A Lei do Ventre Livre (Lei no 3.279), de 28 de setembro de 1871, concedeu liberdade às crianças nascidas de mulheres escravizadas no Império do Brasil a partir daquela data. Estabelecia, porém, condições: até os 8 anos, o ingênuo (como era chamada a criança) ficaria sob tutela do proprietário de sua mãe. Sendo livre, não poderia exercer nenhum tipo de atividade pelo menos até os 8 anos de idade. A partir daí, se o proprietário assim o quisesse, poderia manter a criança junto com a mãe até os 21 anos, tendo a prestação de serviços como contrapartida da alimentação e abrigo. Caso contrário, ela seria entregue aos auspícios do Estado mediante uma indenização.
A lei de 1871 punha fim, também, à estratégia dos escravistas para aumentar ou manter sua escravaria: estimular a reprodução de suas escravas. Desde o fim do tráfico negreiro, em 1850, para suprir as lavouras com mão de obra, os fazendeiros dependiam do tráfico humano interno e do ventre das escravas. A lei impedia o uso da escrava como reprodutora. Isso ocorreu, de fato? A Lei do Ventre Livre teria reduzido substancialmente o número de escravos disponíveis em uma propriedade? A vida dos filhos das escravas mudou depois da Lei do Ventre Livre? Qual o destino dessas crianças?
Para responder essas questões, os historiadores se debruçaram na análise de inventários post-mortem, escrituras de compra e venda de cativos, matrículas de escravos, cartas de alforrias, processos judiciais de disputa de propriedade, anúncios de jornais e processos criminais. O resultado da pesquisa mostrou uma realidade diferente daquela que a lei faria supor.
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- BNCC: 8º ano. HabilidadeS: EF08HI19, EF08HI20
- Ensino Médio: EM13CHS101, EM13CHS102, EM13CHS103, EM13CHS404, EM13CHS503, EM13CHS601, EM13CHS602
CONTEÚDO
- O trabalho das crianças escravizadas e alforriadas
- Opção pelo trabalho dos nascidos livres
- Venda de crianças no Brasil escravista do século XIX
- Trabalhando a Lei do Ventre Livre em sala de aula
- Fonte
- Saiba mais
O trabalho das crianças escravizadas e alforriadas
Após setembro de 1871, as crianças alforriadas pela lei, continuaram a viver dentro das senzalas, junto aos seus familiares cativos. Esses saíam para o trabalho na lavoura ou na rua, como escravos de ganho, em uma jornada extenuante de 12-14 horas contínuas. E os pequenos? Seguiam com eles, mesmo os bebês, amarrados às costas de suas mães, como acontecia antes da lei.
Crianças pequenas trabalhavam arrancando ervas daninhas, semeando frutas, cuidando de animais domésticos. Segundo Kátia Cardoso, “por volta dos 7 para os 8 anos, a criança não terá mais o direito de acompanhar sua mãe brincando; ela deverá prestar serviços regulares para fazer jus às despesas que ocasiona a seu senhor, ou até mesmo, à própria mãe, se esta trabalha de ganho e reside fora da casa de seu dono. […] A idade de sua vida que vai dos sete aos doze anos, não é mais uma idade de infância, porque já sua força de trabalho é explorada ao máximo […]. Mesmo se seu rendimento é menor, ele é escravo à part entière, e não mais criança.” (MATTOSO, 1991, p.90-91)
Mott também percebeu aos 7-8 anos as crianças escravas passavam a trabalhar no serviço mais regular. “Deixavam para trás as últimas ‘regalias’ infantis, aqueles que viviam na casa do senhor, e passavam a desempenhar funções específicas para sua idade ou já eram treinados para funções que desempenhariam vida afora.” (MOTT, 1989, p.88)
Heloisa Teixeira analisando as listas de ocupações, da cidade mineira de Mariana, constatou que 719 meninos e meninas escravizadas com idade inferior a 15 anos tinham funções diversas: roceiro (a maioria), candeeiro, pastor, carpinteiro, sapateiro, alfaiate, serrador, serviço doméstico, cozinheiro, copeiro, lavadeira, costureira, pajem, criado, servente, mucama etc (TEIXEIRA, 2010, p.86).
Na prática, portanto, a situação dos filhos das escravas não mudou significativamente depois de 1871. Vivendo em propriedades escravistas, os filhos livres das escravas foram mantidos em quase sua totalidade na mesma condição servil dos cativos de fato.
Opção pelo trabalho dos nascidos livres
Crianças eram, portanto, uma mão de obra útil o que levou os escravistas a tentarem contornar o que consideravam “prejuízo” ao seu patrimônio. Por má-fé dos senhores, muitas crianças libertas pela lei de 1871, foram avaliadas como escravas seja pela omissão de sua condição de livre ou pela manipulação da data de seu nascimento.
Tendo o direito de escolher entre os serviços dessas crianças, a partir dos 8 anos de idade, ou uma indenização pela criação dos mesmos, a grande maioria dos senhores escolheu a primeira opção.
Segundo dados obtidos no Relatório do Ministro da Agricultura de 1885, do total de 400 mil ingênuos – como eram chamados os filhos livres das escravas – registrados até aquele momento, apenas 118 foram entregues ao Estado em troca da indenização de 600$000, número que não correspondia a 0,5% do total de crianças nascidas livres de mãe escrava em todo o país (CONRAD, 1978, p.144).
Os escravistas usaram a prestação de serviço dos ingênuos até completarem 21 anos, como forma de ressarcimento pela criação recebida. Isso incluía até os bebês e crianças pequenas. Foi o caso de Joana, de apenas 1 ano de idade que foi arrolada no inventário de 1876:
“declaram os herdeiros que a ingênua Joana de idade de 1 ano […] preste seus futuros serviços aos herdeiros solteiros, quais dona Albina, dona Maria, dona Blaudina, dona Emínia, dona Eliza porque assim ficará em compahia de seu pai, e os seus futuros serviços será uma fraca recompensa aos referidos herdeiros solteiros pelo trabalho da criação da mesma.” (TEIXEIRA, 2010, p. 76).
Venda de crianças no Brasil escravista do século XIX
A legislação de 1869 proibia a separação de suas mães, pela venda, de crianças escravizadas menores de 15 anos. A lei de 1871, reduziu a idade para 12 anos. Houve casos, porém, em que a lei foi burlada. Em 1874, o menino Fortunato, de 5 anos de idade, propriedade de Antônio de Pádua Dias foi vendido, apesar de sua pouca idade, sozinho. Em 1880, o menino Ezequiel, de 11 anos, propriedade do senhor Lucindo Gonçalves Dias, morador da freguesia de Barra Longa, foi vendido ao senhor Quintino Gonçalves Dias, morador de Mariana, Minas Gerais (TEIXEIRA, 2010).
O historiador Robert Conrad, revela a venda dos serviços de crianças filhos de escravas, nos jornais cariocas das décadas de 1870 e 1880. Os anúncios informavam os nomes, idades e “qualidades” dos ingênuos. Em um deles, um jornal carioca de 1881, incluía 10 ingênuos cujos preços variavam de 400 mil-réis para um rapaz de 9-10 anos de idade. Até 10 mil-réis por um menino de 2 anos. “Apesar de repetidos protestos da imprensa e do próprio governo, a ‘venda’ de ingênuos continuou até 1884.” (CONRAD, 1978, p. 142).
A preferência era por meninos e meninas na faixa de 10 a 14 anos. Havia razões para isso: o valor inferior ao dos escravos adultos, a expectativa de vida longa (a taxa de mortalidade era muito alta entre zero a 9 anos), ao potencial de trabalho que já evidenciavam nessa faixa etária e o fato de serem menos propícios a insubordinações e desacatos. Os pequenos cativos eram, muitas vezes, comercializados sozinhos, o que incorria em desrespeito à lei que proibia a venda de crianças desacompanhadas de seus familiares.
A situação começou a mudar nos anos 1880, quando ocorrre significativa redução da venda de crianças assim como de crianças no trabalho escravo graças ao aumento das alforrias fornecidas pelos escravistas ou obtidas pelo pecúlio dos escravos.
A mentalidade escravista da sociedade brasileira, contudo, não mudou. O conto “Negrinha“, de Monteiro Lobato, de 1920, revela que a Lei do Ventre Livre não libertou as crianças negras da mentalidade escravista dos senhores brancos, carregada de preconceito e racismo. Negrinha, a pequena órfã de sete anos, “nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças”. Sua patroa, descreve Lobato, “nunca se habituara ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco”.
Trabalhando a Lei do Ventre Livre em sala de aula
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Fonte
- CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
- CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
- RAMOS, Claudia Monteiro da Rocha. A escravidão, a educação da criança negra e a Lei do Ventre Livre (1871). Campinas: Unicamp. 2008 (Dissertação da Mestrado).
- TEIXEIRA, Heloísa Maria. Os filhos das escravas: crianças cativas e ingênuas nas propriedades de Mariana (1850-1888). Cadernos de História, v. 11, n. 15, p. 58-93, 31 out. 2010.
- MATTOSO, Kátia de Queiroz. O filho da escrava. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p.76-98.
- MOTT, Maria Lúcia Barros. Ser mãe: a escrava em face do aborto e do infanticídio. Revista de História, São Paulo, n. 120, p.85-96, julho, 1989.
- Lei do Ventre Livre – texto integral. Blog da Biblioteca Nacional. Acesso em 07.05.2022.
Saiba mais
- Fim do tráfico de escravos para o Brasil
- As pressões britânicas pelo fim do tráfico de escravos
- Assinada a Lei Áurea de abolição da escravidão
- Promulgada a Lei dos Sexagenários
- Promulgação da Lei do Ventre Livre
- “Negrinha”, de Monteiro Lobato, um conto para discutir o preconceito e o racismo
- Esperança Garcia, a escrava que escreveu uma petição ao governador