A fotografia é um documento histórico ambíguo pois sendo um registro da realidade é, também, um recorte e uma percepção do mundo. A motivação ou intenção do fotografo (consciente ou não), o enquadramento, a lente utilizada e a iluminação interferem no resultado final e são fatores de construção do significado da fotografia. Daí seu papel documental e testemunhal ter um duplo caráter: é a um tempo representação da realidade e uma noção construída da realidade.
Isso é particularmente importante quando se trata de fotografias de uso político. Neste caso ela pode até ser usada para “criar” um fato histórico ou para modificá-lo, para exaltar um líder ou criticar e desacreditar inimigos políticos. Rastreando fotos em diversos arquivos e bibliotecas da Europa, o jornalista francês Alain Joubert encontrou centenas de fotos originais diferentes daquelas publicadas nos jornais e revistas. Elas foram editadas, cortadas, montadas ou tiveram pedaços apagados conforme a conveniência do líder político daquele momento. Os beneficiários destas operações foram os chefes de governos Mussolini, Hitler, Lenin, Stalin, Mao, Tito, Kim Il Sung.
A prática de adulterar fotos não é, contudo, exclusiva dos regimes autoritários, de esquerda ou direita. Os Estados Unidos também se valeram de fotografias editadas para engrandecer seus feitos e seus heróis. Há também o caso de fotos originalmente despretensiosas que, após um tratamento gráfico apurado, acabaram por se tornarem emblemáticas, como a icônica foto de Che Guevara usando uma boina com uma estrela.
As imagens que apresentamos a seguir são exemplos de que a fotografia não pode ser considerada como “prova” da realidade e que é preciso investigar todos os elementos que envolvem sua produção incluindo a foto em negativo (recurso inexistente nas máquinas fotográficas atuais) e sua revelação final.
O discurso de Lenin, 05 de maio de 1920
Lenin estava à frente do poder e o país, mergulhado na guerra civil. Milhões de homens foram recrutados para lutarem no Exército Vermelho comandado por Trotsky. No ano seguinte, com o fim da guerra civil, Lenin criou a NEP (Nova Política Econômica) que liberava alguns setores da economia. Pouco tempo depois, Lenin afastou-se do poder por motivo de doença, vindo a falecer em 1924.
Joseph Stalin declarou-se sucessor de Lênin no comando da URSS e pouco depois empreendeu uma feroz política de perseguição aos seus adversários. Trotsky foi expulso do país e acabaria assassinado, em 1941, no México, para onde havia se exilado. Stalin mandou apagar as imagens de seus adversários nas fotografias e, com isso, suprimi-los da memória popular para escrever uma “nova história” do comunismo. A foto oficial de Lênin discursando sozinho no palanque foi publicada milhares de vezes em jornais, revistas e livros didáticos e serviu de inspiração a pinturas como a tela de Isaac Brodsky, feita em 1933 (abaixo).
Hitler a caminho do poder, 1932
Hitler parece constrangido e diminuído ao lado da figura altiva do marechal von Hindenburg, então com 85 anos de idade, o dobro da idade do líder nazista. Naquele ano, os nazistas haviam obtido expressiva votação e compunham a maioria dos deputados no Parlamento alemão. A foto registrou uma reunião em que Hindenburg consultou Hitler sobre a demissão do gabinete Franz von Papen. No ano seguinte, ocorreu a campanha eleitoral e a fotografia serviu de base para o cartaz de propaganda política. Mas a figura de Hitler é bem diferente: com trajes militares e fisionomia confiante, ele transmite segurança e firmeza – qualidades esperadas do candidato de um país em aguda crise econômica. Os títulos do cartaz passam uma mensagem otimista e democrática. Ficam as perguntas: O que Hitler entendia por paz? Direitos de quem ele defendia? Neste ano, 1933, Hitler foi nomeado chanceler e começava sua escalada no poder.
Mussolini e a farsa da vitória, 29 de junho de 1942
Mussolini que acabara de desembarcar em Trípoli, monta a cavalo e ergue a espada de ouro do Islã que recebera dos muçulmanos da Líbia. A Segunda Guerra estava em curso. Nas semanas anteriores, tropas germano-italianas comandadas por Rommel haviam tomado Tobrouk e avançavam em direção ao Egito. Mussolini já se viu, vitorioso, no Cairo. No entanto, pouco depois, as tropas de Rommel foram detidas em El Alamein. Mussolini, ainda na Líbia, regressou à Roma.
Nos jornais italianos, a foto apareceu modificada: apagaram-se os indivíduos que mantinham o cavalo parado e retocou-se o céu ao fundo com nuvens entre luzes. Dessa maneira, tem-se uma figura majestosa de Mussolini, quase um herói mítico, desviando a atenção da derrota das tropas germano-italianas que, neste momento, estavam sendo expulsas da África pelas forças de Montgomery.
Churchill retratado pelos nazistas, julho de 1940
Churchill, primeiro-ministro britânico, junto com outras autoridades, passa revista nas tropas e examina a metralhadora de um soldado. A Segunda Guerra, iniciada em setembro de 1939, parecia vitoriosa aos alemães que naquele momento já ocupavam a França. O Reino Unido estava praticamente sozinho na luta contra o Eixo, mas seu poder de fogo era grande. O Ministério de Propaganda do Reich, liderado por Joseph Goebbels usou todos artifícios para desabonar o líder inimigo. O recorte da figura de Churchill aplicado sobre um fundo que lembra parede ou muro, e o retoque na metralhadora (que aparece brilhando) passaram a ideia de que o primeiro-ministro britânico era um perigoso gangster.
Iwo Jima, a construção de um ícone da vitória, 1945
Iwo Jima, pequena ilha japonesa, é palco do primeiro confronto em território japonês. A batalha ainda estava em curso quando os fuzileiros ergueram a bandeira no ponto mais alto da ilha. O fotógrafo americano Joe Rosenthal, recém chegado na ilha, fez o registro. Ainda levariam cinco semanas de combate até a vitória final que matou 7 mil soldados americanos e 22 mil japoneses. Dias depois, o Secretário da Marinha chegou à zona de guerra e foi-lhe mostrada a foto do içamento da bandeira. Ele não gostou, achou que ela não valorizava a batalha, os soldados pareciam displicentes e o soldado em primeiro plano, com a metralhadora, triste ou amedrontado. Mandou trocar a bandeira.
Joe Rosenthal seguiu os soldados e, a uma distância de dez metros, fotografou-os no esforço coletivo de erguer uma bandeira maior e mais imponente que a anterior. A batalha não havia terminado, mas a fotografia tornou-se o símbolo da vitória norte-americana na Segunda Guerra e ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia. Uma das imagens mais icônicas do século XX, ela serviu de propaganda ao governo americano para estimular o recrutamento e o patriotismo da população. Os três fuzileiros sobreviventes que aparecem na foto, percorreram o país vendendo bônus de guerra e ainda pousaram para um escultor criar um memorial dessa batalha.
Fonte
- JOUBERT, Alain. Le Commissariat aux archives. Les fotos qui falsifient l’Histoire. Paris: Bernard Barrault, 1986.
Ótima publicação. Vou usá-la na aula de História sobre Regimes totalitários e o uso de fotografias como propaganda política.
Obrigado,
Um grande abraço
Legal Sebastião, depois conte como foi a aula com essa material. Abr.
Vai usar também o exemplo de Iwo Jima? O artigo é sobre a falsificação da História com a utilização de fotografias e, como podemos constatar, não se trata de “Regimes totalitários” mas de conveniências políticas. Portanto, não interessa quem fez a falsificação. O que interessa é a tentativa de ocultar ou distorcer a História. E, como sabemos, história, memória e verdade são conotações de uma mesma palavra para os gregos: alethéia (não-esquecimento, verdade).
[…] https://ensinarhistoria.com.br/fotografias-que-falsificam-a-historia/ – Blog: Ensinar História – Joelza Ester Domingues […]
Ótimo, muito bom mesmo, gostei demais, é por isso que eu amo a História 😀
Decepcionante saber que o curso de História da USP só ensinou a seus alunos a
reproduzirem até hoje a versão de 1968 iniciada por Robert Conquest, do
serviço secreto britânico que radicado nos EUA, passou a integrar a CIA,
realizando o trabalho de falsificação da história para difusão da
propaganda anticomunista, condecorado por isso, por George Bush e
falecido no ano passado.
(Paulo Oisiovici)
Está bem claro que a segunda foto do discurso do Lenin é uma outra foto tirada em um momento diferente (pouco antes ou depois da primeira) e não uma “falsificação”.
Olá Almir. As fotos fazem parte de uma série do mesmo rolo fotográfico, como é comum em fotografias jornalísticas. Escolhe-se para publicar uma entre dezenas de fotos feitas no mesmo momento. A foto utilizada para o retoque tem direitos autorais e não pode ser reproduzida sem os devidos custos – o que inviabilizaria sua publicação no blog. Daí ter sido escolhida a foto mais próxima da série. Elas fazem parte da ampla pesquisa realizada por Alain Joubert, publicada em “Le Commissariat aux archives” (Paris: Bernard Barrault, 1986).
Olá Almir. As fotos fazem parte de uma série do mesmo rolo fotográfico,
como é comum em fotografias jornalísticas. Escolhe-se para publicar uma
entre dezenas de fotos feitas no mesmo momento. A foto utilizada para o
retoque tem direitos autorais e não pode ser reproduzida sem os devidos
custos – o que inviabilizaria sua publicação no blog. Daí ter sido
escolhida a foto mais próxima da série. Elas fazem parte da ampla
pesquisa realizada por Alain Joubert, publicada em “Le Commissariat aux
archives” (Paris: Bernard Barrault, 1986).
Ok, entendi. Obrigado pelo esclarecimento.
Também percebi isso
[…] Reunimos exemplos de que a fotografia não pode ser considerada como “prova” da realidade e que é preciso investigar mais a história já contada. […]