Em 3 de dezembro de 1872, George Smith, um inglês de 32 anos de idade, fez uma leitura surpreendente diante dos especialistas da Sociedade de Arqueologia Bíblica de Londres: leu um poema que descrevia um dilúvio muito mais antigo do que o relatado na Bíblia. Descrevia como os deuses enviaram uma inundação para destruir o mundo e que somente um homem, chamado Utnapishtim, foi avisado para construir um navio gigante e nele abrigar sua família e todos os seres vivos. Utnapishtim, o herói imortal do dilúvio, era o equivalente mesopotâmico do Noé bíblico.
A descoberta de Smith causou sensação, não apenas para os acadêmicos, mas também para o público em geral. O texto gravado em uma placa de argila quebrada e escrito em cuneiforme, a antiga escrita da Mesopotâmia, era mil anos anterior aos primeiros livros da Bíblia e muitos séculos antes de Homero. Pode-se avaliar a surpresa dessa revelação se lembrarmos que, até meados do século XIX, a Bíblia era o mais antigo texto conhecido e a própria criação do mundo, segundo se calculava no século XVIII, remontaria a não mais de 4.000 anos. O impacto da descoberta de Smith desafiou a erudição literária e bíblica e ajudou a redefinir crenças sobre a idade da Terra.
O trabalho de Smith foi realizado no que hoje é chamado Tablet Flood, aquele que narrava a inundação, um dos episódios da “Epopeia de Gilgamesh”, antigo poema épico da Mesopotâmia e uma das primeiras obras conhecidas da literatura mundial. A epopeia conta os feitos de Gilgamesh, um personagem envolto em lendas.
Gilgamesh foi o poderoso rei de Uruk, cidade sumeriana na Mesopotâmia e uma das primeiras cidades do mundo, surgida em 3.500 a.C. Foi o quinto rei da primeira dinastia de Uruk e teria reinado por volta de 2.650 a.C. Considerado o mais ilustre antecessor dos reis sumérios, Gilgamesh tornou-se objeto de lendas e poemas passando a ser venerado como um herói semi-divino.
As mais antigas narrativas de seus feitos datam do século XXII a.C. e estão espalhadas em fragmentos com numerosas versões em sumério e acadiano. A versão mais completa e clássica do poema Epopeia de Gilgamesh data do século XII a.C. e provém da grande biblioteca de Assurbanipal, o último grande rei da Assíria. Todas as versões foram escritas em tabuinhas de argila, o que permitiu chegar aos nossos dias dada resistência e durabilidade desse material, muito maior do que os papiros e pergaminhos egípcios, gregos e romanos.
As tabuinhas decifradas por Smith haviam sido recuperadas em 1849, durante as escavações realizadas pelo arqueólogo inglês Austen Henry Layard, em Nínive, no atual Iraque. No local, Layard descobriu 25.000 tabuinhas de argila com gravações em cuneiforme que compunham a biblioteca de Assurbanipal, construída no século VII a.C. A maioria das tabuinhas tratava de questões comerciais variadas.
O trabalho de George Smith
As tabuinhas da biblioteca de Assurbanipal foram levadas para o Museu Britânico, em Londres e ficaram sob a responsabilidade de Henry Rawlinson, um dos pioneiros na decifração dos caracteres cuneiforme. Entre 1835 e 1843, ele decifrou a inscrição de Behistun, localizada no Irã que trazia uma declaração de Dario I, rei da Pérsia.
George Smith era, então, um pesquisador autodidata dos estudos da Mesopotâmia que passava horas no Museu Britânico estudando as tabuinhas em cuneiforme. Foi apresentado a Rawlinson que ficou impressionado com as habilidades de Smith em detectar que fragmento encaixava-se em outro, dando sequência ao registro escrito, diante de uma mesa cheia de tabuinhas de argila quebradas.
Em 1861, Smith foi contratado pelo Museu Britânico para organizar o grande número de tabuinhas em sua coleção. Levariam dez anos para ele chegar ao relato do dilúvio, o que aconteceu em novembro de 1872. Era, contudo, um fragmento e Smith queria reunir toda história. Em troca de exclusividade, o jornal London Daily Telegraph ofereceu-se para financiar uma escavação liderada por George Smith em Nínive. Ele procuraria as peças que faltavam para completar a história iniciada por suas traduções iniciais. A jornada resultou na descoberta de algumas tábuas perdidas, e também de fragmentos que registraram a sucessão e a duração das dinastias babilônicas.
Em novembro de 1873, Smith realizou uma segunda expedição a Nínive, desta vez patrocinado pelo Museu Britânico. Novas descobertas foram feitas. Em março de 1876, os curadores do Museu enviaram-no mais uma vez para escavar o restante da Biblioteca de Assurbaanipal.
Em agosto daquele ano, quando estava em Ikisji, uma pequena aldeia síria, a 100 km de Aleppo, Smith adoeceu com aguda disenteria. Ele morreu em Aleppo em 19 de agosto de 1876. Deixou oito obras importantes, incluindo estudos linguísticos, obras históricas e traduções de textos literários importantes da Mesopotâmia.
Fonte
- CERAM, C. W. Deuses, túmulos e sábios. São Paulo: Melhoramentos, 1982.
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