A Mesopotâmia, a célebre “terra entre rios” (nome dado à região supostamente por Alexandre, o Grande), não foi um todo único, mas um conjunto de civilizações diversas que ocuparam territórios para além das planícies dos rios Tigre e Eufrates. Ali se desenvolveram os sumérios, acadianos, babilônios, elamitas, hurritas (Reino de Mitani), assírios etc. cujos vestígios podem ser encontrados hoje no Iraque, Irã, Síria, Turquia e até mesmo em Chipre.
Em comum, essas civilizações tinham a escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios por volta de 3400 a.C., e que os povos seguintes continuaram utilizando por mais de três milênios. A tabuinha em cuneiforme mais recente que se conhece é datada de 75 a.C. É esse “mundo cuneiforme” que pode revelar a história das mulheres na Mesopotâmia em sua diversidade cultural.
As fontes, contudo, são muito desiguais, documentam aspectos muito diferentes e fragmentados, oferecendo uma história descontínua do mundo das mulheres na Mesopotâmia. Segundo os especialistas, ainda existem cerca de 1 milhão de tabuinhas para estudar e não se sabe se elas podem responder todas as perguntas. Todos concordam, porém, que uma característica fundamental das sociedades mesopotâmicas era o patriarcado. Mas este teve nuances bem diferentes entre os sumérios e os povos posteriores.
- BNCC: 6° ano – Habilidade: EF06HI19
CONTEÚDO
- As poderosas deusas sumerianas
- Mulheres na sociedade sumeriana
- Ku-Baba: a rainha-deusa
- Puabi: a rica senhora de Ur
- Enheduana: poeta e filósofa suméria
- Sob domínio de Marduk: o patriarcalismo babilônico e assírio
- Sammuramat ou Semíramis? (séc. IX a.C.)
- Zakutu / Naqia (séc. VII a.C.)
- Fonte
As poderosas deusas sumerianas
Entre os sumérios, a mulher tinha um papel relevante, a começar pela literatura e pela mitologia. No épico de Gilgamesh, três mulheres são personagens-chave da história:
- Ninsuna, deusa de Uruk e a mãe do herói, que interpreta os sonhos do rei e prevê o futuro;
- Shamhat, a prostituta sagrada que leva Enkidu à civilização;
- Siduri, a deusa sábia que oferece cerveja a Gilgamesh e tenta dissuadi-lo em sua busca à imortalidade, aconselhando-o a aproveitar os prazeres simples da vida.
No panteão sumério, que serviu de base para civilizações posteriores, as deusas têm papéis de primeira ordem. A criação da humanidade é devida a uma divindade feminina: Ninhursag, a deusa mãe da Suméria, conhecida por muitos nomes (Nintur, Ninmah, Aruru, etc.). No mito sumeriano de Atrahasis, sobre a criação e o dilúvio universal, Nintur criou a humanidade misturando argila com o sangue de um deus morto. Em um conto sumério, Ninmah compete com Enki, deus da água primordial, criando várias criaturas a partir do barro, resultando finalmente na criação dos seres humanos. Em Gilgamesh, o povo clama para Aruru criar Enkidu, a criatura selvagem que se contrapõe ao rei. Em alguns hinos, Ninhursag é identificada como “verdadeira e grande senhora dos céus”, aquela que amamentou os reis da Suméria.
Se a criação e a vida eram associadas à uma deusa, também a cura e as práticas médicas estavam sob a proteção de uma deusa – Bau, para os sumérios, ou Gula, para os babilônicos. Até mesmo a morte era regida pela temível Ereshkigal, a “Senhora da Grande Terra”, a deusa do submundo.
A sumeriana Inanna, mais tarde adorada como Isthar pelos acadianos, babilônicos e assírios, era associada ao amor, beleza, sexo, guerra, justiça e poder político. Foi a divindade que mais se manteve na milenar história da Mesopotâmia. Ela influenciou a deusa fenícia Astoreth ou Astarte que, mais tarde, influenciou o desenvolvimento da deusa grega Afrodite. Seu culto continuou a florescer, declinando gradualmente entre os séculos I e VI d.C., com o advento e a consolidação do cristianismo, embora tenha sobrevivido até o século XVIII em partes isoladas no norte da Mesopotâmia.
A escrita e os registros comerciais e contábeis estavam sob a proteção da deusa suméria Nidaba ou Nisaba. Inicialmente uma divindade associada aos grãos, seus atributos se estenderam também para a astrologia e o aprendizado. Venerada nas escolas de escribas, que costumavam finalizar a composição com uma oração a Nisaba; em muitos tabletes, existe uma linha final no texto em honra à deusa.
“Senhora colorida como as estrelas do céu, segurando uma tábua de lápis-lazuli! Bela mulher, escriba chefe de An, detentora de registros de Enlil, a sábia dos deuses!” (Hino a Nisaba)
Mulheres da sociedade sumeriana
Os registros do 3º milênio indicam a presença feminina em vários setores da vida. As mulheres aparecem nas listas de distribuição de rações do palácio de Mari. Essas listas fornecem um inventário das profissões femininas nos serviços reais: cantoras, harpistas, dançarinas, camareiras, cozinheiras, escribas, encarregadas do preparo de mingau de cereais e da cerveja etc.
As mulheres sumérias se envolviam no mesmo tipo de atividade econômica dos homens, mas em menor escala. Alguns registros detalham o gerenciamento de palácios e grandes propriedades feitos por rainhas e mulheres da elite, e onde trabalhavam principalmente mulheres. Suas produções estava concentradas na agricultura e na tecelagem da lã.
As oficinas de tecelagem assumiram uma escala considerável durante a 3ª Dinastia de Ur (c.2100-1900 a.C.) quando chegou a reunir mais de 15 mil tecelãs. O pagamento – rações de cevada – variava conforme a qualificação da artesã.
Os arquivos de Garsana, que consistem em quase 1600 registros datados de um período de oito anos entre 2031 e 2012 a.C., registram muitas das funções diárias de uma propriedade rural sumeriana: construção e manutenção de edifícios que incluem uma cervejaria, oficina de tecelagem, fábrica de farinha, oficinas de couro e cozinha, além de contratação de trabalhadores, comércio com as cidades vizinhas etc.
Os arquivos de Garsana fornecem muitos novos detalhes sobre o papel das mulheres como supervisoras e trabalhadoras. Tarefas que se pensaria a priori como masculinas eram realizadas pelas mulheres como, por exemplo, a construção e o transporte de tijolos. Os arquivos informam também que, após a morte do proprietário, sua esposa, a princesa Simat-Istaran assumiu o controle da propriedade.
As esposas reais também tinham responsabilidades diplomáticas e políticas, mas não estavam envolvidas em questões legais nem militares que eram funções do marido, o rei.
Ku-Baba: a rainha-deusa
Conhece-se uma rainha que teria governado por direito próprio: Ku-Baba, soberana da cidade acadiana de Kish, por volta de 2500-2330 a.C. É a única rainha citada na lista de reis sumérios. Os especialistas, contudo, divergem a respeito de sua existência considerando-a um personagem lendário.
Seja como for, o reinado de Ku-Baba é dito como um período de paz e prosperidade. Sua dinastia continuou por mais duas gerações com seu filho Puzur-Suen e seu neto Ur-Zababa. Seu filho a declarou uma deusa logo após a sua morte e assim Ku-Baba foi adorada por toda a Mesopotâmia e povos vizinhos.
Entre os hititas da Anatólia, Ku-Baba se tornou a deusa tutelar da antiga cidade Carchemish, perto do Eufrates, entre as atuais Turquia e Síria.
Puabi: a rica senhora de Ur
Puabi viveu em Ur, durante a 1ª Dinastia, entre 2600 e 2340 a.C. Tudo o que se sabe sobre ela está em seu túmulo descoberto durante as escavações de Leonard Woolley, no Iraque, entre 1922 e 1934. Puabi foi enterrada com três selos cilíndricos presos à sua túnica, todos trazem seu nome e título – caso incomum, apenas um selo seria suficiente. Talvez Puabi quisesse ter a segurança de não passar anônima na eternidade.
Os selos lhe dão o título de nin ou eresh, palavra suméria que significa rainha, senhora ou sacerdotisa. Eles também não a colocam em relação a nenhum rei, marido ou divindade. A posição social exata de Puabi é, portanto, incerta. Mas, ela certamente, gozou de autonomia e destaque social.
O túmulo indica que Puabi tinha um status importante: sua sepultura era privada, estava no cemitério real de Ur e continha seus pertences pessoais além de serviçais que a acompanharam no ritual funerário. Ela foi enterrada com 23 criadas, 4 mulheres harpistas e 5 soldados além de uma carruagem decorada com cabeças de leoas de prata e puxada por dois bois. Os corpos seguravam um pequeno copo que, possivelmente, continha o veneno que ingeriram.
O corpo de Puabi estava coberto de joias: colares de pedras preciosas, cintos, anéis, brincos, pulseiras, tiaras e fitas de ouro que prendiam seus cabelos. Havia ainda uma grande quantidade de objetos como tigelas, copos, xícaras de ouro e prata.
Os tesouros foram divididos entre o Museu Britânico, em Londres, o Museu Penn (Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, e o Museu Nacional do Iraque, em Bagdá. Algumas peças foram saqueadas do Museu Nacional de Bagdá durante a guerra do Iraque, em 2003.
Enheduana: poeta e filósofa suméria
Enheduana viveu na época do esplendor do Império Acadiano. O rei Sargão, o Grande (2270-2215 a.C.) havia conquistado as cidades sumérias tornando-se o primeiro soberano registrado na história a fundar um império multiétnico. Não se sabe se Enheduana era filha de Sargão de fato ou se o título era apenas figurativo, mas o rei depositou-lhe enorme confiança nomeando-a “Alta Sacerdotisa de Nanna”, o deus lunar da cidade suméria de Ur. (Em outras interpretações, o nome se refere à deusa Inanna ou ao deus Anu.)
Coube a Enheduana a responsabilidade de fundir os deuses sumérios e acadianos para criar a estabilidade necessária ao império de Sargão. Seu grande destaque foi a criação de poesias, orações e hinos que serviram, por séculos, de modelos de preces peticionárias em todo mundo antigo. Suas composições influenciaram e inspiraram as orações e salmos da Bíblia hebraica e os hinos homéricos da Grécia.
Enheduana é considerada a primeira escritora conhecida da história. Uma parte significativa de sua obra chegou até nós: são 42 hinos dirigidos aos templos de toda Suméria e Acádia. Suas criações alteraram a própria natureza dos deuses mesopotâmicos e a percepção que as pessoas tinham do divino. Os deuses Nanna e Inanna, por exemplo, ficaram mais compassivos, com significados mais profundos e universais, servindo não apenas para sumérios ou acádios.
Por mais de quarenta anos Enheduana ocupou o cargo de suma sacerdotisa sobrevivendo até mesmo à tentativa de golpe contra sua autoridade por parte de Lugal-Ane, rei de Adab, na Suméria. Seu canto “A Exaltação de Inana” conta os detalhes de sua expulsão de Ur e sua restituição.
Mesmo depois de sua morte, Enheduana continuou sendo lembrada como uma figura importante do reino, talvez até mesmo com caráter semi-divino.
A vida de Enheduana é bem documentada, em textos e artefatos arqueológicos entre os quais, dois selos com seu nome, sua estátua encontrada em Giparu (2000-1800 a.C.). e um disco de alabastro contendo seu nome.
A autoria de Enheduana em tantos textos de grande importância levanta a questão da alfabetização feminina na antiga Mesopotâmia. Ler e escrever era uma prática comum entre as mulheres da elite sumeriana. Afinal, a escrita estava sob a proteção de uma deusa, Nidaba, o que revela a importância cultural das mulheres e seu papel na sociedade da época.
As esposas reais são conhecidas por terem encomendado ou composto poesia com certa frequência. As mulheres de comerciantes também escreviam cartas a seus maridos ausentes em viagens de negócio dando conta das provisões da casa e da administração de suas propriedades. O conteúdo dessas cartas mostra que as mulheres estavam à frente da família, tinham autonomia para investir em operações comerciais e, portanto, suas atividades não se limitavam ao domínio doméstico, e elas tinham capacidade e liberdade para agir por conta própria.
Sob domínio de Marduk: o patriarcalismo babilônico e assírio
A partir de 2000 a.C., os registros feitos por mulheres se tornam muito raros. Nota-se, também, uma gradual perda da influência das grandes deusas em benefício das divindades masculinas e, ao mesmo tempo, a crescente redução do papel da mulher. O fenômeno parece estar relacionado à crescente militarização das sociedades mesopotâmicas desde o início do 2º milênio, que teria marginalizado as mulheres. Nas sociedades do 1º milênio, o lugar da mulher estava reduzido a favor do homem, ficando praticamente limitado à maternidade e ao cuidado com a família.
O período em que essa situação fica mais evidente é o reinado de Hamurabi, o rei babilônico do século XVIII a.C. Conquistador da Suméria e da Acádia, ele é o fundador do Primeiro Império Babilônico cujo patrono é Marduk (Marduque ou Merodaque), o deus supremo do panteão mesopotâmico.
A mitologia de Marduk guarda forte simbologia da ascensão do poder masculino: desde o seu nascimento, esse deus é um prodígio. “O sábio dos sábios, o mais sábio dos deuses; (…) seu nascimento foi o de um macho, ele fecundou desde o início (…) Tem quatro olhos e quatro orelhas” (SPALDING: 1973). Tornou-se soberano dos deuses depois de derrotar a deusa primordial Tiamat que ele despedaça para criar os céus, a terra e a água. Marduk é também o criador da humanidade: para isso ele sacrifica o filho de Tiamat e de seu sangue cria os homens. A função desses era servir os deuses e poupá-los dos trabalhos penosos.
O poema de Marduk era recitado na festa mais importante da Babilônia, o Dia de Ano Novo, quando então se comemorava o triunfo do deus. Em honra à vitória de Marduk foi construído seu templo numa maciça torre em degraus (zigurate), na Babilônia. A legendária Torre de Babel mencionada na Bíblia.
É Marduk quem entrega a Hamurabi as leis que a população deveria seguir. O Código de Hamurabi (1750 a.C.) em suas 282 leis dedica um bom número às mulheres. A mulher está sob a autoridade do homem, o pai e depois o marido. É um “bem” do homem podendo até ser dada como pagamento de dívida. O Código estabelece, contudo, um tempo máximo de três anos para esse tipo de escravidão.
“Se uma dívida pesa sobre um homem livre (awikum) e ele vendeu sua esposa, seu filho ou sua filha ou os entregou em serviço pela dívida, durante três anos trabalharão na casa de seu comprador ou daquele que os tem em sujeição; no quarto ano será concedida a sua libertação.” Código de Hamurabi, lei 117ª.
As Leis Assírias do século XIV a.C. (das quais se conhecem as cópias do século XI a.C., descobertas em Assur, no norte do Iraque) mostram que a situação das mulheres continuou se deteriorando com o tempo. Nelas encontra-se a primeira menção conhecida ao uso obrigatório do véu, assim como a punição para quem infringisse a lei.
“Se as esposas de um homem ou suas filhas saem para a rua, suas cabeças devem ser cobertas com véu. A prostituta não deve usar véu. As criadas não devem se esconder. As prostitutas e as servas com véu devem ter suas roupas apreendidas e 50 pancadas infligidas nelas e derramado betume em suas cabeças”. Lei Assíria (Código de Assur), 1075 a.C.
A sexualidade feminina é restringida, mas a dos homens adultos, não. As proibições para os homens dizem respeito à esposa de outro homem. Se casado, ele pode fazer sexo com seus escravos, prostitutas e ter uma segunda esposa. A mulher pertence ao marido e não pode se relacionar com outros homens sob pena de morte. O Código de Hamurabi mostra que a reputação de uma mulher pode ser facilmente questionada bastando ela sair de casa com certa frequência para que haja uma insinuação de adultério. As Leis Assírias serão ainda mais severas a respeito.
O casamento tem por principal objetivo a reprodução. É baseado em um contrato e funciona como uma transação. Não há palavra para casamento. Considera-se que o marido “toma” uma esposa. A mulher dever ser fértil e tudo é feito para permitir que o marido tenha filhos já que este não é considerado responsável pela infertilidade do casal. O homem pode “tomar” uma segunda esposa para fins de procriação e, de acordo com o Código de Hamurabi, a nova esposa é considerada sua “serva” e os filhos dela são considerados filhos da primeira esposa. As Leis Assírias autorizam a bigamia permitindo que comerciantes que vivem parte do ano em outra cidade para negócios tomem uma segunda esposa.
No caso de adultério, a mulher é considerada culpada. No Código de Hamurabi cabe ao marido decidir a punição: matá-la ou poupá-la. O marido, contudo, não tem autoridade sobre o amante: este será julgado pela autoridade pública responsável que pode executá-lo ou libertá-lo.
Raras são as rainhas conhecidas que tiveram um papel político importante e cuja autoridade aparece claramente nas fontes: Sammuramat e Zakutu entre os assírios, e Puduhepa, entre os hititas são casos excepcionais.
Sammuramat ou Semíramis? (séc. IX a.C.)
Sammuramat, esposa do rei assírio Shamshi-Adad V, depois que ele morreu, em 811 a.C. governou o Império Assírio como regente por cinco anos, até que seu filho Adad-Nirari III atingiu a maioridade. Ela governou em um momento de incerteza política, que explicaria os assírios terem aceito seu governo uma vez que era impensável uma mulher como governante.
Na cidade de Assur, no norte do atual Iraque, foi encontrado um obelisco datado de 809 a.C. com inscrições cuneiformes que dizem:
“Estela de Sammuramat, rainha de Shamshi-Adad, rei do universo, rei da Assíria, mãe de Adad Nirari, rei do universo, rei da Assíria, nora de Shalmaneser, rei das quatro regiões do mundo.” (MARK: 2014)
Há dúvidas, porém, se Sammuramat realmente governou como regente ou co-regente ao lado de seu filho. Talvez possa apenas ter exercido uma influência em segundo plano enquanto mãe do rei menino. Numerosas inscrições referem-se a ela como uma mulher excepcionalmente poderosa e enérgica.
Outra polêmica diz respeito à suposta relação entre Sammuramat e Semíramis, a legendária rainha de Nabucodonosor (605-562 a.C.) para quem ele mandou construir os Jardins Suspensos da Babilônia. A suposição considera a tradução do nome da rainha assíria que, em grego, é Semíramis. Neste caso, Sammuramat seria a pessoa histórica por trás da lenda.
Pensa-se que uma mulher liderando um governo de sucesso pode ter feito os assírios considerá-la com particular reverência, e que as realizações de seu reinado (incluindo a estabilização e o fortalecimento do império após uma guerra civil destrutiva) foram recontadas ao longo das gerações até ela ser transformada em uma figura mítica. Dizia-se que Semíramis tinha origens divinas, beleza e inteligência sobrenaturais, mas também astúcia feminina, estilo de vida luxuoso e um final misterioso. A lenda conta que ela ela subiu ao céu transformada em pomba depois de entregar a coroa ao seu filho, Tamuz.
De qualquer forma, é certo que Sammuramat não tem nada a ver com os Jardins Suspensos e estes, especula-se hoje, talvez nem tivessem sido construídos na Babilônia, mas em Nínive.
Zakutu / Naqia (séc. VII a.C.)
Zakutu era o nome assírio de Naqia, nome de origem aramaica ou hebraica. Não era uma mulher nobre, mas uma “mulher do palácio” que se aproximou de Senaqueribe ainda antes dele ser aclamado rei da Assíria, e deu-lhe um filho, Esar-Hadon ou Assaradão.
Senaqueribe (705-681 a.C.) já tinha, então, pelo menos onze filhos com suas esposas, e Esar-Hadon era o mais novo. O filho herdeiro escolhido já exercia sua autoridade governando a cidade da Babilônia quando foi capturado e morto pelos elamitas (inimigos da Assíria) por volta de 695 a.C.
O império estava em guerra e Senaqueribe, ocupado em campanhas militares, não decidia sobre seu sucessor. Zakutu, uma mulher inteligente e sedutora como indicam os textos, deve ter aproveitado a situação para convencer o rei a escolher Esar-Hadon. Os irmãos mais velhos se opuseram com força e, temendo pela vida do filho, Zakutu enviou-o para se esconder em algum lugar da região de Mitani (no sudeste da atual Turquia). A disputa pelo trono acabou levando ao assassinato de Senaqueribe por dois de seus filhos em 681 a.C.
Esar-Hadon foi então retirado do exílio, provavelmente por Zakutu e, de volta à Nínive, combateu os irmãos por seis semanas até que estes fugissem para o exterior. Esar-Hadon mandou executar as famílias associadas aos irmãos e assumiu o trono governando de 681 a 669 a.C.
Zakutu ocupou um lugar de destaque na corte durante o reinado do filho, carregando o título de “rainha”, redigindo cartas e recebendo dignitários, mesmo que ela não fosse assíria. Cartas sobre assuntos do Estado foram endereçadas a ela como “À mãe do rei, meu senhor” e a saudavam pedindo a proteção divina: “Que os deuses Ashur, Shamash e Marduk mantenham o rei, meu senhor, em saúde. Que eles decretem o bem-estar para a mãe do rei, meu senhor“.
Esar-Hadon morreu em 669 a.C. durante a campanha contra o Egito. Zakutu agiu rápido para garantir o trono ao neto, Assurbanipal. Emitiu o Tratado de Lealdade ordenando que a corte e o país reconhecessem seu neto como governante legítimo. O tratado dizia:
“Qualquer pessoa que esteja neste tratado que a rainha Zakutu celebra com toda a nação a respeito de seu neto favorito Assurbanipal não deve se revoltar contra seu senhor Assurbanipal, rei da Assíria, ou em seus corações conceber e colocar em palavras um esquema feio ou um plano maligno contra o seu senhor Assurbanipal, ou conspirar pelo assassinato de seu senhor Assurbanipal, rei da Assíria. Que Ashur, Sin, Shamash e Ishtar testemunhem e amaldiçoem os violadores deste tratado.” (MELVILLE)
O tratado indica que Zakutu gozava de poder e apoio suficientes para garantir a sucessão de seu neto como rei. Ela ainda possuía considerável influência durante os primeiros anos do reinado de Assurbanipal (668-627 a.C.) e era temida pelas autoridades reais. Assurbanipal foi o último rei do Império Assírio que, entre outras realizações construiu a célebre biblioteca de Nínive.
Fonte
- BOUZON, Emanuel. O Código De Hamurabi. Petrópolis: Vozes, 1987.
- KRIWACZEK, Paul. Babilônia. A Mesopotâmia e o nascimento da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
- SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de Mitologia. São Paulo: Cultrix, 1973.
- GRAY, John. Próximo Oriente. Lisboa: Verbo, 1982. (Biblioteca dos Grandes Mitos e Lendas Universais.)
- MICHEL, Cecile. Quelle place occupent les femmes dans les sources cuneiformes de la pratique? Les Nouvelles de l’archéologie ,n. 140, 2015.
- SAVATIER, François. Dossier: les femmes em Mépotamie. Pour la Science, n. 370, 30 nov 1999.
- Cuneiform Library. Highlights from the Garsana Collection. Cornell University.
- The Code of the Assura, c. 1075 BCE. Ancient History Sourcebook.
- MELVILLE, Sarah. The role of Naqia/Zakutu in Sargonid politcs. Penn State University Press.