O Halloween é uma festa originada de duas tradições: uma pagã, de origem celta, com mais de três mil anos, e outra católica, de origem medieval. O surpreendente é constatar a preservação de costumes pagãos em uma sociedade cristã tradicional e após tantos séculos de perseguição implacável às feiticeiras realizada pela Inquisição. Para entender como essas raízes culturais se misturaram e se transformaram na festa das bruxas, será preciso separá-las e conhecer uma por vez.
CONTEÚDO
- Os celtas: os ‘pais’ pagãos do Halloween
- Samhain:a raiz do Halloween
- Celtas e romanos: uma aproximação difícil
- A perseguição da Igreja aos costumes pagãos
- O Halloween cristianizado
- O Halloween hoje
- Fonte
- Saiba mais
Os celtas: os ‘pais’ pagãos do Halloween
Os celtas foram os povoadores do continente europeu, contemporâneos dos gregos antigos, dos etruscos e dos fenícios. Entre 750 a.C. e 50 a.C., eles se espalharam pela Europa Central e Ocidental chegando até a Irlanda e Grã-Bretanha.
Chamados pelos gregos de keltoi e pelos romanos de gauleses, os celtas não fundaram cidades nem tinham unidade política, o que explica as variantes culturais desenvolvidas em cada região. A tribo ou clã estava submetido ao rei e sua elite de guerreiros, e ao druida, o sacerdote e sábio que guardava as tradições, marcava o calendário e conhecia os segredos da natureza.
Os celtas eram temidos por sua alta belicosidade e promoveram violentos ataques chegando a saquear Roma (381 a.C.) e Delfos (272 a.C), na Grécia. Resistiram, por muito tempo, ao avanço romano provocando enorme baixas entre as legiões.
Foi, também, um povo inventivo: os celtas inventaram o arado com rodas, a foice com cabo e lâmina longa e curva, a ceifadeira, a ferradura, a roda reforçada com aro de ferro, o tonel de carvalho para armazenar vinho, o sabão e até a calça comprida para os homens!
Apesar de não terem desenvolvido a escrita, os celtas deixaram uma forte herança cultural presente na música, nos contos (o mago Merlim e a espada Excalibur do rei Artur) e lendas (fadas, gnomos e duendes são figuras de origem celta), festas populares entre elas a festa junina (clique aqui) e o Halloween.
Samhain, a raiz do Halloween
Samhain é uma palavra do irlandês arcaico referente a 1º de novembro e que acabou denominando a festa dos celtas da Irlanda e da Grã-Bretanha que marcava o fim da temporada da colheita e início do inverno. A festa tradicional começava na véspera, ao pôr do sol do 31 de outubro, e terminava ao pôr do sol do dia 1º de novembro, momento que assinala o ponto médio entre o equinócio de outono e o solstício de inverno (ou a Lua cheia mais próxima desse ponto).
O gado era recolhido e passaria todo inverno confinado em abrigos para ser solto seis meses depois em 1º de Maio quando ocorria, então, a festa de Beltane em comemoração ao sol, à floração dos campos e das pastagens. O Samhain era, portanto, o tempo para fazer um balanço dos rebanhos e do suprimento de comida, forragem e madeira necessária para a sobrevivência humana e animal durante os meses do inverno rigoroso.
O Samhain era uma festa importante e mencionada em várias passagens da mitologia irlandesa. Considerava-se que nesse dia desaparecia a fronteira entre o mundo visível dos homens e o mundo invisível dos espíritos. As almas dos mortos, as fadas e as forças da natureza penetravam no mundo terreno e, para que sua presença não fosse nefasta, era preciso ofertar-lhes comida e bebida deixadas fora de casa. Isso garantia que as pessoas e os animais sobrevivessem ao inverno.
Aquele que precisasse sair nesta noite, tinha que se proteger dos fantasmas. Para isso, vestia a roupa do lado do avesso e levava consigo um punhado de sal ou um dente de alho. Na Irlanda atual, ainda se respeitam os “portais do Além”, locais como grutas e árvores ocas de onde se acredita saírem os espíritos na noite do Samhain.
Na Idade Média, o Samhain assinalava o fim da temporada de comércio e das guerras. Era o momento mais propício para as práticas de adivinhação pois contava com a ajuda dos seres do Além que previam casamentos, nascimentos e mortes. Era, também, a data ideal para o encontro dos clãs – momento em que os bardos, ao calor e brilho das fogueiras, narravam histórias que se imortalizaram misturando lendas e fatos reais, personagens míticos e históricos, como os contos do rei Artur, do mago Merlim, da fada Morgana, de Tristão e Isolda.
Segundo os especialistas em cultura celta, o Samahin marcava, também, o Ano Novo celta. O calendário da Liga Céltica, uma organização fundada em 1961 que promove a autodeterminação das nações celtas (Irlanda, Escócia, País de Gales, Bretanha e Cornualha e ilha de Man) começa e termina no Samhain.
Celtas e romanos: uma aproximação difícil
As tradições celtas das atuais Irlanda e Grã-Bretanha chegaram praticamente intactas até o início da Era Cristã quando o Império Romano estendia-se do Oriente à Península Ibérica. Levou tempo para os romanos fincarem os pés na Britânia (que corresponde, hoje, à Inglaterra) e a incorporarem aos seus domínios.
Os bretões (celtas da Britânia) resistiram às investidas das legiões de Júlio César (55-54 a.C.), de Augusto (34, 27 e 25 a.C.) e de Calígula (40 d.C.). Tiveram sua primeira derrota séria em 43 d.C. quando foram atacados pelos 40 mil legionários enviados pelo imperador Cláudio.
Os romanos conseguiram estabelecer uma guarnição no sul da ilha, mas todo o resto continuava sendo bretão. Em 60 d.C., Nero ordenou o ataque ao território de Gales e mas seu exército foi detido pelos guerreiros icenos liderados pela rainha Boudica (ou Boadiceia) que obrigou os romanos a retroceder para sudeste.
O historiador Dião Cássio, fez a seguinte descrição de Boudica:
“Era alta, terrível de olhar e abençoada com uma voz poderosa. Uma cascata de cabelos vermelhos alcançava seus joelhos; usava um colar dourado composto de ornamentos, uma veste multicolorida e sobre esta um casaco grosso preso por um broche. Carregava uma lança comprida para assustar todos os que lhe deitassem os olhos.” (Dião Cássio, História de Roma. Fonte: Wikipedia).
Os romanos levariam ainda meio século para conquistar, com muito esforço, o território de Gales e Inglaterra. Em 122 d.C., o Imperador Adriano, diante dos altos custos de uma guerra sem fim, decidiu interromper a conquista da ilha. Mandou erguer uma muralha separando o território sob domínio romano das terras dos pictos e escotos (atual Escócia).
O imperador Antonino Pio, contudo, retomou os combates, decidido a conquistar a Escócia. Após uma vitória incerta, mandou construir outra muralha, mais ao norte, a Muralha de Antonino (142 d.C.). Após duas décadas de repetidas derrotas, as legiões abandonaram sua ofensiva e recuaram quilômetros ao sul para atrás da Muralha de Adriano que ficou sendo a fronteira ocidental do Império Romano. Os belicosos celtas da Escócia e da Irlanda nunca foram submetidos ao poder de Roma.
Os romanos tentaram outras investidas, sem sucesso. A cada derrota, reforçava entre os romanos os estereótipos negativos sobre os celtas e seus costumes, como a liberdade sexual de suas mulheres. Dião Cássio registrou a resposta da esposa de um líder bretão à Júlia Domna, esposa do imperador Septímio Severo:
“Nós sabemos escolher os melhores homens enquanto vós tendes de vos conformar com o que lhe dão.” (Dião Cássio, História de Roma. Fonte: Wikipedia).
A perseguição da Igreja aos costumes pagãos
Quando o cristianismo, no século IV, tornou-se religião oficial e depois única do Império Romano, a Igreja passou a reprimir com força crescente tudo aquilo que dizia respeito às crenças e costumes pagãos: adivinhação, idolatria, encantamentos, filtros (poções mágicas), crença em fantasmas e seres sobrenaturais, festivais entre eles Beltane e o Samahin. Para a Igreja medieval, eram manifestações do Diabo que agia por meio de cúmplices – os feiticeiros e feiticeiras. Os druidas, que já haviam sofrido feroz perseguição dos romanos, acusados de poder sobrenatural capaz de atingir o imperador, tornaram-se, então, alvo da perseguição da Igreja.
Todo infortúnio – tempestade violenta, seca prolongada, doença, impotência sexual, morte do gado etc. – passou a ser considerado obra de feiticeiros e, especialmente, de feiticeiras. A mulher vista pelos romanos como “naturalmente inferior” foi ainda mais visada pela Igreja medieval, acusada das práticas intoleráveis do paganismo e aproximação com os seres do Além, e, por conseguinte, do Diabo. Foi-se consolidando o estereótipo da feiticeira ou bruxa: o voo noturno montada em bastão (a vassoura é posterior), as poções malignas, os bichos “azarentos” (gato preto e corvo) e os de hábitos noturnos (coruja e morcego).
Feiticeira era a mulher capaz de enfeitiçar, isto é, seduzir o que faz alusão ao seu perigoso poder de “virar a cabeça” das pessoas. Era aquela capaz de lançar um feitiço para mudar o destino de alguém ou mesmo mudar sua forma, como se acreditava, então. O termo francês sorcière, “feiticeira”, surgido por volta de 1160, deriva do latim sorcerius,“aquele que diz a sorte”, uma prática diabólica segundo a Igreja. Contos e lendas medievais populares estão povoados de pessoas encantadas por obra de feiticeiras.
O Halloween cristianizado
Se, por um lado, a Igreja condenava o paganismo e perseguia feiticeiras, por outro ela tratou de cristianizar costumes pagãos ainda muito fortes especialmente nas áreas rurais mais remotas. Foi assim com a instituição do Dia de São João e com o Samhain.
As igrejas britânicas e alemães, influenciadas pelas tradições celtas locais, festejavam o Dia de Todos os Santos em 1º de novembro, em desobediência ao calendário religioso oficial que estabelecia, desde o século VII, o dia 13 de maio para essa comemoração. Mas a data oficial parece não ter tido muita popularidade. No século IX, o papa Gregório IV ordenou que Todos os Santos fosse celebrado universalmente no 1º de novembro. Camponeses das atuais Irlanda, Escócia e Inglaterra – locais de forte herança celta – adaptaram a data cristã à tradição pagã festejando também a véspera, o dia 31 de outubro, como noite de vigília. Nascia o All Hallow’s Eve (Vigília de Todos os Santos), nome que deu origem a Halloween.
Já o Finados, o Dia dos Mortos, celebrado em 02 de novembro veio mais tarde. A comemoração começou entre os monges de Cluny, em torno de 1030. Como afirma Michel Lauwers:
“A instauração na Igreja de uma festa de todos os finados, anual, marca a vontade de uniformizar o calendário e a liturgia. Graças à nova festa, nenhum defunto escaparia, pelo menos na teoria, do controle da Igreja. A data da celebração, o dia seguinte à festa de Todos os Santos, 1º de novembro, simboliza a distinção realizada pela Igreja entre os santos e os defuntos comuns, ao mesmo tempo que a “comunhão” entre eles. (Lauwers, 2002, p.252).
O Halloween hoje
Muitos dos costumes celtas sobreviveram e foram misturados ao cristianismo que, por sua vez, também incorporou costumes pagãos. Assim, por exemplo, a oferta de esmolas e o bolo das almas, tradicionais nesses dias, são a versão cristã das oferendas aos mortos. Visitar os cemitérios para rezar e colocar flores e velas nos túmulos de seus entes queridos também tem sua origem no culto aos mortos celebrado pelo Samhain.
Já a comemoração do Dia das Bruxas com seus objetos estereotipados e macabros- vassoura, corvo, teia de aranha, esqueletos, lápides etc – só surgiu “às claras” mais recentemente. Seria impensável uma festa dessas em tempos de caça às bruxas, de Inquisição (criada no século XIII) e de circulação do Malleus maleficarum (“O martelo das feiticeiras”), publicado por dois dominicanos em 1486 e considerado por Jules Michelet, o ” livro de bolso” dos inquisidores.
O costume de se fantasiar no Halloween surgiu ainda na Idade Média. As pessoas, com medo dos fantasmas, cobriam-se com panos e sujavam o rosto de fuligem para não serem reconhecidas e passarem despercebidas entre os espíritos ruins.
Registros do século XVI falam do costume, na Irlanda, Escócia e País de Gales, de pessoas saírem, na noite do Samhain, com máscaras e cobertas com panos, e de perambularem de casa em casa recitando versos em troca de comida. Na Irlanda, um homem coberto por um lençol branco e carregando um crânio de cavalo decorado com fitas percorria de fazenda em fazenda pedindo alimento. Esses costumes deram a origem à popular brincadeira trick-or-treat (“doces ou travessuras”).
As lanternas de abóbora têm origem irlandesa: dizia-se que as bruxas usavam crânios com uma vela dentro para iluminar o caminho para suas reuniões. Os crânios foram substituídos por nabos ou beterrabas esculpidas com rostos grotescos para afastar os maus espíritos. Há ainda a popular lenda irlandesa do bêbado, chamado Jack, que enganou o diabo e ao morrer teve sua entrada negada no céu e no inferno; passou, então, a vagar pelo mundo como alma penada, iluminando o caminho com uma lanterna feita de nabo escavado, a Jack o’lantern. Quando os irlandeses imigraram para os Estados Unidos, no século XIX, substituíram o nabo por abóboras, espécie nativa da América e, portanto, muito mais fácil de ser encontrada.
E o Brasil, o que tem a ver com o Halloween? Nada. Essa festa não existe na tradição cristã ibérica. Aqui o costume chegou há poucos anos, importado dos Estados Unidos e popularizado pelas comunidades inglesas e irlandesas.
Fonte
- LAUWERS, Michel. Morte e mortos. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC / Imprensa Oficial, 2002, v.2, p. 243-259.
- SCHIMITT, Jean-Claude. Feitiçaria. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. op. cit., v.1, p. 423-435.
- GIORDANO, Oronzo. Religiosidad popular en la Alta Edad Media. Madri: Gredos, 1983.
adorei o texto!
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