Uma escultura da deusa Nimba, peça importante nos rituais africanos do oeste do continente, passou décadas no anonimato em meio a outros objetos guardados por um colecionador da cidade de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul. Agora, sua identidade foi reconhecida e anunciada pelo Núcleo de Estudos em Cultura Afro-Brasileira e Indígena (Neabi) da PUC-RS. A peça, pertencente às etnias Baga e Nalu, das atuais repúblicas da Guiné e Guiné-Bisssau, é o primeiro artefato desse tipo descoberto e produzido em solo americano.
Descoberta da peça
A escultura foi encontrada por um pescador no rio Ijuí, na região das Missões, no Rio Grande do Sul. Na época, a região sofria uma grande seca que fez o leito surgir próximo a um conjunto de ilhas no Rincão dos Mendes. Nos anos de 1980, a peça foi comprada pelo artesão Getúlio Soares Lima, colecionador de artigos missioneiros.
Em 2016, Lima convidou o pesquisador Edison Hüttner, coordenador do Neabi para conhecer sua coleção particular em Santo Ângelo. Foi, nesta oportunidade que Hüttner viu a peça e se interessou por pesquisá-la.
Resultado da pesquisa
Foram dois anos de pesquisa. Edison Hüttner identificou a estátua de Nimba, deusa da fertilidade dos povos Baga e Nalu, na região da Guiné e Guiné-Bissau, no oeste do continente africano.
A peça, feita em um único bloco de madeira, tem 46,4 cm de altura e pesa 3,7 kg. Estava fixada em algum local para ser cultuada.
Certamente, a escultura foi feita no Brasil uma vez que os escravos eram proibidos de carregar objetos nos navios negreiros. Seu autor – escravo, liberto ou um fugitivo quilombola do século XVIII ou XIX –, era um mestre que conhecia a arte, a escultura e os rituais praticados por aqueles povos africanos.
A peça possui os detalhes, a sincronia, o significado e arte de uma deusa Nimba: a cabeça tem crista, tranças, escarificações e olhos definidos; o peito arredondado com seios alongados e mamilos salientes; quatro pernas finas que iniciam na base do peito até o chão.
Hipóteses da origem da peça
São diversas as hipóteses sobre a origem da estátua. Ela pode ter chegado até o rio Ijuí proveniente de uma leva de escravos que chegou à região entre os séculos XVIII e XIX. Conhecem-se as seguintes levas:
- Em 1756, cerca de 190 escravos acompanharam um comando militar português que acampou por oito meses em Santo Ângelo.
- Em 1765, uma leva de negros da Guiné, proveniente da Bahia, chegou ao Rio Grande do Sul.
- Em 17874, cerca de 13 mil escravos da Guiné foram levados para Buenos Aires pelos tratados de comércio entre as coroas ibéricas.
- Em 1814, em Sete Povos da Missões, havia 250 negros.
- Quilombo próximo ao rio Conceição, que desemboca no rio Ijuí, cuja existência era conhecida à época da Revolução Farroupilha (1835-1845). O local, próximo à Villa de Cruz Alta (RS), na região das missões, abrigava escravizados da Guiné. Rituais africanos, proibidos pelo governo da época, eram realizados às escondidas dentro dos quilombos.
A deusa Nimba e sua gente
Nimba significa “alma grande”, é a deusa da fertilidade cultuada pela sociedade secreta Cimo, nas festas da semeadura e colheita do arroz. Há relatos de jesuítas do séc. XVII sobre um ritual com a deusa Nimba feito pelo povo Baga. Os Nalu, na mesma região, adotaram a mesma deusa e seus ritos. O ritual ainda é praticado, a despeito da maioria da população hoje ser muçulmana e católica.
Cada Nimba é uma peça única, com características que revelam originalidade e a habilidade do artista, e seu contexto. Portanto, a Nimba nunca é uma réplica.
Nimbas com mais de 1m de altura são usadas como máscaras apoiadas no ombro e compõe o traje do dançarino durante os rituais. As Nimbas médias e pequenas, como a encontrada no Brasil, servem para serem cultuadas em uma espécie de altar.
Os Bagas eram, e ainda são, grandes caçadores, pescadores e produtores de arroz. Durante os primeiros tempos de contato com os navegadores portugueses, vendiam-lhes marfim e produtos da floresta. É uma sociedade patriarcal mas com forte presença de mulheres em todos os níveis de decisão, sinal de uma sociedade matriarcal anterior.
Importância da descoberta
Segundo Edison Hüttner, a Nimba encontrada no Brasil é o primeiro artefato desse tipo descoberto e produzida em solo americano. Todas as peças hoje expostas em museus europeus e norte-americanos são provenientes da África.
Isso indica a existência de rituais autênticos de religiosidade africana praticados por afrodescendentes brasileiros.
Fonte
- Estátua do século 18 com arte africana é descoberta no RS. PUCRS, 11/09/2018
- Estátua secular de deusa africana é descoberta no Estado. GaúchaZH, 10/09/2018.
- Estátua de arte produzida por afrodescendentes brasileiros no século 18 poderá ser visitada em Porto Alegre. Globo.com G1-RS, 12/09/2018.
- ASANTE, Molefi Kete & MAZAMA, Ama (ed.). Encyclopedia of African Religion.
- Baga Guinea. Rand African Art, Denver, Colorado, Estados Unidos.
Veja também
Máscaras africanas: beleza, magia e importância (para recortar e colorir).