O Cerro de M’Bororé, no município de Panambi, na Argentina, fica às margens do rio Uruguai que faz fronteira com o Brasil. Na outra margem do rio, está o município brasileiro de Porto de Vera Cruz, em terras gaúchas. No século XVII, essa região foi cenário de um combate feroz muito lembrado na História dos países platinos, porém pouco mencionado na do Brasil. Foi a primeira batalha naval da América do Sul colonial e decisiva para acabar de vez com os ataques dos bandeirantes paulistas às missões jesuíticas.
Antecedentes: as bandeiras de caça ao índio
Nos primeiros anos do século XVII, os jesuítas fundaram na região do rio Paraná (em território dos atuais Paraná e Paraguai) diversas missões para evangelizar os povos que ali viviam, em sua maioria, guaranis. Surgiram, assim, as missões de Tape (no território do atual Rio Grande do Sul), Guairá (Paraná) e Itatim (Mato Grosso do Sul).
As missões eram, em sua maioria, autossuficientes, dispunham de uma completa infraestrutura administrativa, econômica e cultural que funcionava num regime comunitário, onde os indígenas eram educados na fé cristã e ensinados em vários ofícios inclusive artísticos. Isso atraiu o interesse dos bandeirantes que buscavam capturar indígenas para serem escravizados e vendidos.
A partir de 1620, os bandeirantes intensificaram os ataques contra as reduções jesuíticas. Entre os anos 1628 e 1631, os chefes bandeirantes Raposo Tavares, Manoel Preto e Antônio Pires realizaram periódicas incursões contra as missões de Guairá. Calcula-se que somente em uma delas tenham capturado uns 5.000 indígenas, dos quais somente 1.200 chegaram a São Paulo. A maioria morreu no percurso devido a doenças e maus tratos.
Para se protegerem, os jesuítas evacuaram desordenadamente toda área deixando a região de Guairá praticamente deserta. Em território da atual província de Missiones, Argentina, fundaram as missões de San Ignacio Mini e de Loreto.
Os bandeirantes voltaram-se então para a missão de Itatim, atacada em 1632 e, pouco depois, Tape, invadida nos anos de 1636, 1637 e 1638 por sucessivas bandeiras comandadas por Raposo Tavares, Andrés Fernández e Fernando Dias Pais.
Vitória guarani de Caazapaguaçu (1639)
Em 1638, os padres Antonio Ruiz de Montoya e Francisco Diaz Taño foram à Espanha para informar o rei Felipe IV sobre o que ocorria nas missões e solicitar-lhe que fosse suspensa a proibição do manejo de armas pelos indígenas. Seu pedido foi aceito e formalizado em 12 de maio de 1640. O rei autorizava os guaranis a usarem armas de fogo para sua defesa.
Antes disso, porém, os jesuítas confiantes do apoio real e da urgência da situação, começaram a armar os guaranis. De Buenos Aires vieram militares espanhóis para organizar as forças de defesa guaranis e dar-lhes treinamento no manejo de armas.
Armados e treinados, o exército guarani conseguiu, em 1639, sua primeira vitória sobre os bandeirantes na batalha de Caazapaguaçu, no território do atual Rio Grande do Sul. No confronto morreu Pascoal Leite Pais que liderava a bandeira. A vitória indígena surpreendeu e indignou os paulistas que juraram revidar a derrota.
Ainda em 1639, os jesuítas obtiveram do papa Urbano VIII uma bula que condenava à excomunhão os católicos que escravizassem indígenas.
A bula papal, a autorização real para os índios usarem armas de fogo e a derrota de Caazapaguaçu deixaram os paulistas furiosos. A indignação paulista dirigia-se, também, à coroa Espanhola que, naquele momento, governava Portugal e seus domínios (União Ibérica, 1580-1640).
Reunidos em assembleia, os paulistas decidiram expulsar os jesuítas de São Paulo e preparar uma grande bandeira para atacar e destruir as missões jesuíticas.
A batalha de M’Bororé (1641)
A grande bandeira partiu de São Paulo em setembro de 1640 sob comando de Jerônimo Pedroso de Barros e Manuel Pérez, rumo às missões do Alto Uruguai. O encontro com o exército missioneiro se deu em M’Bororé, nas proximidades da missão de São Francisco Xavier, no Alto Uruguai.
O número de combatentes é controverso. Os documentos divergem entre 2.000, 3.000 e 4.200 guaranis armados. Desses, uns 300 portavam armas de fogo (arcabuzes e mosquetes). Os demais usavam arcos e flechas, lanças, machados, espadas e boleadeiras. Os bandeirantes somavam 450 a 500 homens, apoiados por 2.500, 1.500 ou 1.000 Tupis flecheiros.
Os jesuítas construíram armas de longo alcance como catapultas que arremessavam troncos em chama e canhões de taquaruçú, uma espécie de bambu gigante e muito resistente, revestido com couro e que permitia quatro disparos. Eles ficavam ocultos entre as árvores à margem do rio.
O comando militar missioneiro ficou com os caciques Inácio Abiarú (missão N. S. da Assunção de Acaraguá), Nicolás Neenguirú (missão de Concepcion), Francisco Mbayroba (missão de S. Nicolas) e Azaray (missão de S. Francisco Xavier).
Índios vigias foram espalhados em vários pontos da floresta e das margens do rio para dar informações sobre a movimentação dos paulistas. Isso permitiu ao exército missioneiro encontrar as melhores posições para o ataque.
Os bandeirantes desceram os rios em 300 canoas e muitas balsas. Encontra a esquadra fluvial missioneira com 70 canoas tripuladas com 800 guaranis apoiados por 3.400 combatentes em terra. O combate foi feroz. Os disparos das catapultas e dos canhões de taquaruçú afundaram várias canoas desorganizando o ataque bandeirante.
A batalha só cessou ao cair da noite, continuando ao amanhecer e se estendendo nos dias 12, 13, 14 e 15 de março. No dia 16, os bandeirantes mandaram aos jesuítas uma carta de rendição. O documento foi interceptado pelos chefes guaranis e rasgado. Não houve trégua: os paulistas se embrenharam pela mata e foram perseguidos pelos guaranis. Muitos tupis abandonaram os bandeirantes e pediram refúgio aos jesuítas. Finalmente, em 18 de março os guaranis suspenderam a perseguição.
Dos milhares que compunham a bandeira paulista regressaram a São Paulo umas 120 pessoas.
Consequências
Travada no rio Uruguai, M’Bororé é considerada a primeira batalha naval da América do Sul colonial. Sua importância contudo está nos resultados geopolíticos para portugueses e espanhóis.
A vitória guarani de M’Bororé encerrou a fase expansionista paulista na região platina. Os bandeirantes abandonaram as incursões de captura de índios no sul e partiram em busca de ouro e pedras preciosas nos territórios que hoje correspondem a Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás.
Para os jesuítas espanhóis, apesar das enormes perdas (das 63 missões fundadas, somente 23 resistiram), a vitória de M’Bororé inaugurou um longo período de paz que assegurou o crescimento e a expansão de sua obra missioneira na região platina por mais cem anos até a expulsão dos jesuítas em 1767. A consolidação territorial das missões jesuíticas, por sua vez, contribuiu para assegurar o domínio espanhol na região platina.
O exército guarani manteve-se armado e treinado protegendo as fronteiras, função que foi reconhecida pelo governo espanhol. Em 7 de abril de 1643, o rei Felipe IV ordenou que, por dez anos, os guaranis ficariam isentos do pagamento de tributos e da prestação da mita (serviço gratuito para os espanhóis).
Fonte
- LUNA, Felix. Conflictos y armonías en la Historia Argentina. Buenos Aires, Argentina: Editorial Belgrano, 1980.
- ROMANATO, Gianpaolo. Gesuiti, guaranì ed emigranti nelle Riduzioni del Paraguay. Ravena, Italia, Angelo Longo Editore, 2008.
- CARVALHO, Casiano Néstor. La victoria misionera de Mbororé. Historia y Arqueologia Marítima. Buenos Aires, Argentina: Boletin del Centro Naval, n. 708. Set 1973
- LIEBANES, Fernando Javier. Primera batalla naval de America del Sur. La Gazeta Federal. Confederação Argentina.
- HERRERO, Leatriz Fernandez. La utopia de América: teoria, leyes, experimentos. Barcelona, Espanha: Anthropos Editorial, 1992
- CHIOGNA, Arianne Miron & MOURA, Gabriele Rodrigues de. Avante guerreiros! As batalhas de Caaçapaguaçú e M’Bororé (1639 e 1641). Porto Alegre, RS:Revista Historiador, n. 4, ano 4, dez. 2011.
Saiba mais / outros recursos
- Assassinado Sepé Tiaraju, o líder guarani na Guerra Guaranítica
- A definição das fronteiras sulistas e o massacre dos guaranis
- Massacre dos índios Paiacu, Ceará
- Guerra do Açu ou dos “Bárbaros”: o extermínio indígena esquecido pela História oficial
- Indígenas retratados por um holandês. Analise da pintura de Albert Eckout.
- Povos indígenas do Brasil na época da colonização. Mapa mental para preencher.
- Arte indígena brasileira. Quebra-cabeça.