Quando escreveu 1984, George Orwell não pensava em uma sociedade futura, mas no presente. Sua distopia não pretendia ser uma metáfora, mas uma descrição dos totalitarismos do século XX, sobretudo o stalinismo. No entanto, este livro, lançado com grande sucesso em 1949, não perdeu sua pertinência e continua, mais de setenta anos depois, servindo de espelho para os dilemas contemporâneos*.
Tornou-se, em 2017, uma obra de referência com a eleição de Donald Trump, na qual a pós-verdade e os “fatos alternativos” tomaram conta da política. Naquele ano, 1984 subiu na lista dos livros mais vendidos nos Estados Unidos na Amazon, o gigante digital do comércio online.
*Para trabalhar essa obra em sala de aula, veja no final desse artigo.
1984 e o contexto em que foi escrito
O livro 1984 foi lançado em 1949, pouco tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Aqueles anos pós-guerra foram marcados por golpes de Estado e intervenções armadas das potências imperialistas em outros países. A exposição das atrocidades cometidas durante o julgamento dos líderes nazistas no Tribunal de Nuremberg provocou indignação mundial.
Entre a população civil, foram frequentes as delações de homens e mulheres apontados como “traidores” por terem ficado ao lado do inimigo (mesmo quando isso era uma questão de sobrevivência). Comprovadas ou não, as delações acabavam em humilhações públicas, espancamentos e linchamentos.
Sobre esse clima pós-guerra, disseminou-se pelo mundo o medo de uma guerra nuclear. Começava a Guerra Fria, com o mundo dividido em dois blocos antagônicos: Ocidental capitalista X Oriental comunista. A URSS havia desenvolvido a bomba atômica e isso aumentou as desconfia e as ameaças (reais ou mentirosas) de que um dos dois lados iria detonar a bomba atômica.
Foi nesse contexto que George Orwell escreveu 1984, uma obra de ficção contando uma história que se passava em um futuro próximo, menos de duas gerações a frente.

“1984” teve centenas de edições ao longo do tempo, incluindo adaptações para o cinema, rádio, televisão, teatro (musical e peça), além de óperas e balés.
George Orwell
George Orwell (1903-1950), pseudônimo de Eric Arthur Blair, filho de pais ingleses, nasceu em Bengala, na Índia, na época sob domínio do imperialismo britânico. Quando tinha um ano de idade, sua mãe o levou para morar na Inglaterra.
Aos 19 anos de idade, foi servir na Polícia Imperial Indiana, na Birmânia (colônia britânica). Ali permaneceu por cinco anos fazendo o policiamento armado contra uma população miserável e faminta. Essa experiência deu origem a um ódio permanente ao imperialismo. Anos depois, escreveu sobre seu papel na administração colonial: “O funcionário público mantém os birmaneses subjugados enquanto o empresário furta seus bolsos”.

George Orwell trabalhou para o Serviço Indiano da British Broadcasting Corporation (BBC) entre 1941 e 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, ocupando-se com a produção de propaganda.
Em 1927 contraiu dengue, demitiu-se da Polícia Imperial Indiana e voltou à Inglaterra decidido a se tornar escritor. Ao longo dos vinte e dois anos que lhe restavam de vida, permaneceu um inimigo declarado do imperialismo britânico que ele acusou de racista, arrogante e hipócrita.
Em 1936, decidiu ir lutar contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Na Espanha, combateu os nacionalistas de Francisco Franco que havia dado um golpe militar. Orwell e sua esposa se juntaram às milícias marxistas contra a burguesia espanhola. Foi baleado na garganta e teve a sorte de sobreviver. Deixou a Espanha clandestinamente para evitar a prisão.
Ao regressar a Londres, Orwell ficou desolado com as calúnias que se espalhavam sobre a milícia espanhola que ele participou, falsamente acusada de ser fascista. Até mesmo os intelectuais de esquerda e os comunistas ingleses acreditavam nas mentiras disseminadas pela extrema direita.
Orwell era radicalmente antifascista e antinazista, considerava “imbecis” as teorias raciais de Hitler. Era contrário também ao Stalinismo, isto é, ao socialismo soviético que denunciou em sua obra A Revolução dos Bichos (1945). Era extremamente crítico do imperialismo e do racismo. Defendia a liberdade religiosa e a separação entre Igreja e Estado.
Em uma carta de 1937, Orwell escreveu: “Finalmente eu realmente acredito no socialismo, o que nunca havia feito antes”, e no final de sua vida ele ainda disse: “Cada linha de trabalho sério que escrevi desde 1936 foi escrito, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático.”
1984, breve síntese
1984 nasceu como uma ficção científica que mostrava um futuro pessimista para a humanidade. A trama se desenrola no ano 1984, depois de décadas em que a civilização global foi devastada pela guerra mundial, conflitos civis e revoluções. Três superestados totalitários governam o planeta. Um deles é a Oceania, onde vive o protagonista Winston Smith.
A Oceania é governada pelo “Partido” e por um misterioso líder, o Grande Irmão (Big Brother), que é objeto de um intenso culto à personalidade. Na Oceania, o amor, a privacidade, o prazer sexual e a liberdade de pensamento foram proibidos e a beleza, erradicada. Sob a vigilância do “Grande Irmão”, os cidadãos da Oceania vivem o medo de que alguma possível transgressão venha a ser denunciada à poderosa Polícia do Pensamento. Aqueles que caem em desgraça com o Partido tornam-se “não-pessoas” desaparecendo do noticiário, dos livros, das conversas, do convívio social e todas as evidências de sua existência são destruídas.
Winston Smith é um trabalhador mediano funcionário do Ministério da Verdade, onde cria propagandas oficiais, as únicas permitidas. Secretamente ele odeia o partido e sonha com uma revolução. Quando ele se rebela e se apaixona por uma colega que compartilha suas opiniões “subversivas” é preso, torturado e “reeducado” à submissão total.
Lembre que, na época que o livro foi escrito, o mundo estava destroçado pela guerra. O crescimento econômico e a sociedade de consumo só se realizariam na década seguinte. A autocensura era a regra até mesmo nas democracias ocidentais. Os motivos inspiradores de 1984 eram a mentira institucionalizada, a tortura sutil (exploração do medo coletivo) e o espírito belicista cultivado pela população.

“1984” foi traduzido para mais de 65 idiomas e continua sendo uma das obras mais vendidas.
A Novilíngua, uma ferramenta de controle
Na ficção, Orwell apresenta a “Novilíngua” (ou “novafala” ou novidioma”) – uma ferramenta de controle usada pelo governo para controlar o pensamento através da manipulação da linguagem. O objetivo da “Novilíngua” é o empobrecimento da linguagem: reduzir e simplificar o vocabulário eliminando palavras que dificultem a reflexão e o pensamento crítico.
Esse processo visa impedir as críticas e rebelião ao sistema totalitário da Oceania, pois é difícil pensar sobre algo que não pode ser expresso. Se as pessoas não podem se referir a algo, isso deixa de existir. Não se trata de proibir ou censurar, mas de restringir as possibilidades de raciocínio.
A linguagem é moldada de forma a permitir que as pessoas aceitem ideias contraditórias e simples (“duplipensar”), como os slogans “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é Força”.
Orwell explica: “As palavras e as siglas mentem, escondem a verdade, e devemos escolher as palavras mais simples possíveis […] porque as palavras são os espelhos dos nossos pensamentos”.
Ele cria uma linguagem artificial, uma linguagem que será compreendida por todos e, portanto, a mais simples possível. “A linguagem que se fala na TV, que você ouve no rádio, que é usada na imprensa, é em última análise uma linguagem que direciona o seu pensamento. Cuidado com a forma como você fala, preste atenção nas palavras que são repetidas para você. Você pode sofrer uma lavagem cerebral completa: não contando histórias, mas usando palavras em um sentido que perverte a linguagem e lhe dá poder sobre a liberdade do indivíduo”.
A recepção da obra
1984 fez sucesso logo no lançamento, em 1949, deixando Orwell preocupado de que fosse mal interpretado pelos direitistas anticomunistas. Não viveu para ver a grande projeção que seu livro acabou assumindo, tornando-se um clássico na Guerra Fria. Faleceu seis meses depois da publicação, de tuberculose, em um sanatório inglês.
Recentemente, um dossiê do FBI revelou que as obras de Orwell, 1984 e A revolução dos Bichos foram usadas pelos americanos e russos como figura-chave na guerra ideológica entre as décadas de 1950 e 1970. Editoras americanas exploraram o romance 1984 como uma crítica ao totalitarismo soviético. Os soviéticos usaram as obras de Orwell como parte de uma campanha de difamação do capitalismo, informando ao povo russo que sua sátira se baseava na vida real dos Estados Unidos, onde todo mundo ficava sob vigilância.
Nos anos 1960 e 1970, serviços americanos de segurança vigiaram sociedades e cineclubes em campus universitários para se certificar de que não eram uma fachada para conduta subversiva pró-socialismo. Detalhes do dossiê foram divulgados de acordo com a lei americana sobre liberdade de informação, mas 11 páginas continuaram guardadas sob sigilo. Informes do FBI sobre o escritor têm sido muito censurados, embora alguns fossem dados a público três anos após a morte de Orwell.” (Jornal O Estado de S. Paulo, 01 jul.2000, caderno A, p. 13).

“1984” retrata um regime de controle total da sociedade, vigilância constante dos cidadãos, censura e manipulação da verdade e da história, e o uso da linguagem como ferramenta de controle.
O impacto cultural da obra hoje
Referências aos temas, conceitos e enredo de 1984 apareceram com frequência em muitas obras, especialmente na música popular e entretenimento em vídeo. Um exemplo é o reality show de sucesso mundial Big Brother, no qual um grupo de pessoas vive junto em uma casa grande, isolada do mundo exterior, mas continuamente vigiada por câmeras de televisão.
Noam Chomsky adaptou o neologismo de Orwell, “não-pessoas”, para descrever aqueles que o Estado considera “impróprios para entrar na história” e a quem o Estado retira o direito de viver para fazer avançar a soberania do Estado
Em novembro de 2012, Barack Obama, presidente dos EUA argumentou perante a Suprema Corte do país que poderia continuar a usar o rastreamento de indivíduos por GPS. Sua ideia foi questionada e associada à trama de 1984: invasão de privacidade e vigilância onipresente.
O assunto voltou à cena em meados de 2013, quando foi divulgado que a Agência de Segurança Nacional dos EUA vinha monitorando e armazenando secretamente o tráfego global da internet, incluindo a coleta em massa de dados de e-mail e chamadas telefônicas. Novamente a obra de Orwell foi citada e as vendas de 1984 aumentaram em até 7 vezes na Amazon.
Em 5 de novembro de 2019, a BBC incluiu 1984 em sua lista dos 100 romances mais influentes do mundo. Em 2020, foi o terceiro na lista dos “Melhores Livros de Todos os Tempos” da Biblioteca Pública de Nova York.
As vendas de 1984 voltaram a disparar nos EUA na eleição de Donald Trump, após assessora do presidente mencionar “fatos alternativos”, termo empregado na obra.
1984 tornou-se um clássico de ficção política e distópica, e mais atual do que nunca.
John Rodden, o maior estudioso de George Orwell do mundo, aponta que Orwell é o autor de ficção séria mais vendido em qualquer idioma. Todos os seus livros, mesmo os mais fracos, ainda estão em circulação 70 anos após sua morte, e os mais famosos reaparecem continuamente no topo das listas de mais vendidos.
Trabalhando 1984 em sala de aula
“1984”, de George Orwell: para analisar a Guerra Fria e a manipulação da linguagem. Material com fragmentos da obra e questões para debater com os alunos.





