde foi coroado Obá Eweba II (1914-1933) restaurando a monarquia de Benin, embora com poder muito reduzido. Seu sucessor, Akenzua II (1933-1978) empenhou-se em retomar as tradições, restabelecendo rituais e comemorações e reconstruindo os altares dos ancestrais.
O oba Akenzua II deu início, também, a um movimento para retornar à Nigéria os bronzes saqueados de Benin. Em 1938, em um gesto de forte significado ao povo Edo, o Museu Britânico devolveu objetos de coral que pertenceram ao obá destronado, restaurando assim parte do “axé” (força sagrada) dos ancestrais de Benin.
No final da Segunda Guerra Mundial, o recrudescimento do movimento nacionalista nigeriano levou o governo britânico a iniciar um processo de transição da colônia para um governo próprio com base federal. Em 1960, a Nigéria conquistou a independência tornando-se uma federação. Hoje é o país mais populoso da África, com 173 milhões de habitantes (2013) divididos em mais de 250 etnias, nenhuma com maioria absoluta. Os grupos principais que formam 60% da população nigeriana são: hauçá e fulani (norte), iorubá (oeste) e igbo (leste).
As tradições de Benin continuam vivas sob a liderança do obá Erediauwa I (1979-2016) que deu continuidade ao esforço de recuperar os objetos sagrados de seu povo. Recentemente, foi-lhe devolvido dois artefatos de bronze pelo neto de um oficial britânico que participara do saque de 1897. O obá Erediauwa I faleceu em abril de 2016, aos 92 anos de idade.
Fonte
- Ewuare the Great King of Benin. Epic World History.
- PEAVY, Daryl. Oba Ewuare Ogidigan: the great African warrior-king.
- Queen (Iyoba) Idia: the world renowned warrior-queen. Trip down memory lane Blog.
- COSTA E SILVA, Alberto da. A manilha e o libambo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
- LEAVITT, Amie Jane. Discovering the Kingdom of Benin. Exploring African Civilizations. Library Binding, 2014.
- LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
- SILVÉRIO, Valter Roberto (editor). Síntese da coleção História Geral da África: do século XVI ao século XX. Brasília: Unesco, MEC, UFSCar, 2013.
- REIS, Edmilson Quirino dos. A representação do corpo humano na arte iorubá. Dissertação de mestrado em Estética e História da Arte. USP, 2014
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