A Eneida, escrita por Virgílio no século I a.C., é um poema épico que conta a saga de Eneias, um troiano filho da deusa Vênus, que fugiu de Troia em chamas e viajou errante pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica. Ali seus descendentes fundaram Roma. Eneias é, portanto, o ancestral heroico e semidivino do povo romano.
Além de uma fonte da história da civilização romana, a Eneida é uma das mais belas composições da literatura latina antiga. É, acima de tudo, uma obra de propaganda que glorifica os heróis romanos, suas conquistas e, sobretudo, o imperador Augusto (27 a.C. -14 d.C.). O poema exalta o destino traçado pelos deuses ao povo romano e a construção de um poderoso império muito antes da própria fundação de Roma.
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Augusto encomendou a Virgílio uma obra monumental que explicasse a conquista de um império tão extenso graças à proteção dos deuses e ao respeito às virtudes romanas entre as quais gravitas (responsabilidade e determinação), pietas (devoção e respeito à ordem social, política, religiosa e à pátria), virtus (coragem, especialmente dos líderes sociais e políticos) e fides (fidelidade, lealdade à palavra dada).
Públio Virgílio Maro (70-19 a.C.) era um velho amigo de Augusto. Para ele compôs a Eneida, um épico de dez mil versos que refaz a jornada de Eneias desde a queda de Tróia até sua chegada e instalação na Itália. O poema fornece a legitimação da origem semidivina dos romanos e faz de Augusto o descendente direto dos heróis fundadores. A Eneida é, portanto, um mito fundador por excelência.
Vamos analisar brevemente os seguintes elementos importantes do poema:
- O mito fundador e a origem grega
- A figura do pai (pater familias)
- O desaparecimento de Creusa
- Eneias errante
- A descida aos infernos
- O nascimento de gêmeos
- O abandono (exposição) das crianças
- O assassinato de Remo
- O povoamento de Roma
O mito fundador e a origem grega
O tema da Eneida é a celebração das grandezas de Roma e glorificação do imperador Augusto enaltecendo sua ascendência: ele é herdeiro de Júlio César que, por sua vez orgulhava-se de descender de Iulo (Ascânio), filho de Eneias, que era filho de Vênus, a deusa do amor. Têm-se aí, portanto, a genealogia heroica e divina de Augusto.
O poema legitima também as grandes famílias romanas, buscando entre os companheiros de Eneias, troianos ilustres, a origem das famílias patrícias. Os líderes (patres, daí o termo patrício) dessas famílias reúnem-se em assembleia – o Senado, originalmente o órgão consultivo do rei.
O mito fundador instrumentaliza o passado e o papel da história na construção de identidades individuais como coletivas. Dá à comunidade consciência da grandeza de suas origens e, no caso de Roma, interessava aos imperadores manter o povo orgulhoso de sua ascendência heroica e divina.
A lenda de Eneias era popular em Roma e já tinha inspirado poetas a cantarem sua saga e relacionarem a fundação da cidade de Roma à chegada de Eneias à Itália. O cronista grego Hellanicos de Mitilene, do século V a.C. em sua obra Deucalionea, foi o primeiro a mencionar o mito da fundação de Roma pelo troiano Eneias.
O mito ganhou maior força no século III a.C., época das guerras púnicas e dos primórdios do expansionismo romano fora da Itália. Os romanos parecem então buscar uma origem “fabulosa” para justificar suas conquistas. A origem troiana de Roma que, até então, era apenas uma crença esparsa, começou a ganhar consistência e parece que foram os magistrados romanos que lhe deram uma consagração oficial. As famílias patrícias passaram a criar genealogias que as ligavam a Eneias ou a seus companheiros troianos.
É interessante e importante notar que todas as versões da fundação de Roma (conhece-se 25) remetem aos gregos. Afinal a pólis era o modelo universal para pensar a vida das pessoas “civilizadas”, em oposição aos “bárbaros. Daí os romanos buscarem uma origem grega, caso contrário seriam “bárbaros”.
Os troianos são gregos, a Ilíada não os diferencia de seus inimigos: ambos têm a mesma cultura, mesma língua, mesma religião. ”O problema principal da civilização romana é que de suas profundas relações com o helenismo”, escreveu Pierre Grimal (1984). A Grécia foi, desde os primórdios da história romana, a referência para todo o material intelectual, cultural e artístico que assegurava o refinamento da vida urbana romana.
A figura do pai (pater familias)
A sociedade romana era uma sociedade patriarcal por excelência. A figura do pater familias estava acima de tudo. Mesmo os filii homens adultos permaneciam debaixo da autoridade do pater enquanto este vivesse, e não podiam adquirir os direitos de pater familias até à sua morte.
O pater tinha o papel de transmitir os valores ao filho e de assegurar sua integração na comunidade. O aprendizado para a sociabilidade do jovem romano não pode ser confiado a um homem estrangeiro. Roma é essencialmente a “cidade dos pater familias“, enquanto a cidade grega é vista como a “cidade dos irmãos”. O imperador, como cabeça da sociedade e da política, era o Pater Patriae (Pai da Pátria), título usado por quase todos os imperadores romanos desde Augusto.
Eneias é o modelo de amor e respeito filial como demonstra sua escolha em levar o pai ancião na fuga de Troia. Enquanto outros fogem carregando ouro e riquezas, o príncipe troiano decide levar seu velho pai Anquises às costas, bem como seus penates (deuses do lar). O gesto tem também a função educativa de transmitir ao filho Iulo (Ascânio), que ele segura em sua mão, as virtudes romanas.
O desaparecimento de Creusa
Eneias era casado com Creusa, filha dos reis de Troia, Príamo e Hécuba. Quando saíram da cidade em chamas, Creusa caminhou atrás do grupo. A um certo ponto, Eneias percebeu que ela havia desaparecido. Apesar dos riscos, partiu em busca da mulher. Creusa lhe apareceu então como uma sombra, exortando-o a prosseguir na fuga e chegar à Itália onde estariam reservados para ele a prosperidade, um reino e uma esposa real.
Como viúvo, Eneias começa sua jornada. Isso lhe deixa livre para encontrar uma mulher nobre e poderosa que lhe daria a oportunidade de reinar em uma nova pátria. Poderia ter sido Dido, rainha de Cartago, mas será Lavínia, a filha do rei dos latinos.
O pequeno grupo de troianos que chegará ao Lácio terá a necessidade de se unir às mulheres latinas. O povo romano será o fruto dessa miscigenação. E Creusa seria a vítima sacrificial para a necessária fusão dos troianos com o povo do Lácio.
Eneias errante
A jornada épica de Eneias tem por modelo, obviamente a Ilíada e a Odisseia, de Homero. A longa e perigosa viagem leva o herói à Trácia, Delos, Creta, Sicília e, tal como Ulisses, enfrenta perigos e monstros: as terríveis Harpias, a perigosa Caríbdis, os cruéis cíclopes.
Esta peregrinação se deve muito à intervenção vingativa de Juno (Hera), esposa de Júpiter (Zeus), que odeia os troianos desde que Paris recusou lhe dar a maçã de ouro, recompensando a mais bela das deusas. A proteção de Vênus (Afrodite), porém, livra o herói das armadilhas de Juno.
As aventuras de Eneias, sua estada em Cartago, seu casamento com Lavínia, toda essa história guerreira e romântica, embora legendária e fantástica, fazia parte da tradição romana da época de Virgílio e tinha uma função político-social. O poeta transportou esse conjunto de lendas e mitos para o seu poema, deu-lhe uma sequência narrativa e lhe conferiu um significado mais elevado.
Roma estava predestinada pelos deuses a ser grande, desde as ruínas fumegantes de Troia de onde Eneias fugiu. Ele não verá Roma que só surgirá seiscentos ou quinhentos anos mais tarde, mas a cidade já existe no destino traçado pelos deuses. Roma existe desde a eternidade, a cidade eterna.
A descida aos Infernos
A descida aos Infernos narrada no Canto VI exprime a crença de Virgílio na metempsicose encontrada em Pitágoras e Platão. A metempsicose ou transmigração das almas é a crença de que a alma humana, depois da separação do corpo, pode animar outros corpos, de homens, de animais ou até de vegetais. A explicação é dada por Anquises que diz ao filho sobre a origem e o destino da alma. As almas dos homens são uma emanação do sopro divino, uma parcela da alma universal que vivifica o universo inteiro. Mas, desde que esse sopro se une ao corpo, ele perde nesse contato uma parte de sua pureza: fechada nas trevas dessa prisão, a alma não vê mais o céu, e mesmo quando ela é libertada, conserva manchas que devem ser lavadas. A alma passa por purificações que duram mil anos para lhe devolver a pureza original. Passado esse tempo, a alma bebe as águas do rio Letes, para que, esquecida do passado, ela deseje rever a terra e entrar num corpo novo.
A tradição literária e religiosa conhece outros episódios de descida aos Infernos: Homero, na Odisseia (canto X), Platão, na República (Livro X), no mito de Teseu, no mito de Orfeu e Eurídice.
O mundo subterrâneo, com todo o misterioso desconhecido que encerra, apresentava-se aos antigos como um reino onde a verdade podia ser encontrada, porque as almas dos mortos estavam livres para contar sobre o que viveram e fizeram no mundo dos vivos.
O tema inspirou Dante Alighieri para sua Divina Comédia (1304-1321) onde o poeta é acompanhado pelo próprio Virgílio na viagem pelos círculos do Inferno.
Na Eneida, a descida aos Infernos não é para revelar o que aconteceu mas para que Eneias vislumbre o futuro glorioso de seus descendentes: a fundação de Roma e a construção de um império. Todos os grandes nomes da história romana lhe são revelados: os reis, Catão, os Gracos, Júlio César, Pompeu culminando com Augusto.
O nascimento de gêmeos
O nascimento de gêmeos é um fenômeno que, para os antigos, causava um certo temor. Era entendido como um prodígio, um sinal divino. Como interpretar a existência de dois irmãos fundadores? Alguns historiadores consideram que natureza gemelar de Rômulo e Remo refletiria as várias dualidades existentes na história de Roma:
- Dualidade social: os patrícios e plebeus. Os montes onde cada irmão viu os prodígios, referenciam a dualidade social. O monte Palatino, onde ficou Rômulo, era a sede do poder e das residências dos patrícios; o monte Aventino, do infeliz Remo, era onde estava o bairro dos plebeus.
- Dualidade étnica: presente na formação da sociedade romana inicialmente composta por troianos e latinos, e depois por romanos e sabinos. Dualidade que aponta para a tendência à miscigenação da civilização romana.
- Dualidade do consulado republicano: há dois irmãos fundadores, e isso se reproduz sob a República quando havia dois cônsules.
Plausíveis ou não, todas essas hipóteses levam à mesma conclusão: o motivo dos gêmeos é de data recente na elaboração do mito na forma como o conhecemos, quando os romanos começam a refletir sobre suas origens e suas instituições. Seja como for, a presença de um gêmeo é um problema de compartilhamento de poder. Um dos dois irmãos terá que desaparecer.
O abandono (exposição) das crianças
Rômulo e Remo são concebidos fora das regras do casamento legítimo e são condenados à morte por exposição, isto é, abandonados em um cesto lançado ao rio.
Esta cena aparece em muitas narrativas míticas e históricas: Krishna (Índia), Sargão de Acade (Mesopotâmia), Ciro (Pérsia), mito de Perseu, Páris (Troia), Moisés (na Bíblia), rei Arthur (lenda céltica). Em todos eles, há características comuns na construção do herói típico:
- concepção ou nascimento incomum, com intervenção divina;
- família real (pai ou mãe é nobre ou divino);
- seu nascimento ameaça o soberano do lugar, sempre um déspota ou um usurpador que deve ser derrubado para se restaurar a ordem natural legítima;
- abandono nas águas seguido de salvação por um animal selvagem ou por um homem de condições modestas;
- proteção sobrenatural e um destino extraordinário: governar um povo, conquistar um império, fundar uma cidade;
- infância isolada, incógnita e à margem das demais pessoas, quase sempre em um bosque distante;
- reconhecimento da verdadeira identidade e acesso ao status do qual foi roubado;
- morte fora do comum ou desaparecimento inexplicável.
O assassinato de Remo
Como Rômulo, escolhido por Júpiter, carrega a mancha do assassinato de seu irmão? Como interpretar esse fratricídio no ato fundador de Roma?
Para alguns, Rômulo não é culpado, ele apenas protegia a cidade que os deuses lhe davam a missão de fundar. Os escritores romanos usam o termo ludibrium (zombaria) para descrever o ato de Remo. Ludibrium se opõe à virtude capital dos romanos, a gravidade. O ato de Remo é um sacrilégio.
Há, portanto, uma “moralidade” no assassinato: Remo se comporta como um inimigo do povo romano e Rômulo reage como um defensor da cidade. O dever cívico prevalece sobre os laços de sangue. A fundação de Roma no sangue de um irmão mostra o caráter implacável da cidade que não temerá nem poupará nada nem ninguém.
Mas há também uma interpretação histórica para o fratricídio: a agitação política dos últimos séculos da República, a rivalidade sangrenta entre diferentes facções, levou alguns autores antigos (Cícero, Horário e Ovídio) a considerarem o fratricídio como uma maldição sobre a cidade de Roma.
O povoamento de Roma
O povoamento se deu inicialmente com gente de todo lugar, uma gente desqualificada que buscava refazer a sua vida na nova cidade que os recebia. O mito assinala um aspecto fundamental da civilização romana: a grande capacidade de assimilar estrangeiros, inclusive escravos libertos. Diferentemente da Grécia, em Roma um escravo libertado pelo seu senhor, se era cidadão, automaticamente se tornava cidadão romano.
O episódio do povoamento pode refletir, também, uma vontade das grandes famílias patrícias de se destacarem da plebe. Sendo eles os descendentes dos companheiros de Eneias, são, naturalmente, os que detêm a autoridade sobre a cidade, restando aos demais – gente desqualificada recusada em outras cidades mas recebida em Roma – o papel de servir aos patrícios como clientes.
Finalmente, o rapto das sabinas reforçava o caráter miscigenador da sociedade romana. Este evento concentra em Rômulo três funções importantes do herói fundador: soberania, força bélica e fertilidade.
Fonte
- GRANDAZZI, Alexandre. As origens de Roma. São Paulo: Unesp, 2010
- BEARD, Mary. SPQR, uma história da Roma Antiga. São Paulo: Critica Planeta, 2017.
- DUPONT, Florence. Rome, la ville sans origine. Paris, Gallimard, 2011.
- GILBERT, John. Mitos e Lendas da Roma Antiga. São Paulo: EDUSP, 1978. [160 p.]
- GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 2018.
- GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
- GRIMAL, Pierre. El Helenismo y el auge de Roma. Siglo Veitiuno, 1984.
- LÍVIO, Tito. História de Roma. (trad. Mônica Costa Vitorino). Belo Horizonte: Crisálida, 2008.
- LÍVIO, Tito. História de Roma. (trad. Paulo Matos Peixoto). São Paulo: Paumape, 1990.
- VIRGÍLIO. Eneida. (trad. Carlos Alberto Nunes). Edição bilíngue. São Paulo: Editora 34, 2016.
- VIRGÍLIO. Eneida. (trad. Manuel Odorico Mendes). Campinas: Unicamp, 2008.
- VIRGÍLIO. Eneida. (trad. Tassilo Orpheu Spalding). São Paulo: Cultrix, 2003.