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“Dr. Fantástico”: o filme que ridicularizou a Guerra Fria

4 de dezembro de 2017

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BNCC

A cena final do filme “Dr. Fantástico” causou um forte impacto na plateia, em 1964, ao mostrar uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética, com ogivas espocando no céu e formando monstruosos cogumelos atômicos. Isso ao som da música romântica We’ll meet again (“Nós nos encontraremos de novo”), na doce voz de Vera Lynn. Letra e música reforçam a ironia do filme, afinal, onde é que vamos nos encontrar depois de um apocalipse nuclear? Não haverá lugar nem pessoas, animais, plantas…. A guerra nuclear acaba com toda possibilidade de vida.

  • BNCC: 9º ano. A Guerra Fria: confrontos de dois modelos. Habilidade: EF09HI28

“Dr. Fantástico ou Como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba atômica” (Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), dirigido por Stanley Kubrick (Inglaterra/Estados Unidos, 1964) é uma sátira política de humor negro. Conta como um general insano, que acredita em uma conspiração comunista, dá ordens para bombardear a Rússia, iniciando uma guerra nuclear. Ao mesmo tempo, o presidente dos Estados Unidos e seus assessores do Pentágono tentam desesperadamente parar o processo.

cartaz do filme

Cartaz do filme “Dr. Strangelove” ou “Dr. Fantástico”.

“Dr. Fantástico” tornou-se um clássico do cinema. Um filme para os amantes de tecnologia que mostra seus primórdios, da telefonia de longa distância até computadores capazes de tomar decisões. Um filme para cinéfilos por sua linguagem cinematográfica inovadora. Um filme para historiadores e cientistas políticos por retratar um período dramático da história mundial – a Guerra Fria.

Um filme icônico, mas que não é fácil de ser entendido, especialmente por aqueles que não viveram a tensão daqueles anos. Vamos examiná-lo sob vários ângulos, procurando desvendar suas ironias e alusões.

O contexto e as intervenções no filme

O filme foi lançado em 1964, época em que o mundo ocidental ainda estava sob o impacto de três acontecimentos dramáticos da Guerra Fria: a construção do muro de Berlim pelos soviéticos (1961), a Crise dos Misseis que ameaçou desencadear uma guerra nuclear (1962) e o assassinato de John Kennedy, presidente dos Estados Unidos (22/11/1963) cujas causas ainda hoje geram discussões.

Tamanha era a tensão mundial que o filme teve seu lançamento atrasado e ainda sofreu algumas modificações de última hora. “Dr. Fantástico” fez sua primeira sessão-teste em 22 de novembro de 1963, no mesmo dia em que o presidente John F. Kennedy foi assassinado em Dallas. Reconhecendo que o tom de sátira e humor negro era inapropriado para o momento trágico, a Columbia Pictures atrasou o lançamento para janeiro de 1964.

Alterou-se também uma frase dita pelo Major Kong que, ao abrir um kit de sobrevivência, comentava “Um cara pode ter um bom final de semana em Dallas com todas essas coisas”. A palavra Dallas foi substituída por “Vegas” para não fazer alusão à cidade do assassinato de Kennedy.

Suprimiu-se a cena final do filme, a da guerra de tortas na Sala de Guerra, bem ao estilo pastelão americano. O trecho começava com o embaixador soviético que, irritado com o general Turgidson, lança-lhe uma torta de creme que atinge o presidente dos Estados Unidos. Alguém grita: “Senhores, o nosso amado presidente foi indignamente abatido por uma torta no auge de sua vida!  Nós vamos deixar isso acontecer? Ao ataque!”.

Guerra de tortas, cena suprimida

A guerra de torta, cena final de “Dr. Fantástico” que foi suprimida para não ferir o público norte-americano.

A fala “nosso amado presidente (…) abatido no auge de sua vida” poderia ser interpretada como um desrespeito e provocação aos discursos proferidos por ocasião do assassinato de Kennedy. A cena foi descartada. Reapareceu apenas na exibição do filme no National Film Theatre, em 1999, após a morte de Kubrick.

No contexto da Guerra Fria, esses fatos aumentavam a tensão internacional entre o bloco americano e o soviético e alimentavam desconfianças e acusações mútuas. A Defesa Civil dos Estados Unidos multiplicou a construção de abrigos antinucleares para abrigar as famílias, as crianças receberam treinamentos para se proteger (!?) em caso de ataques de bombas – medidas que contribuíam para a difusão do medo.

Crianças em treinamento antibombas

Crianças fazem treinamento de proteção a ataque de bombas

Abrigo antinuclear

Abrigo antinuclear, anos 1950, Estados Unidos.

Acreditava-se que o fim do mundo aconteceria a qualquer momento, e esta decisão estava nas mãos de dois homens: o presidente dos Estados Unidos e o dirigente da União Soviética. Prova disso, diziam, era o temível telefone vermelho entre Washington e Moscou, uma linha de telex para ser utilizada em “caso de urgência”. Imaginava-se que o telefone vermelho tocaria anunciando o início da catástrofe final, a Terceira Guerra Mundial.

As inspirações do filme

“Dr. Fantástico” baseou-se no livro Red Alert (“Alerta Vermelho”) de Peter George. Trata-se de uma história de calamidades políticas mas que sob o olhar de Kubrick ganhou outro viés. Durante o processo de roteirização, Kubrick decidiu por criar uma comédia e lhe acrescentou novos personagens, entre eles, o personagem-título: Dr. Strangelove, o cientista com sotaque alemão, preso a uma cadeira de rodas e com uma estranha doença que, a todo momento, erguia seu braço direito para a saudação nazista Heil Hitler!

Interpretado por Petter Sellers (que ainda interpreta outros dois personagens no filme), Dr. Strangelove ou Dr. Fantástico, na versão brasileira, foi baseado em quatro cientistas famosos que trabalharam em projetos militares nos Estados Unidos:

  • Wernher Von Braun, engenheiro alemão e uma das principais figuras no desenvolvimento do foguete V-2, na Alemanha nazista, e do foguete Saturno V, nos Estados Unidos;
  • Herman Kahn, estrategista milita norte-americano, célebre por suas análises sobre as prováveis consequências de uma guerra nuclear;
  • John von Neumann, matemático húngaro de origem judaica que migrou para os Estados Unidos em 1933, inventor da teoria dos jogos usada para avaliar o impensável: a guerra atômica; supervisionou a construção do arsenal nuclear norte-americano no pós-guerra;
  • Edward Teller, físico húngaro, conhecido como o pai da bomba de hidrogênio.

Peter Sellers como Dr. Strangelove ou Dr. Fantástico, o cientista com sotaque alemão, preso a uma cadeira de rodas e com uma estranha doença que, a todo momento, erguia seu braço direito para a saudação nazista “Heil Hitler!”

Para alguns críticos, ‘Dr. Fantástico” é, também uma paródia de Fail-Safe (“Limite de Segurança”), filme americano de Sidney Lumet (1964) que aborda o tema da guerra nuclear, em estilo realista e angustiante. O argumento é semelhante ao filme de Kubrick: devido a um erro em seus aparelhos de defesa, os computadores do Comando de Estratégia Aérea, determinam a um grupo de seis bombardeios atômicos que ultrapassem o ponto chamado “limite de segurança” e destruam Moscou com duas bombas atômicas. Alarmado, o governo americano tenta de todas as formas chamar seus aviões de volta, mas os pilotos ignoram as ordens verbais, uma vez que seu treinamento o exige.

O humor ácido e sutil do filme

Diante do clima internacional de medo crescente, ”Dr. Fantástico” destoava por seu humor negro provocando ao mesmo tempo riso e reflexão. Rodado em branco e preto (uma opção do diretor, pois o filme colorido já estava consolidado no cinema), o design do filme é também escuro e, em muitas cenas, claustrofóbico em ambientes fechados de salas sem janelas ou do interior apertado dos aviões.

A cena inicial, na base militar, soldados circulam em um cenário de painéis com luzes piscando, alavancas e botões onde, ao fundo, há um cartaz com os dizeres Peace is Our Profession (“A Paz é nossa profissão”). A mensagem da paz se repete em vários momentos, sempre com tom de ironia, como na briga entre o general norte-americano e o embaixador soviético interrompida pelo presidente com a fala: “Vocês não podem brigar aqui! Isto é a Sala de Guerra!”.

Peter Sellers como Lionel Mandrake

Petter Sellers como o Lionel Mandrake. Ao fundo, na parede se lê “A Paz é nossa profissão”, o lema presente em diversas cenas do filme.

Petter Sellers como o presidente Merkin Muffley interrompe a briga na Sala de Guerra.

A Sala de Guerra, onde ocorrem maior parte das cenas, é um abrigo antiaéreo. A grande mesa redonda tinha o tampo de feltro verde – exigência de Kubrick mesmo sabendo que o filme seria em branco e preto. Trata-se de uma mesa de pôquer transmitindo a ideia de que a guerra é um jogo, onde um perde e outro ganha, não há escolha, não é possível nenhum outro resultado e nenhuma forma de colaboração. Na mesa da Sala de Guerra, o presidente, o embaixador soviético e os generais jogam pôquer para decidir os destinos do mundo.

A mesa evoca também a célebre Távola Redonda do rei Arthur, e os homens à sua volta, os “eleitos”, os líderes guardiões da paz mundial e salvadores da humanidade.

Cena do filme Dr. Fantástico

A Sala de Guerra, uma mesa de pôquer para o jogo da guerra.

Os nomes dos personagens foram pensados para se adequarem ao humor ácido e irônico do filme, como:

Brigadeiro Jack B. Ripper  (Sterling Hayden): oficial da Força Aérea dos Estados Unidos, cujo nome remete a Jack, o estripador, famoso assassino em série que atuou na periferia de Londres em 1888. Na época do lançamento do filme, 1964, não existia o termo serial killer que só apareceria em 1966 , no livro The Meaning of Murder, de John Brophy. Falava-se, então, em “assassinato em massa” e esta pode ter sido a inspiração de Kubrick. Ripper é o oficial paranoico pelo perigo comunista e o maior defensor da matança generalizada para exterminá-lo.

Major T. J. King Kong (Slim Pickens), personagem bronco cujo nome é referência direta a King Kong, o gigantesco gorila eternizado pelo cinema, o ser primitivo e monstruoso destruidor da civilização.  É King Kong que vai “cavalgar” a bomba nuclear dirigida a um alvo da União Soviética agitando seu chapéu de cowboy. Ao longo do filme ele demonstra um tipo de cordialidade, engenhosidade, iniciativa e determinação – qualidades míticas do pioneiro americano que ele encarna.

Embaixador soviético Alexi de Sadesky (Peter Bull) alusão ao notório Marques de Sade, a encarnação do mal absoluto que sente prazer pelo sofrimento que causa. Uma justificativa pelo estupro, crueldade e assassinato.

Capitão Lionel Mandrake (Peter Sellers) faz alusão ao personagem de história em quadrinhos, Mandrake, extraordinário mágico capaz de iludir uma multidão.

Tenente Lothar Zogg (James Earl Jones) lembra Lothar, o servo fiel de Mandrake a quem obedecia cegamente.

O filme toca em uma questão fundamental: a cadeia de comando. Quem manda? É o presidente dos Estados Unidos? É um militar de alto escalão (Brigadeiro Ripper) ou de baixo escalão que anseia por ser herói (major King Kong)? É o cientista que projetou as máquinas? Ou a própria máquina que, se acionada não desliga mais? A questão reforça a ideia de que a guerra é um jogo. Daí se entender o diálogo entre Ripper e Mandrake:

  • RIPPER: Mandrake, você se lembra do que Clemenceau disse uma vez sobre a guerra?
  • MANDRAKE: Não, eu acho que não, senhor.
  • RIPPER: Ele disse que a guerra era muito importante para ser deixada aos generais. Quando ele disse isso, há 50 anos, talvez ele tivesse certo. Mas hoje, a guerra é muito importante para ser deixada aos políticos. Eles não têm nem o tempo, nem o treinamento, nem a inclinação para o pensamento estratégico. Não consigo mais sentar e permitir a infiltração comunista, a doutrinação comunista, a subversão comunista e a conspiração comunista internacional para contaminar e destruir todos os nossos preciosos fluídos corporais.

A teoria da conspiração

A expressão surgiu nos tempos da Guerra Fria para denominar a ideia paranoica de que um grupo de pessoas ou uma organização supostamente tramava uma ação secreta, ilegal e poderosa para destruir o país, um grupo social ou o meio ambiente.

Uma das teorias da conspiração da época foi a da fluoração ou fluoretação da água. A adição de flúor à agua iniciou-se no final da década de 1940 e causou muito alarde nos Estados Unidos. A Sociedade John Birch, fundada em 1958, um grupo americano ultraconservador e anticomunista, promoveu uma agressiva campanha contra a fluoretação em todo país. Afirmava que o flúor causava certos níveis de debilidade mental provocando o “emburrecimento da população”. Em várias áreas do país, a fluoração da água foi banida e os defensores da prática foram ameaçados de prisão.

“Dr. Fantástico” traz o assunto pelo personagem Brigadeiro Ripper e com uma nova ameaça: a fluoretação causa impotência, pois destruía os “fluídos corporais preciosos” do homem americano. Isso era, afirma Ripper, uma conspiração soviética para destruir a sociedade americana. A conversa de Ripper com Mandrake, a respeito, é hilárica. Veja no fragmento abaixo

“Dr. Fantástico” – a fluoretação da água (legendado)

O desfecho do filme

Mandrake não parece convencido da conspiração soviética contra a água. O brigadeiro Ripper entra em um surto psicótico anticomunista e ordena um ataque nuclear não-autorizado à União Soviética. Quando Mandrake decide deter a decisão de Ripper, este lhe ameaça com uma arma e tranca-o em seu escritório. Mandrake percebe, então, que Ripper está louco.

O piloto do bombardeio, major King Kong, segue à risca a ordem recebida. O piloto que naquele momento lia a “Playboy” a bordo do B-52, é tirado de seu sossego para levar a bomba.

Os pilotos recebem um kit de sobrevivência, outra cena satírica de Kubrick. A pequena caixa tem um revólver calibre 45, duas caixas de munição, ração alimentar para quatro dias, antibióticos, morfina, vitaminas, pílula pra dormir, tranquilizante, uma mini Bíblia com um anexo contendo frases em russo, cem dólares em ouro, cem dólares em rublos, nove embalagens de chiclete, três batons, três pares de meias de nylon. O major Kong comenta: “Um cara pode ter um bom final de semana em Las Vegas com todas essas coisas”.

Qual a mensagem sutil de Kubrick nesse estranho kit de emergência? Para que serviria o  revólver depois de uma guerra nuclear? E o mais enigmático: por que três batons e três pares de meias de nylon? Lembrando que a caixa foi dada antes do lançamento da bomba, esses itens seriam para alguma festinha a bordo? Uma alusão à transsexualidade?

Piloto do B-52 lê a "Playboy.

Piloto do B-52 lê a “Playboy”, pouco antes de lançar a bomba nuclear.

Kit de sobrevivência para os pilotos do B-52.

Kit de sobrevivência para os pilotos do B-52. Entre os itens estavam: um revolver 45, munição, chicletes, remédios, pílula para dormir, uma mini Bíblia, três batons e três pares de meias femininas.

MIni Bíblia

Uma mini Bíblia que trazia, ainda, um adendo com frases em russo, fazia parte do kit de sobrevivência.

O dispositivo automático de lançamento da bomba falha e o major Kong decide ir repará-lo em pleno vôo. Entra na cabine onde estão as bombas. Nelas está escrito: Nuclear warhead handle with care (“Ogiva nuclear, manusear com cuidado”). As bombas trazem também as saudações Hi there! e Dear John. Outra sutileza de Kubrick: Hi there! é uma popular cantada homossexual e Dear John, expressão relacionada a perda e tristeza, é a saudação da carta (temida pelos soldados em guerra) escrita pela mulher informando que está com um outro.

O major Kong monta na bomba Hi there! para consertar o equipamento e acaba sendo lançado junto com ela. Cavalgando a Hi there!, grita em êxtase como um vaqueiro. Veja a cena.

“Dr. Fantástico” – Major Kong lança a bomba

O bombardeio aciona automaticamente um dispositivo de retaliação da União Soviética denominado  “A Máquina do Juízo Final” que cobrirá toda a Terra com uma nuvem radioativa durante 93 anos.

A sucessão de explosões atômicas, ao som da canção romântica We’ll Meet Again (“Nós nos encontraremos outra vez”), é dramática e impactante. A canção, de 1939, era uma das mais famosas da época da Segunda Guerra Mundial, que aludia à despedida dos soldados de suas famílias e namoradas na partida para a frente de combate. Os versos “vamos nos encontrar novamente, não sei onde, não sei quando” soavam como um melancólico otimismo, já que muitos soldados não sobreviveram para rever seus entes queridos novamente.

“Dr. Fantástico” – cena final (legendado)

Um clássico do cinema

O filme “Dr. Fantástico” expõe os absurdos da Guerra Fria onde duas superpotências se armam até os ossos para manter a paz. Um filme irreverente, com um argumento engenhoso, personagens caricaturais e repleto de diálogos envolventes e hilariantes que faz o público rir do medo. Uma crítica ácida à Guerra Fria e à mediocridade dos homens que a comandam capazes de desencadearem uma guerra nuclear graças às fissuras governamentais e equívocos diplomáticos.

“Dr. Fantástico” é também um filme inovador por destinar três personagens antagônicos ao mesmo ator. Peter Sellers interpreta Merkin Muffley, presidente dos Estados Unidos, o oficial britânico Lionel Mandrake, da Força Aérea Britânica e Dr. Fantástico, cientista alemão e ex-nazista travado em uma cadeira de rodas. Kubrick pretendia que Sellers interpretasse, também, o major King Kong, mas o ator convenceu-o que seria demasiado pesado dar conta de quatro personagens tão diferentes.

Há momentos em que dois personagens dialogam entre si, uma novidade no cinema até então e sem os atuais recursos de computação gráfica. Petter Sellers é tão genial em sua atuação que quase não se percebe que esses três personagens são interpretados pela mesma pessoa.

Considerado a maior sátira política do século, “Dr. Fantástico” rendeu a Stanley Kubrick quatro indicações ao Oscar: melhor diretor, melhor filme, melhor ator (Peter Sellers) e melhor roteiro adaptado.

Stanley Kubrick (1928-1999) é considerado um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos, autor de clássicos como Glória feita de sangue (1957), Spartacus (1960), Lolita (1962), 2001: uma odisseia no espaço (1968), Laranja Mecânica (1971), O Iluminado (1980) entre outros.

Fonte

  • BAXTER, John. Stanley Kubrick, a biography. Nova York: Harper Collins, 1998.
  • LOBRUTTO, Vincent. Stanley Kubrick: a biography. Nova York: Donald Fine Books, 1997.
  • KUBRICK, Stanley. Stanley Kubrick. Rio de Janeiro: Museu da Imagem e do Som, 2013.
  • KROHN, Bill. Stanley Kubrick. Londres: Phaidon Press, 2010 (Coleção Masters of cinema).
  • ORICCHIO, Luiz Zanin. Stanley Kubrick, o cineasta das obras-primas. Revista virtual Cult 20.

Sobre a Guerra Fria

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Lennon Paiva da Silva
Lennon Paiva da Silva
7 anos atrás

Bom artigo, acredito que esqueceu de mencionar que a ideia do Doutor Fantástico de escolher os cidadãos “mais fortes” para sobreviverem no final do filme remete ao nazismo de Hitler.

Airon Silva
Airon Silva
5 anos atrás

Parabéns pelo artigo. Segundo Paul Strathern em “Uma breve história da Economia” o Dr. Fantástico real existiu e foi nada mais nada menos que o Dr. Von Neumann. Este foi conselheiro direto do presidente Eisenhower e participou decisivamente da criação da bomba atômica americana. Conta o autor que Von Neumann, que usava cadeira de rodas, aconselhou o presidente a atacar a Rússia primeiro, segundo sua Teoria dos Jogos. Einsehower, é claro, não seguiu o conselho.

Joelza Ester
Joelza Ester
5 anos atrás
Reply to  Airon Silva

De fato, John Von Neumann foi conselheiro estratégico em política de defesa. O presidente Eisenhower o nomeou para a Comissão de Energia Atômica, onde Von Neumann supervisionou a construção do arsenal nuclear norte-americano no pós-guerra. A teoria dos jogos de Von Neumann se tornou uma ferramenta para analisar o impensável – a guerra atômica – e levou a doutrina de “destruição mútua assegurada”, que iria dar forma a estratégia dos EUA pelas próximas duas décadas. Von Neumann também se tornou um ícone da guerra fria. Sofrendo de câncer no pâncreas, ele continuou frequentando as reuniões da Comissão de Energia Atômica,… Read more »

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