O Saara não foi uma barreira intransponível para os povos africanos. Desde 4000 a.C., os egípcios usavam uma rota que ligava o vale do Nilo ao porto de Elim, no Mar Vermelho onde adquiriam produtos como incenso e lápis-lázuli vindos da Arábia e da Ásia. Outra rota, mais distante, ligava o Egito ao rio Níger, em um percurso de 3,5 mil quilômetros cortando o deserto de leste a oeste, de onde vinha a goma-arábica usada na mumificação.
Com a introdução do camelo, a partir do séc. III d.C., as rotas transaarianas ganharam impulso atingindo grande dinamismo entre os séculos VII e XI. Os tuaregues, grupo berbere do norte da África, passaram a criar camelos e a vendê-los como animais de carga, além de usá-los no comércio transaariano.
Caravanas do Sael ao Mediterrâneo
Liderando caravanas compostas com 1.000 a 1.200 camelo ou mais, os tuaregues logo controlavam as rotas e os oásis em toda extensão do deserto Saara, desde a costa mediterrânea, no norte, até o Sahel, no limite do saara.
O Sahel, “borda do deserto” em árabe, é uma faixa de 5.400km de extensão e 700 km de largura na África Subsaariana, formada por estepes e savanas, e que corta a África de oeste a leste, do Atlântico ao Mar Vermelho. Constitui uma zona de transição entre a aridez do deserto e as florestas tropicais mais ao sul.
A travessia da costa mediterrânea ao Sahel levava, em geral 2 a 3 meses. As caravanas tinham que vencer enormes dunas de areia e extensos trechos de aridez absoluta, passando 3 até 14 dias sem encontrar um poço d´água.
Entre os séculos VII e XI houve um vigoroso desenvolvimento do comércio entre as diferentes regiões do continente africano integrando as economias locais e regionais. Os produtos mais trocados eram matérias-primas (ferro, linho, algodão, goma-arábica, índigo), alimentos (milhete, peixe desidratado, sorgo, arroz, trigo, sal, azeite), escravos, camelos, cavalos, tecidos, ouro, cobre, pérolas e marfim.
Portos caravaneiros
O camelo atravessava o deserto do Saara, mas não se adaptava ao clima da savana. Por isso, ao chegarem ao Sahel, as mercadorias tinham que ser transferidas para as costas de bois e jumentos que continuavam a viagem mais ao sul.
Os locais de parada obrigatória no Sahel transformaram-se em centros de comércio que forneciam serviços de descarga e recarga de animais, conserto de selas e arreios, armazenagem de produtos e escravos, hospedagem e venda de alimentos, artigos de couro e metal. Esses centros comerciais eram controlados por reis que cobravam tributos de passagem e taxas de alfândega dos mercadores tuaregues.
Portos caravaneiros tornaram-se centros urbanos poderosos como Audagoste, fundada no século V d.C., a 2.500 km ao sul de Ceuta (Tânger), no norte da África, cerca de cinquenta dias de viagem no deserto do Saara. Até por volta do século XV, Audagoste foi um importante centro agrícola, artesanal e mercantil, com belos edifícios, mesquitas e casas elegantes.
Outras cidades nascidas do comércio transaariano foram Kumbi Saleh, Walata, Djené, Tombuktu, Gâo e Kano.
As mercadorias mais importantes e mais antigas comercializadas nos centros urbanos do Sahel foram: o escravo, o ouro, o sal e a noz-de-cola.
Comércio escravo pelos muçulmanos
O comércio de escravos era muito antigo e, nas duas margens do deserto do Saara, o escravo tinha os mesmos usos. Com a difusão do islamismo, cresceu o tráfico. O próprio Maomé era senhor de escravos, e segundo seus ensinamentos, a escravidão era um meio de incorporação do infiel. Escravos eram mandados para o Egito, o Iêmen, a Arábia, o Iraque, o golfo Pérsico, a Índia e até mesmo, a China. Em menor escala, também foram vendidos a mercadores venezianos e genoveses, e para as cidades muçulmanas da península Ibérica.
Segundo Costa e Silva, africanos do Sahel eram vendidos para os canaviais aos arredores de Ceuta e, sobretudo, para ampliar a criadagem, o harém e os exércitos de reis e califas. Soldados escravos eram muito valorizados pois, sendo estrangeiros, não tinham vínculos de lealdades locais ou de linhagem.
Entre os cativos, os de preço mais elevado eram os eunucos. Custavam caro, pois poucos sobreviviam à castração feita, em geral, quando eram meninos. As estimativas de sobrevivência oscilam entre 30% e 20%. Os eunucos ocupavam altos postos da administração pública e das mesquitas.
Comércio de ouro
Até pelo menos o século XVI, o Sahel foi o maior produtor de ouro do mundo. Os depósitos eram abundantes em Bambuk e Buré, no vale dos rios Senegal e Níger, no oeste da África. A localização das minas foi mantida em rigoroso segredo pelos mineradores e os comerciantes que com eles tinham contato.
A forma de extração do ouro é a mesma até hoje:
“Passada as cheias, cavavam-se poços quadrados, de uns 75 cm de lado, que raramente iam abaixo dos vinte metros, sendo frequentes as perfurações de apenas dois metros de profundidade. À medida que os poços desciam, suas paredes iam sendo reforçadas com vigas de madeira (…). Cavavam túneis horizontais em várias direções e uniam assim os poços entre si. Mandavam em cabaças o minério para a superfície e este era catado pelas mulheres, ao entardecer”. (Costa e Silva: 2006, p. 287)
Nos centros comerciais, os mercadores deviam pagar um dinar em ouro (cerca de 4g) ao entrar em seus territórios, e dois, à saída. Todas as taxas eram pagas em ouro. O sal, produto valioso no comércio africano, também era trocado por ouro.
O ouro de Bambuk e Buré enriqueceu Gana, o primeiro grande reino do Sahel que ficou conhecido como “o país do ouro”.
Comércio do sal
Produto indispensável para os animais e seres humanos, o sal é uma mercadoria valiosa em muitas regiões da África já que o território africano é pobre desse mineral. O comércio do sal teve um importante papel na história africana, movimentou economias, fundou cidades, enriqueceu reis e provocou guerras entre nações.
O mais importante centro de mineração de sal foi Taghaza, localizada no norte do atual Mali, em uma região desértica. Ali trabalhavam milhares de escravos extraindo sal para abastecer as caravanas. Ainda hoje, o sal continua sendo extraído de suas minas.
O sal era transportado no lombo de camelos e descarregado em Tombuctu onde passava para embarcações que subiam o rio Níger até Djené. Ali era trocado por ouro e levado à cabeça por escravos e distribuído pela savana chegando até as florestas.
Comércio de noz-de-cola
A noz-de-cola é um fruto muito consumido nas regiões do deserto Saara e da savana africana. Seu sumo amargo refresca a boca, sacia a fome e a sede, e reduz a fadiga graças ao seu alto teor de cafeína. Era um artigo de luxo, de alto valor por suas propriedades medicinais e por ser um dos raros estimulantes permitidos no mundo islâmico.
Seu consumo rapidamente se difundiu entre as populações do Sahel e se estendeu à África do Norte. A noz-de-cola criou um novo costume entre as populações africanas do Sahel: oferece-se o fruto ao visitante logo à sua chegada. Ela é distribuída nos casamentos, nas grandes festas, nas reuniões políticas e no final dos jantares. Para selar um acordo ou em prova de amizade, parte-se uma noz de cola para que cada um coma um pedaço (Costa e Silva: 2006: p.470).
Fruto de uma árvore nativa da África Ocidental, a noz-de-cola passava por um complicado percurso até sua venda final. Coletada em florestas fechadas, era carregada na cabeça ou nas costas de escravos ou de mercadores pobres, atravessando rios até chegar nas savanas onde passava para o lombo de jumentos ou burros; depois era transportada pelas caravanas de camelos.
O percurso demorava de seis meses a um ano. Como o fruto é delicado, o tempo de viagem e as mudanças de temperatura e umidade estragavam boa parte do produto. Daí o alto preço que a noz atingia no seu destino podendo chegar a 300 vezes ou mais o valor inicial.
Em 1885, a noz-de-cola foi utilizada pelo farmacêutico norte-americano John Pemberton na preparação de uma bebida que daria origem à Coca-Cola. Atualmente, o produto natural foi substituído por um sintético. A fórmula da Coca-Cola recebeu, também, outro produto africano: a goma-arábica, usada como emulsificante em bebidas carbonatadas.
A goma-arábica é uma resina de cor amarelada extraída de duas espécies de acácias, árvores nativas da África subsaariana. Seu uso remonta aos antigos egípcios, que a chamavam de “kami”, e a empregavam, desde 2650 a.C., nas bandagens que enrolavam as múmias. No comércio transaariano, a goma-arábica era comercializada como fixador de tintas e para engomar e lustrar tecidos.
A difusão do Islã e as caravanas muçulmanas
Além de produtos, as rotas transaarianas serviram de caminho para grupos populacionais em atividades comerciais, guerras de conquista, peregrinação e educação religiosa. Essa intensa mobilidade populacional é tão antiga quanto as caravanas de camelos.
As rotas transaarianas serviram para as conquistas muçulmanas e a difusão do islamismo. As jihads contra os infiéis do Sahel causaram um grande impacto, especialmente a Audagoste, no século XI, e a Tombuctu, no século XVI, que foram atacadas e arrasadas. Mas, tão logo o Islã se consolidou no Sahel, o comércio transaariano foi retomado e dinamizado.
Todos os comerciantes do norte da África que vieram com as caravanas eram muçulmanos e preferiam negociar apenas com muçulmanos. A ascensão almorávida no século XI e a queda de Gana deixaram claro que os governantes que se converteram ao Islã tinham sucesso no comércio transaariano.
O crescente comércio transaariano contribuiu para a disseminação do árabe como língua escrita na África Ocidental e subsaariana. O árabe tornou-se a língua religiosa, do comércio, do governo e da lei.
O colonialismo imperialista do século XIX, ao estabelecer fronteiras e retalhar o continente africano em diversas áreas de domínio europeu dificultou ou mesmo impediu a mobilidade e o comércio pelas rotas transaarianas. No entanto, após a independência das colônias, as rotas e as migrações transaarianas foram retomadas.
As rotas transaarianas hoje e a migração africana
Nas décadas de 1970 e 1980, o assentamento forçado e voluntário de nômades, as guerras no Sahel e as secas provocaram dois tipos de mobilidade: 1) migração dos nômades e comerciantes empobrecidos (como os Tuaregues) para trabalhar em canteiros de obras e nos campos de petróleo da Argélia e da Líbia; 2) migração de milhares de refugiados das guerras na zona do Sahel para em cidades da Líbia, Argélia, Mauritânia e Egito.
Depois dos anos de 1990, ocorre um novo movimento migratório realizado numerosos ex-nômades da Líbia e Argélia que encontraram novos meios de subsistência no contrabando de bens e pessoas através do Saara.
O líder líbio Muammar Al-Gaddafi, pressionado pelo embargo aéreo e armamentista imposto à Líbia pela Conselho de Segurança da ONU entre 1992 e 2000, estimulou a migração de africanos subsaarianos para trabalhar na Líbia que foram empregados na construção e na agricultura. Em 2000, ocorreram violentos confrontos entre líbios e trabalhadores africanos que levaram à morte dezenas de migrantes subsaarianos. O governo recuou em sua política de incentivo à migração e, entre 2003 e 2005, deportou aproximadamente 145.000 migrantes, em sua maioria subsaarianos.
Entre os anos 1990 e 2000, também o Marrocos atraiu africanos subsaarianos, especialmente os da República Democrático do Congo, Serra Leoa, Libéria e Nigéria – países devastados pelas guerras civis. O Egito, por sua vez, atraiu migrantes do Sudão e do Chifre da África que fugiam da guerra.
A partir de 2005, as rotas migratórias dos africanos subsaarianos seguiram em direção oeste para Argélia, Marrocos e Tunísia para, a partir daí, atravessar o Mediterrâneo de barco para as ilhas Canárias, Malta, Lampedusa, Pantalleria e Sicília.
Até mesmo imigrantes da China, Índia, Paquistão e Bangladesh têm chegado ao continente africano onde, tomando as rotas transaarianas via Níger, buscam atingir o Marrocos e a Europa.
Atualmente, trechos das antigas rotas ainda percorridos pelos tuaregues que, em caravanas de camelos, levam o sal extraído do deserto para as comunidades do Sahel.
Há um esforço da União Africana e do Banco Africano de Desenvolvimento para concluir a construção e pavimentação da rodovia Transaariana, que corta o deserto do Saara de norte a sul, a partir de Argel, na Argelia, até Lagos, na Nigéria. Com uma extensão de 4.500 km, tem boa parte pavimentada apesar de muitos trechos precários e cobertos de areia.
Fonte
- COSTA E SILVA, Alberto. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
- LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
- Trans-Saharan Trade. Wikipedia.
- SILVERIO, Valter Roberto (ed.). Síntese da coleção História Geral da África. Pré-História ao século XVI. Brasília: Unesco, MEC, UFSCar, 2013
- The African slave trade: the Arabs.
- Trans-Saharan Migration to North Africa and the EU: historical roots and current trends Migration Policy Institute. 1 Nov 2006.
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