Depois de um julgamento sumário, Papai Noel foi enforcado e queimado no átrio da catedral de Dijon, na França, diante de centenas de crianças. Isso aconteceu de verdade! E seu algoz não foi o Estado Islâmico, mas o clero católico, protestantes, os conservadores franceses e até trabalhadores anticapitalistas.
O fato
O fato ocorreu na tarde de 24 de dezembro, nos degraus da catedral de Saint Bénigne, na cidade de Dijon, na França. Era o ano de 1951. O jovem vigário Jacques Nourissat estava indignado com a enorme popularidade de Papai Noel entre as famílias e os comerciantes. E não poupava críticas ferozes ao velho de barba branca e roupa vermelha.
O vigário não estava sozinho em seus ataques. Havia meses que autoridades católicas denunciavam uma preocupante “paganização” da festa do Natal que desviava a atenção pública do sentido cristão dessa comemoração. Papai Noel, diziam, era um intruso e usurpador que se roubava a festa do verdadeiro homenageado, o menino Jesus.
O assunto virou polêmica dividindo opiniões. Cartas de leitores e artigos de jornais expunham opiniões favoráveis e contrárias à posição eclesiástica. A Igreja Protestante, com maior discrição, mas igual firmeza, apoiou a Igreja Católica.
O ponto culminante ocorreu em 24 de dezembro, durante uma manifestação no átrio da Catedral de Dijon. Um Papai Noel, com 3 metros de altura, foi julgado e acusado de herege. Censuram-no, sobretudo, por ter-se introduzido em todas as escolas públicas ocupando o lugar do presépio (que havia sido banido) e, por conseguinte, tomado o lugar do menino Jesus.
Condenado ao suplício, Papai Noel foi enforcado nas grades da catedral e queimado publicamente em seu átrio. O fogo consumiu suas barbas e ele desapareceu na fumaça. A execução espetacular foi assistida por 250 crianças, internas de orfanatos.
Ao final da execução, distribuiu-se um comunicado cujos principais termos eram:
“Não se tratou de um espetáculo, e sim de um gesto simbólico. Papai Noel foi sacrificado em holocausto. A mentira não pode despertar sentimentos religiosos em crianças e não é, de maneira nenhuma, um método educativo. (…) Para nós, cristãos, a festa de Natal deve continuar sendo a festa de aniversário do nascimento do Salvador.”
O contexto histórico
O holocausto de Dijon é melhor compreendido se contextualizado historicamente. Passaram-se apenas seis anos do final da Segunda Guerra. A reconstrução da França, assim como de outros países europeus, contou com apoio material e financeiro dos Estados Unidos, através do Plano Marshall. A partir de 1948, o país dava sinais de recuperação econômica.
Junto com os milhões de dólares para recuperar sua economia, a França foi inundada de produtos norte-americanos: roupas, música, aparelhos elétrico-eletrônicos e os ícones da cultura norte-americana – Coca-Cola e McDonald’s. Filmes produzidos em Hollywood entre 1939 e 1944 foram comercializados na Europa a preços baixíssimos trazendo consigo novas maneiras de viver, outros valores e costumes.
“Na França, os acordos Blum-Byrnes, firmados em 1946, abriram o mercado francês aos produtos norte-americanos inclusive filmes. Enquanto 38 filmes foram exibidos durante o primeiro semestre de 1946, no ano seguinte, só no primeiro semestre, o número de filmes subiu para 338.” (LUCAS, 1998, p. 110)
Nas semanas que antecediam o Natal, o comércio francês oferecia aos compradores as novidades importadas da América: papeis de presente coloridos, cartões e enfeites de Natal, brinquedos produzidos em série, enquanto personagens vestidos de Papai Noel recebiam os pedidos das crianças nas lojas de departamento. A dominação do mercado francês dava-se, assim, pela promoção e exportação de modelos culturais norte-americanos (Tolila, 2007).
Não é de se estranhar, portanto, que boa parte da sociedade francesa, se sentisse em uma nova Vichy: não mais a ocupação militar inimiga, mas a dominação do poder econômico e cultural estrangeiro. Nesta atmosfera, Papai Noel – figura transformada em garoto-propaganda da Coca-Cola, tornou-se o grande catalizador da raiva e humilhação acumuladas desde a guerra às quais se uniram as críticas do conservadorismo católico francês e o movimento anticapitalista dos sindicatos operários, sempre dispostos a desacreditar tudo que tivesse a marca by United States.
O suplício público de Papai-Noel teria sido, então, o resultado da convergência de todas essas forças em um cenário histórico de pós-guerra.
O grande paradoxo estava na acusação feita à Papai Noel de transformar o Natal em festa pagã já que esta remonta às tradições herdadas do Império Romano. No início da Idade Média, a Igreja, para arrebanhar fiéis, apropriou-se de muitas festas e rituais pagãos dando-lhes um novo sentido mais afeito aos valores e dogmas cristãos. Assim foram com as festas juninas, o Finados e o Carnaval.
Depois do holocausto do Papai Noel
A cidade continuou dividida entre os contrários e os favoráveis a Papai Noel. O jornal France Soir, junto à notícia da incineração de Papai Noel anunciava: “a ofensiva clerical não cancela a festa oficial promovida pela Câmara Municipal para as crianças e marcada para o dia 25 de dezembro, às 18 horas”.
No dia e hora marcada, centenas de crianças se aglomeraram na Praça da Libertação, em Dijon, para ver a “ressurreição” de Papai Noel, nos telhados da Prefeitura, sob holofotes e queima de fogos.
O padre Jacques Nourissat não se pronunciou sobre o assunto. Depois do suplício de Papai Noel, naquele Natal de 1951, ele passou muito anos longe da França, trabalhando no Canadá, Haiti e Tahiti. Retornou à Dijon, somente em 1998, vindo a falecer em 2014 aos 97 anos de idade.
Papai Noel continua aparecendo no telhado da Prefeitura de Dijon, desde 1951. Virou tradição e faz parte do calendário oficial da cidade. Este ano, a apresentação está marcada para o dia 24 de dezembro, às 18h30.
Interessante pensar que as crianças de hoje são, possivelmente, netos daquelas que um dia viram o bom velhinho ser acusado de herege e ser consumido pelo fogo. Para as crianças, o símbolo era (e continua sendo) mais forte do que o discurso religioso e político. Por que Papai Noel desperta tanta emoção?
Fonte
- LUCAS, Meize Regina de Lucena. Imagens do Moderno. O olhar de Jacques Tati. São Paulo: Annablume, 1998.
- TOLILA, Paul. Cultura e economia. Problemas, hipóteses, pistas. Trad. Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras / Itaú Cultural, 2007.
- LEVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. Cosac & Naify, 2008.
- Calendário de eventos de Dijon, 2015.