Babel faz referência à mítica torre da antiga Babilônia que pretendia alcançar o céu. A Bíblia conta que Deus, contrariado com essa pretensão, tomou a decisão de confundir as pessoas que trabalhavam na ousada obra e as fez falarem diferentes línguas. Não sendo capazes de entender um ao outro, os homens não conseguiram levar o projeto à frente e a torre de Babel não pode ser concluída.
Da lenda originou-se o termo “babel” associado a confusão de vozes, difíceis de entender. Para um viajante desavisado, basta percorrer um único país africano (como a Nigéria, com uma população de 210 milhões de habitantes) para se sentir em meio à babel de povos, línguas, religiões e cultura.
A África é riquíssima em línguas, culturas e etnias. Mas essa diversidade não coincide com as fronteiras nacionais contemporâneas. Um dos legados deixados pelo imperialismo no continente africano foi a incorporação de grupos étnicos muito diferentes entre si em territórios únicos, que passaram a ser administrados pelas potências europeias. Hoje, há 54 países africanos independentes, e neles vivem 2.000 a 3.000 etnias, muitas delas ocupando territórios que atravessam as fronteiras de um ou mais países.
As culturas também divergem até entre grupos falantes da mesma família de língua. Entre os iorubás, por exemplo, o nascimento de gêmeos é celebrado como um acontecimento positivo e a mãe é ida como favorecidade pelas divindades. Já entre seus vizinhos igbos, os gêmeos eram, no passado, considerados uma abominação e abandonados na floresta, enquanto a mãe tinha de se submeter a cerimônias de purificação (Costa e Silva, 2006).
As etnias africanas
O termo etnia deriva do grego ethnos que significa “povo”, “nação”, pessoas da mesma origem. Etnia caracteriza um grupo unido por uma ancestralidade, uma história, uma cultura, uma língua e um modo de vida, isto é, possui um patrimônio cultural comum que reproduz e transmite aos seus descendentes.
Entre os especialistas não há acordo sobre os critérios que permitem delimitar todas as etnias (língua, cultura, território, sentimento de pertencimento etc.). A distinção entre “etnia” e “grupo étnico” também é polêmica.
Seja como for, todos os povos humanos são grupos étnicos, apesar de geralmente atribuirmos essa noção a grupos marginalizados como negros, indígenas e quilombolas, por conta de nossa herança colonial.
A África possui entre 2.000 e 3.000 grupos étnicos falantes de 1.500 línguas diferentes ou, segundo outro critério de classificação, 2.050 línguas. Alguns desses idiomas, como o hauçá, são falados por dezenas de milhões numa extensa área geográfica. Já o teda é falado por um pequeno grupo de nômades do Chade, Niger e Líbia. A Nigéria sozinha tem mais de 500 idiomas, uma das maiores concentrações de diversidade linguística do mundo.
Muitos africanos falam mais de uma língua: a da sua comunidade e a de um ou mais grupos vizinhos. A necessidade de entender-se em mais de um idioma nasceu sobretudo do comércio desde tempos remotos. “De gente que viajava constantemente, a trocar produtos entre uma região e outra. Conheciam-se vilarejos vizinhos, frequentava-se o mercado mais próximo, ia-se às vezes buscar noiva numa terra mais distante” (Costa e Silva, p.54).
Os grupos étnico-linguísticos da África
Desde o século XIX, procura-se sistematizar as numerossímas línguas africanas, estabelecer os parentescos entre elas, agrupando em famílias as que parecem ter origem comum e apresentam formas ou estruturas semelhantes. A classificação de Joseph H. Greenberg, apresentada pela primeira vez em 1949 e 1950, ainda é a mais aceita, apontando quatro grandes famílias de línguas:
♦ Nígero-congolesa: a maior família, abrange grande parte ao sul do Saara cobrindo quase metade da Áfica. Inclui mais de 1.350 línguas entre elas o banto, o edo, o iorubá, o igbo, o zulu, o suáli e o teda. O banto tem tantas ramificações e tamanha extensão de território que muitos especialistas defendem que o banto como uma família independente.
♦ Afro-asiática: predominante no norte da África estendendo-se até o sudoeste da Ásia, abriga 240 línguas e 400 milhões de falantes. Divide-se nos seguintes ramos: berbere (dos tuaregues), egípcio antigo, semítico (incluindo o árabe), cuxita e chádico (onde se encontra os falantes de hauçá). De todas as famílias linguísticas vivas do mundo, o afro-asiático tem a história escrita mais longa, tanto em relação ao egípcio antigo quanto ao acadiano (da antiga Mesopotâmica).
♦ Nilo-saariana: línguas faladas principalmente no Sudão, Etiópia, Uganda, Quênia e norte da Tanzânia. A família é composta cerca de 140 idiomas, entre eles o massai, o songai falados por 30 milhões de pessoas.
♦ Koisan, coissã ou coisan: são cerca de 30 línguas faladas por cerca de 120 mil pessoas. A maior característica dessas línguas é o uso de cliques entre as consoantes. Estão presentes no sul do continente: Namíbia, Botswana e Angola. Entre seus falantes estão os hotentotes e bosquímanos, estes últimos considerados um dos primeiros habitantes do planeta.
Uma quinta família é a das línguas austronésias faladas em uma vasta área que abrange as ilhas do sudeste asiático e do Pacífico e inclui o malgaxe falado na ilha africana de Madagáscar.
Há, ainda, as línguas indo-europeias introduzidas pelos conquistadores em suas colônias africanas e que, em muitos países, mantiveram o status de idioma oficial e são amplamente faladas, geralmente como línguas francas (comuns).
São línguas indo-europeias faladas na África:
- Alemão (africâner): África do Sul e Namíbia,
- Francês (23 países africanos): Benim, Gabão, Madagáscar, Senegal, República do Congo, República Democrática do Congo etc.
- Inglês (9 países africanos): Botsuana, Gana, Nigéria, Ruanda, Quênia, Serra Leoa, Zâmbia etc.
- Português (5 países africanos): Angola, Cabo Verde, Moçambique etc.
- Espanhol (5 países africanos): ilhas Canárias, Ceuta, Guiné Equatorial etc.
Acrescente ainda o árabe, falado em 11 países entre eles, Marrocos, Argélia, Tunísia, Egito e Sudão.
Na Antiguidade, outras línguas indo-europeias podiam ser encontradas em várias partes do continente africano, como o persa antigo e o grego no Egito, o latim e o vândalo no norte da África, o persa moderno no Chifre da África.
Entendendo a babel africana
Diante de tamanha diversidade étnico-linguística, referir-se às populações da África como “os africanos” é usar um termo de indicação unicamente geográfica, mas, do ponto de vista cultural, histórico, étnico e linguístico pouco diz, pois é indeterminado, genérico, vazio de conteúdo e de identidade.
Dizer que a música Hakuna Matata (do filme “Rei Leão”, dos estúdios Disney) tem letra em “africano” é tão sem sentido quanto dizer que esse texto está escrito em “europeu”. Hakuna Matata é uma frase em suaíle, língua da família nígero-congolesa falada sobretudo na Tanzânia e no Quênia. Literalmente, hakuna significa “não há” e matata significa “preocupação” ou “problema”.
A música Jerusalema, outro sucesso mundial recente, lançada em 2020 pelo grupo sul africano Nomcebo Zikode, é uma música gospel cantada em zulu, língua da família nígero-congolesa e uma das 11 línguas oficiais da África do Sul.
If you speak a language they understand, you speak to their head. If you speak in their own language, you speak to their heart – disse Nelson Mandela.
“Se você fala em uma língua que eles compreendem, você fala às suas cabeças. Se você fala na língua (nativa) deles, você fala aos seus corações” (em tradução livre).
Fonte
- CHILDS, G. Tucker. An Introduction to African Languages. John Benjamins Publ., 2003
- SMITH, Stephen, LEVASSEUR, Claire. Atlas de l’Afrique: um continent jeune, révolté, marginalisé. Paris: Autrement, 2005.
- SELLIER, Jean. Atlas des Peuples d’Afrique. Paris: La Découverte, 2005
- COSTA E SILVA, Alberto da. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.