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Ilíada e Odisseia: 27 mil versos que atravessaram milênios

21 de agosto de 2024

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A célebre Guerra de Troia, que teria ocorrido em torno de 1250 a.C., foi transmitida oralmente de geração a geração durante séculos até ser eternizada em versos no século IX ou VIII a.C. nas monumentais Ilíada (de “Ilion”) e Odisseia (de “Odisseu”, nome grego de Ulisses, seu personagem central). Os 15.693 versos da Ilíada aos quais são adicionados os cerca de 12.000 versos da Odisseia são atribuídos ao poeta grego Homero.

É antiga a polêmica em relação à autoria dos poemas (há quem afirme que somente a Ilíada foi escrita por Homero) e discute-se até mesmo a existência de Homero. Hoje, os especialistas classificam essas obras de “homéricas” sem alusão direta a um personagem histórico, mas a uma época ou uma memória grega antiga.

Seja como for, os poemas homéricos inspiraram artistas ainda na Antiguidade que deram sequência à narrativa ou ampliaram e detalharam episódios tratados brevemente na Ilíada e Odisseia. Assim foi o episódio do cavalo de Troia, mencionado em poucas linhas na Odisseia, mas que ganhou destaque em autores posteriores, como Virgílio, poeta romano do século I a.C. Sua obra Eneida narra as aventuras do herói troiano Eneias a partir da queda de Troia. É Virgílio quem narra a astúcia sugerida por Ulisses de construir o cavalo de madeira, graças ao qual os gregos finalmente conseguiram penetrar na cidade inimiga depois de dez anos de cerco.

Este artigo remete para atividades para o Stud História, Veja no final.

Vaso de Mikonos, com uma das mais antigas representações do Cavalo de Troia, século VIII a.C.

A Guerra de Troia foi lenda ou realidade?

A Guerra de Troia foi um grande conflito bélico entre os aqueus das cidades-estados da Grécia e Troia ocorrido em meados de 1250 a.C. e que durou cerca de dez anos. Troia também era conhecida pelo nome latinizado de Ílion e estava situada na costa noroeste da Anatólia, na atual Turquia.

Segundo a lenda, a guerra ocorreu depois que Páris, príncipe de Troia, tirou Helena de seu marido, rei de Esparta.

Até o século XIX, a Guerra de Troia narrada por Homero era considerada pelos estudiosos como absolutamente lendária. Segundo eles, a guerra jamais ocorrera e Troia nunca existiu. Essa visão foi reformulada com as descobertas de Heinrich Schliemann que encontrou as ruínas de Troia e de Micenas em 1873.

Apesar dos métodos de escavação de Schliemann terem sido contestados e também seus erros e imprecisões na identificação de artefatos, suas descobertas foram importantes e abriram caminho para trabalhos mais meticulosos. O arquiteto alemão Wilhelm Dörpfeld que deu sequência às escavações em Troia a partir de 1882 trouxe mais rigor à pesquisa, sendo pioneiro da escavação estratigráfica e da rigorosa documentação dos achados.

No local, foram descobertas nove Troias, que se sobrepõem em camadas. Schiliemann presumiu que o nível mais inferior (Troia I) fosse a cidade homérica e, para chegar a ela, foi eliminando o que havia por cima. Dessa forma, destruiu a “Troia real”, identificada mais tarde nas camadas superiores.

Segundo Dörpfeld, a célebre cidade estaria nas camadas  de Troia VI ou Troia VII que ele penosamente escavou camada por camada.

Posteriormente, o arqueólogo Carl William Blegen, liderando as escavações de 1932 a 1938, descobriu fortes evidências de que Troia VII (c. 1300-1180 a.C.) havia sofrido um longo cerco, após o qual teria sido saqueada. Sua equipe encontrou pontas de flechas em estilo grego em muros, esqueletos insepultos, ossos de animais, prédios incendiados e outras construções divididas em aposentos que poderiam acomodar famílias buscando abrigo. Blegen datou a queda de Troia por volta de 1250 a.C.

Embora Schliemann tenha encontrado as ruínas da cidade de Troia (aliás, várias cidades, uma sobre a outra) no local mencionado por Homero, e das descobertas arqueológicas posteriores a questão da historicidade da guerra continua dividindo a opinião dos estudiosos. Os céticos da veracidade da Guerra de Troia apoiam-se na ausência de registros hititas de uma invasão na Anatólia.

Outros estudiosos afirmam que há um núcleo histórico na narrativa e que os relatos homéricos são uma fusão de vários contos de cercos e expedições de gregos micênicos durante a Idade do Bronze.

Os historiadores Moses Finley e Milman Parry explicam que a Guerra de Troia está relacionada a um amplo fluxo migratório micênico, decorrente da invasão dos dórios no Peloponeso. Poderia também haver uma correlação com o ataque dos “povos do mar” ao Egito no tempo do faraó Ramsés III.

O Mundo da Ilíada, c. 1200 a.C. conforme mencionado por Homero mostrando a localização de cidades e a distribuição de governantes e heróis. Clique no mapa para amplia-lo.

Ilíada: temas centrais

A estrutura da Ilíada e da Odisseia é complexa: envolve centenas de personagens, entre deuses, semideuses e mortais, em uma cronologia abrangendo anos e que nem sempre é linear. A narrativa é pontuada por recuos, repetições, intervenções de deuses, longas descrições e muitos diálogos.

A Ilíada narra os acontecimentos decorridos no período final da Guerra de Troia, os últimos cinquenta dias do décimo ano da guerra. O personagem central é Aquiles cuja ira causada por uma disputa com Agamenon, comandante dos exércitos gregos, causou a morte de Pátroclo, seu melhor amigo, e de um grande número de companheiros.

Segue-se o feroz combate entre Aquiles e Heitor, príncipe de Troia que acaba sendo morto por Aquiles.

Outros quadros de forte dramaticidade do poema são: as súplicas de Príamo a Aquiles para que lhe entregue o cadáver do filho; a morte de Aquiles, morto ingloriamente por uma flecha lançada por Páris que atingiu seu calcanhar direito; o drama de Hécuba, rainha de Tróia que vê morrer o marido e quase todos os seus filhos; as virtudes e a resignação de Andrômaca, mulher de Heitor.

A Ilíada termina com o funeral de Heitor. A sequência da guerra  – o “cavalo de Troia”, o ataque final e o incêndio da cidade – é contada ao longo da Odisseia.

Corpo de Heitor sendo levado de volta à Troia, sarcófago romano, detalhe, século II, Louvre.

Odisseia: temas centrais

A Odisseia narra o regresso de Odisseu (ou Ulisses, como era chamado pelos romanos) à Ítaca, sua terra natal. O retorno dura dez anos durante os quais o herói grego passa por toda sorte de acontecimentos: seu confronto com o ciclope Polifemo, o encontro com a feiticeira Circe, a descida ao Hades, o reino dos Mortos, as armadilhas das sereias e outras aventuras.

Ao chegar em Ítaca, Ulisses ainda enfrenta e elimina todos os pretendentes de sua esposa Penélope, que o julgava morto. Por fim, consegue vencer as desconfianças de Penélope ao descrever a cama que construiu para ela após se casarem – fato que somente os dois conheciam.

Aquiles e Ulisses: dois heróis diferentes

Enquanto a Ilíada conta a cólera de Aquiles, a Odisseia narra a astúcia de Odisseu ou Ulisses. Dois modelos de heróis com virtudes muito diferentes.

Aquiles é um semideus, guerreiro de uma coragem imensurável, mas também de um ódio desdenhoso e crueldade empedernida. Era filho de Tétis e Peleu, rei dos mirmitões. Sua mãe, querendo torná-lo imortal, banhou-o, ainda bebê, nas águas do rio Estige; porém, segurou a criança pelos calcanhares que, por isso não foram molhados pelas águas sagradas. Dessa maneira seu corpo se tornou impenetrável com exceção dos calcanhares, sua parte vulnerável e mortal.

Sua mãe lhe dá a escolha entre uma vida longa e pacífica, mas obscura, ou uma vida curta e gloriosa. Aquiles escolhe a glória. Ele se torna, assim, o herói típico, que desafia o perigo – o que implica morrer jovem, mas para sempre lembrado. A morte de Heitor, príncipe troiano, anuncia a de Aquiles que, ao final, não conhecerá a vitória dos aqueus na Guerra de Troia.

Odisseu ou Ulisses, rei de Ítaca, ao contrário de Aquiles, conserva-se por meio da astúcia. No começo da narrativa quando todos os reis são convocados por Agamenon, Ulisses se finge de louco para evitar ir à guerra. Recém casado com Penélope e pai de um bebê, Telêmaco, Ulisses é capaz de negar a si mesmo em prol de uma razão moral – estar ao lado da mulher e do filho e gozar a felicidade da vida terrena.

Os historiadores Jean-Pierre Vernant e Marcel Détienne propuseram uma noção peculiar para compreender a complexidade de Ulisses: a métis, uma forma de inteligência astuta que combina conhecimento e experiência com prudência para atuar em situações imprevisíveis que requerem ação imediata. Os deuses, heróis e criaturas da mitologia grega usam de métis, e Ulisses é um dos heróis mais intimamente associados à métis, aquele que sabe esperar pacientemente para que se produza a ocasião esperada para agir.

Por amor à família, Ulisses enfrenta todos os perigos, despreza a paixão de uma ninfa e recusa o amor de uma princesa. Ulisses é ao mesmo tempo o protagonista de uma epopeia e de um romance. Nesse sentido, o personagem se aproxima mais do homem comum de hoje. Não é à toa que a Odisseia tenha inspirado um dos maiores romances contemporâneos “Ulysses” (1922), de James Joyce, que transpõe o percurso do Ulisses homérico para um dia na vida do anti-herói Leopold Bloom, na Dublin provinciana de 1904.

O retorno de Ulisses.

O retorno de Ulisses, Pinturicchio, 1509, Galeria Nacional, Londres.

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Acessar

Fonte

  • HOMERO. A Ilíada, tradução Fernando C. de Araújo Gomes. São Paulo: Ediouro, 1996.
  • HOMERO. A Odisseia, tradução de Carlos Alberto Nunes, São Paulo: Ediouro, 1996.
  • BLEGEN, Carl W. Troia e os troianos, editorial Verbo, Lisboa, 1971.
  • BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1988.
  • GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1995.
  • TRAIL, David. Schliemann of Troy: Tresure and Deceit, University of California Press, 1995.
  • The Golden Treasures of Troy, Archiv für Kunst und Geschichte, Berlin. Abrams, New York, 1996.
  • VERNANT, Jean-Pierre & DETIENNE, Marcel. Métis: as astúcias da inteligência. Editora Odysseus, 2017.

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