Em junho de 1968, durante a ditadura, o capitão Sérgio Macaco, pára-quedista da FAB e líder do esquadrão Para-Sar teve a coragem e a firmeza de responder ao seu superior, o brigadeiro Burnier:
— Não. Não concordo. E enquanto eu estiver vivo isso não acontecerá nesse país.
Ele se recusou a participar de plano diabólico, preparado por militares extremistas que mataria milhares de pessoas. Foi severamente punido e levou quase trinta anos para seu gesto ser reconhecido como heroico.
Quem era o capitão Sérgio Macaco
Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (1930-1994), conhecido como capitão Sérgio Macaco, entrou para a FAB aos 18 anos. Integrou o grupo que criou o Para-Sar, unidade de elite especializada em resgate e salvamento.
Participou de diversas missões na Amazônia, convivendo com diferentes grupos indígenas. Trabalhou ao lado de personalidades influentes da política indigenista, incluindo os irmãos Cláudio e Orlando Villas-Boas e o médico Noel Nutels. Conforme o relato de Orlando Villas-Boas, Sérgio era o militar que “mais se integrava e mais admirava a cultura indígena”. Os nativos o chamavam de “Nambiguá Caraíba”, ou “Amigo Branco”.
Até 1968, quando ocorreu o chamado Caso Para-Sar, o capitão Sérgio tinha um currículo com cerca de 900 saltos, 6 mil horas de voo e quatro medalhas por bravura.
1ª tentativa de terror: bombas de napalm
O Caso Pára-Sar começou logo após a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, 18 anos, atingido por um tiro certeiro dado por um policial militar no restaurante universitário Calabouço, no Rio de Janeiro (28/3/1968). O enterro do estudante parou a cidade, mais de 60 mil pessoas acompanharam o cortejo fúnebre, da Cinelândia ao cemitério São João Batista.
Quando a multidão chegou à Praia do Flamengo, um carro da Aeronáutica foi virado e incendiado. Ao ser informado do caso, o brigadeiro João Paulo Burnier (chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica brigadeiro Márcio de Souza Mello) ligou para a Base Aérea de Santa Cruz e ordenou que aviões atirassem bombas de napalm contra a multidão.
A ação só não se concretizou porque o brigadeiro Newton Rubens Shall Serpa, sabedor da ordem, teria determinado que nenhuma aeronave decolasse de qualquer aeroporto do Rio – até mesmo os comerciais – enquanto não acabasse o enterro do estudante.
2ª tentativa de terror: militares prontos para matar civis
No dia 4 de abril, missa de sétimo dia de Edson Luís, os militares do Para-Sar foram convocados pelo brigadeiro Burnier para uma operação conjunta com o Exército e a polícia. Sem fardas ou identificação e usando granadas e armas com a numeração raspada, os militares se misturaram aos manifestantes em três pontos estratégicos: Cinelândia, Largo da Carioca e Candelária, onde se realizaria a missa.
Os militares receberam ordens expressas para atirar e matar sumariamente caso detectassem qualquer agressão contra a polícia nas ruas. Deveriam, depois, abandonar os corpos e usar as granadas para fugir da multidão em caso de reação.
A intervenção acabou não sendo necessária e nenhuma morte aconteceu na passeata.
Capitão Sérgio Macaco entra em cena
O capitão Sérgio Macaco, que estava de férias, ao reassumir o comando do Para-Sar e ser informado dos fatos ocorridos, foi falar com seus superiores e expressou sua desaprovação com o emprego que se estava dando a esse esquadrão de elite.
As reclamações do capitão chegaram ao brigadeiro Burnier que chamou o pára-quedista ao seu gabinete. Tentou convencê-lo de que o Para-Sara era a “peça-chave para salvar o Brasil do comunismo”.
“Vocês do Pára-Sar são os Anjos do Espaço. Vocês agindo não causarão a menor suspeita. É que nem médico em hospital matando. Um crime perfeito. Jamais alguém vai desconfiar de vocês” – comentou o brigadeiro Burnier, autor do plano (1).
O plano terrorista do brigadeiro Burnier
Diante do capitão Sérgio Macaco e outros oficiais do Para-Sar, o brigadeiro Burnier apresentou o seu plano.
Inicialmente seriam realizados pequenos atentados à embaixada dos Estados Unidos, a uma agência do Citibank e à loja Sears, em Botafogo, com pequenas cargas de explosivos e com “reduzido número de vítimas fatais”.
A operação teria uma escalada de violência: cada ato seria mais forte que o anterior. O clímax desses atentados seriam as explosões do gasômetro e da represa do Ribeirão das Lajes que faz funcionar a hidrelétrica de Fontes Novas. Os tanques do gasômetro ficavam próximos à zona portuária e com a explosão poderiam gerar incêndios em série e vitimar umas 10 mil pessoas. A destruição da represa deixaria a cidade completamente às escuras.
Os atentados seriam atribuídos a organizações de esquerda, para justificar uma nova onda repressiva.
Com o Rio mergulhado no caos, começaria a fase final do plano: 40 personalidades políticas e militares seriam sumariamente executadas, em grupos de cinco. Encabeçando a lista, estavam os nomes de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, general Mourão Filho, Jânio Quadros, D. Helder Câmara, Mário Covas, os líderes estudantis Wladimir Palmeira e Franklin Martins entre outros críticos ao regime.
Também militares considerados “de esquerda” eram alvo: eles seriam embarcados em um avião MC-47, pilotado pelo próprio Burnier e pelo brigadeiro Hipólito da Costa, e lançados ao mar a 40 milhas da costa.
“No entender de Burnier, nós do Pára-Sar, deveríamos nos sentir honrados e bater no peito proclamando que éramos mesmo uma ditadura que deveria durar 30, 40 anos como em Portugal e na Espanha. Ele achava que para matar na guerra era preciso ter treinamento de matar na paz e que nós do Pára-Sar nos acostumaríamos a sentir o gosto de sangue na boca, não iríamos tremer a mão para atingir os objetivos, que eram os comunistas, os inimigos da Pátria. […] Chegou a me perguntar se a pessoa atirada de um avião morreria durante a queda ou só quando o corpo batesse contra a água.”
Ponderei que o chefe do governo era um marechal do Exército, o marechal Costa e Silva. Mas Burnier de pronto me corrigiu: ‘Costa e Silva, não. Bosta e Silva’. Segundo o brigadeiro, o presidente era um homem fraco no trato com os comunistas”. [Capitão Sérgio Macaco em entrevista à revista Fatos (2)]
A recusa do capitão Sérgio Macaco
Depois de expor o plano diabólico, o brigadeiro Burnier dirigiu-se aos militares do Pára-Sar e perguntou, um a um “Concorda?”. Ao chegar ao capitão Sérgio Macaco, berrou: “E o senhor? Concorda ou não concorda?”
No mesmo tom de voz, o capitão gritou: “Não. Não concordo. E enquanto eu estiver vivo isso não acontecerá nesse país”.
Burnier voltou a berrar: “Cale-se. Não se estenda em considerações”.
O capitão retrucou: “Não me calo. Darei conhecimento de tais fatos ao ministro”.
Burnier, que estava vermelho de raiva, ficou branco, deu as costas e não perguntou mais nada a ninguém. Saiu do gabinete.
A punição sofrida pelo capitão Sérgio Macaco
Por causa de sua recusa, o capitão Sérgio foi preso, respondeu a um inquérito militar e sofreu ameaças de morte. Ele conseguiu, porém, denunciar a trama de Burnier a outros oficiais superiores.
Em 1º de outubro de 1968, o episódio foi denunciado na tribuna da Câmara dos Deputados pelo deputado Maurílio Ferreira Lima (MDB-PE).
Embora já fosse público, o caso foi ignorado pela maior parte da imprensa. Uma corajosa exceção foi o jornal Correio da Manhã, que publicou reportagem sobre o caso como matéria de capa. Pery Cotta, o jornalista que escreveu a matéria, foi preso.
A denúncia chegou ao conhecimento do brigadeiro Eduardo Gomes, considerado patrono da Força Aérea Brasileira, que apoiou o capitão. Mas seus apelos foram deliberadamente ignorados por um grupo de oficiais generais.
Em dezembro de 1968, o capitão Sérgio Macaco foi sumariamente reformado (situação equivalente a aposentado) pelo Ato Institucional número 5 (AI-5), perdeu a patente, sem direito a receber o soldo e teve os seus direitos cassados.
Em 1979, Sérgio Macaco se recusou a solicitar o benefício da Lei da Anistia. Afirmava que não poderia aceitar “perdão oficial”, já que nunca cometera nenhum crime.
Foi homenageado em 1985, já no contexto da redemocratização, recebendo da ALERJ o título de “Cidadão Benemérito do Rio de Janeiro”.
Em 1989, Sérgio Macaco solicitou na Justiça a sua reintegração à reserva da Aeronáutica. O STF deu ganho de causa ao capitão três anos depois e determinou que ele fosse promovido a brigadeiro, patente que ele alcançaria se tivesse permanecido na ativa. Contudo, o ministro da Aeronáutica, Lélio Viana Lobo, se recusou a cumprir o determinado, e repassou a situação ao presidente da República, Itamar Franco que também protelou o cumprimento da decisão.
Vítima de câncer no estômago, Sérgio Macaco morreu em 5 de fevereiro de 1994 sem ter sua patente restabelecida ou receber a promoção a que tinha direito.
Somente em 1997, a família de Sérgio Carvalho foi indenizada pelo governo com o valor relativo às vantagens e soldos que ele deixou de receber entre os anos de 1969 e 1994.
Sérgio Macaco não foi o único caso de militar punido durante a ditadura. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, 6.591 militares foram perseguidos pelo regime militar iniciado em 1964. A lista inclui pessoas das mais variadas patentes, de oficiais a praças (como soldados e cabos), e que serviram no Exército, na Aeronáutica, na Marinha ou nas polícias estaduais.
Brigadeiro João Paulo Burnier
Brigadeiro da Força Aérea Brasileira (FAB), João Paulo Burnier (1919-2000) já havia tentado um golpe militar contra o governo de Juscelino Kubistschek, em 1959, a chamada Revolta de Aragarças. Entre os planos de Burnier, estava o bombardeio dos palácios do Catete e das Laranjeiras. Desfeito o movimento, Burnier exilou-se na Bolívia e só retornou ao Brasil em 1961, já no governo de Jânio Quadros.
Promovido a coronel, esteve em 1963 no Panamá, onde fez cursos na Escola das Américas, mantida pelo exército dos Estados Unidos. Em 1964, foi partidário do golpe que depôs o presidente João Goulart.
Recebeu patente de brigadeiro em 1968, no governo do marechal Artur da Costa e Silva. Passou a servir no gabinete do ministro da Aeronáutica brigadeiro Márcio de Souza Mello.
Denunciado no caso Para-Sar, negou todas as acusações. Continuou na ativa e foi nomeado chefe do Serviço de Informações da Aeronáutica e, em 1970 assumiu o comando da 3ª Zona Aérea no Rio de Janeiro.
Foi durante seu período à frente da 3ª Zona Aérea que Burnier também foi apontado como responsável pela prisão e desaparecimento de Rubens Paiva, Stuart Angel Jones e Anísio Teixeira, todos ocorridos em 1971.
Em carta dirigida ao presidente Ernesto Geisel, o brigadeiro Eduardo Gomes referiu-se a Burnier nos seguintes termos: “um insano mental inspirado por instintos perversos e sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”. Burnier era conhecido, também, pelo plano de matar todos os intelectuais mais importantes do país na época (3).
Foi transferido para a reserva compulsória, em março de 1972, por decisão do presidente Médici pressionado pelo governo dos Estados Unidos devido ao desaparecimento do estudante e cidadão estadunidense Stuart Angel. Ao contrário do Capitão Macaco, o brigadeiro Burnier não perdeu patente, nem o soldo militar.
Notas
(1) Mencionado pelo general Mourão Filho em entrevista à revista Fatos, 1 julho 1985, p. 43.
(2) Capitão Sérgio Macaco, entrevista à revista Fatos, 1 julho 1985, p. 40-41.
(3) CRONEMBERGER, Débora. UnB instala Comissão da Verdade com depoimento inédito. Unb Agência, 10 agosto 2012.
Fonte
- VEIGA, Edison. Sérgio Macaco, o capitão que evitou atentado da ditadura. DW, 5 fev2024.
- Capitão herói evita banho de sangue. Memorial da Democracia.
- SILVA, Estevam. 94 anos de Sérgio Macaco: o capitão que evitou um banho de sangue na ditadura. Opera Mundi, 17 julho 2024.
- SARMENTO, Luís Carlos; NOGUEIRA, Gabriel de Barros. Caso Pára-Sar: o homem que evitou um banho de sangue. Revista Fatos, n. 15, 1 julho 1985, Ed. Bloch.
- João Paulo Moreira Burnier. Acervo FGV-CPDOC
- FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. Rio de Janeiro: Record, 2005.
- ________. Lugar nenhum. Militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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