O clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1936 é considerado obra fundadora da moderna historiografia e das ciências sociais brasileiras. No dizer de Antonio Cândido, um “clássico de nascença”.
O que pouca gente sabe é que a profícua produção de Sérgio Buarque de Holanda não se restringiu ao leitor acadêmico e intelectual, ele também se aventurou no mercado didático escrevendo para crianças e adolescentes. Em 1975, ele lançou a coleção História da Civilização (em dois volumes) e História do Brasil-curso moderno (em dois volumes) pela Companhia Editora Nacional. Era, então, o período dos governos autoritários.
A produção didática da época da ditadura
Em plena vigência da ditadura e do ufanismo do “milagre econômico”, os livros didáticos continuavam reproduzindo uma história positivista herdada do início da República e que convinha ao discurso autoritário do governo militar. Exaltavam os vultos nacionais e os fatos políticos que se desenrolavam de forma linear e evolucionista rumo ao progresso e à harmonia social. É exemplar o texto de Souto Maior, um dos autores didáticos mais adotados das décadas de 1960 e 1970, que finalizava sua História do Brasil com as seguintes palavras:
“Estamos em pleno processo de libertação do colonialismo econômico e cultural. Os aspectos negativos que ainda persistem em nossa estrutura serão gradativamente superados. Já temos a certeza de que, apesar de todos os impactos e fatores adversos, o Brasil é um país que progride e que já possui autoconsciência de sua cultura e de sua civilização.” (MAIOR, A. Souto. História do Brasil para o curso colegial e vestibulares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, 7ª edição, p. 419.)
O mesmo autor apresentava a ditadura militar no capítulo intitulado “A redemocratização do país”, e denominava o golpe de “Revolução Gloriosa”.
Outros conhecidos autores de obras didáticas da época como Joaquim Silva, Brasil Bandecchi, Vicente Tapajós e Borges Hermida, seguiam a mesma linha tradicional, exaltando a ordem e o progresso e expressando a ideia de um Brasil onde “vive-se melhor agora do que antes”.
Nestas obras, os exercícios limitavam-se a uma lista de perguntas que visavam memorizar nomes, datas e feitos históricos. As ilustrações, em preto e branco, privilegiavam retratos de governantes e heróis nacionais, as pinturas acadêmicas de Victor Meirelles e Pedro Américo, fotografias de monumentos históricos e de grandes obras do governo.
A coleção didática de Sérgio Buarque de Holanda
A coleção assinada por Sérgio Buarque de Holanda destoava de seus concorrentes em todos os aspectos, com um projeto gráfico atraente com numerosas imagens coloridas e, principalmente, pela inovadora abordagem da História do Brasil e Geral.
Destinada à área de Estudos Sociais da 5ª à 8ª série (correspondente, hoje, do 6º ao 9º ano), a coleção dava ênfase à cultura e à sociedade brasileira incluindo aspectos do cotidiano e da cultura popular, destacava a produção artística e literária mundial acompanhada de imagens com legendas explicativas (e não meramente informativas) e excertos de grandes obras.
As explicações políticas eram condensadas aos seus aspectos mais gerais e relevantes não se perdendo em minúcias factuais. Enfatizava o processo histórico e as transformações pelas quais o país e o mundo passaram em diferentes setores. Incluía uma vasta documentação primária distribuída em fragmentos vinculados ao texto principal e completada com gráficos e tabelas.
Os capítulos de História do Brasil eram finalizados com um dossiê intitulado “Panorama cultural” que contextualizava a situação do país frente às transformações que ocorriam no mundo na época. Destacava aspectos das artes e das ciências no contexto histórico em pauta. Dessa forma, alargava o conhecimento histórico para além do campo político e vinculava a história do Brasil à história mundial.
Em relação à ditadura, a coleção optou por não discriminar o governo autoritário nem usar o termo golpe, preferindo chamar aquele momento de “República Nova”.
A editora anticomunista e seus autores “comunistas”
A Companhia Editora Nacional, responsável pela produção da coleção didática de Sérgio Buarque de Holanda, era associada ao IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, entidade fundada em 1962 por empresários, intelectuais e militares que tinham em comum uma postura claramente anticomunista.
O IPES promoveu intensa campanha contra o governo João Goulart. Recebeu apoio de jornais, agências de publicidade, sindicatos, setores da Igreja e editoras (DREIFUSS, 1981). Além da Companhia Editora Nacional, entre as editoras associadas ao IPES estavam: Saraiva, Francisco Alves, Globo, Agir e José Olympio que colocaram à disposição do IPES a sua infraestrutura técnica e comercial, equipamento e pessoal com a finalidade de publicar material anticomunista (HALLEWELL, 1985).
Neste contexto, é de se estranhar o lançamento de uma coleção didática tão inovadora produzida por uma editora reconhecidamente conservadora e que sequer servia de porta-voz do regime militar e dos grupos dominantes.
Acrescente-se o fato da coleção ter a colaboração de outros professores universitários – Carla de Queiroz, Sylvia Barboza Ferraz, Virgílio Noya Pinto, e assessoria didática de Laima Mesgravis – todos vinculados à Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP), instituição que, segundo os militares, era suspeita de abrigar comunistas e opositores do regime.
Sendo uma coleção didática assinada por autores “comunistas” ou simpatizantes do comunismo, e com um conteúdo não tradicional que fugia ao “recomendável” pelo MEC ela não tinha chance de participar do Programa do Livro Didático. Criado em 1971, o Programa do Livro Didático estabelecia um regime de coedição entre o governo e entidades particulares (editoras, autores, gráficas, distribuidores e livreiros). A obra inserida nesse programa estava liberada para divulgação, adoção pelas escolas e, portanto, com venda garantida.
Adotar obras não recomendadas levantava “suspeitas de subversão” contra o professor responsável resultando em sua demissão ou, pior, sujeitando-o à investigação da política política. Isso talvez explique porque a coleção dirigida por Sérgio Buarque de Holanda apesar de inovadora tenha tido uma vendagem medíocre.
O desaparecimento da obra
A coleção História da Civilização e História do Brasil-curso moderno é hoje praticamente desconhecida: rara nos sebos e nas bibliotecas, ela também não aparece na produção de Sérgio Buarque de Holanda e de nenhum dos outros autores colaboradores. Sequer foi mencionada na biobibliografia de Sérgio Buarque de Holanda por ocasião da comemoração de seu nascimento.
Ignorada pelos historiadores e desconhecida pelos professores de História, a coleção didática dirigida por Sérgio Buarque de Holanda foi uma bolha de ar no oceano da mesmice escolar. Uma obra percursora, porém prematura, que reuniu professores especialistas da universidade no esforço de produzir uma coleção didática que contribuísse para uma efetiva renovação do ensino de História.
Fonte
- HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: T. A. Queiroz / Edusp, 1985.
- DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.
- RODRIGUES, Joelza Ester Domingues. Memória fora de foco. A fotografia no livro didático de História do Brasil. PUC-SP, 2004 (Tese).
Agradecimento
a Crislene Bueno de Carvalho Galdino e Reinaldo Seriacopi por terem cedido as imagens que ilustram esse artigo.
Eu tenho até hoje estes dois volumes da coleção Sergio Buarque de Hollanda, em perfeito estado, foram adotados na disciplina de História, nas 5ª e 6ª séries do 1º grau, no Colégio Bandeirantes, no início dos anos 80. Não sabia que hoje são raridades bibliográficas.
Esses livros continuam atuais em relação à abordagem.
Não vejo nenhum problema, tampouco, com as belíssimas obras de Pedro Américo e Vitor Meireles. A França teve o seu David. O Brasil não pode?
As editoras evitavam autores marxistas? Precisávamos de um pouco disso hoje. O marxismo serve pra acobertar muita preguiça, ignorância, charlatanismo e principalmente oportunismo, por ter se tornado quase um pré-requisito para muitas instituições. Nem todo marxista é um Barrington Moore.