Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe foi um dos romances mais populares do século XVIII e, por muito tempo, o mais traduzido. Recebeu numerosas adaptações impressas e também para o cinema, TV, quadrinhos e animações. Escrito em uma linguagem simples, sua leitura continua cativando leitores. A obra é uma fonte preciosa para traçar a mentalidade do colonizador europeu no início do século XVIII, preanunciando os padrões de pensamento que ganharam força no século seguinte, tais como os conceitos de civilização e de superioridade racial, e o domínio imperialista sobre os povos nativos.
Para além de sua importância literária, Robinson Crusoé é um excelente material para um projeto interdisciplinar no Ensino Fundamental II e no Ensino Médio, permitindo estabelecer conexões com as disciplinas de História, Literatura, Inglês, Filosofia e Sociologia.
No final do artigo, download de trecho da obra, com questões e respostas.
Daniel Defoe e sua época
Seu nome original era Daniel Foe e, por volta de 1695, incluiu o “de” como marca de enobrecimento. Daniel Defoe (pronuncia-se “difou”) nasceu em Londres em 1660, em uma família presbiteriana de classe média. Seu pai, um fabricante de velas, incutiu-lhe valores e princípios do presbiterianismo que, na época, era considerado uma dissidência do anglicanismo, a religião oficial da Inglaterra desde o século XVI.
Defoe viveu em uma época de mudanças na Inglaterra. Enquanto o absolutismo fortalecia-se na França com Luís XIV, o Rei Sol (1661- 1715), a Inglaterra assistia a deposição de Jaime II pela Revolução Gloriosa (1688) que colocou no trono Guilherme III. O novo rei jurou a Declaração de Direitos que limitava o poder real e fortalecia o Parlamento, garantia a liberdade de imprensa e a liberdade individual, e confirmava o anglicanismo como a religião oficial do país.
As ideias de John Locke (1632-1704) exerciam, então, grande influência prenunciando o iluminismo ao criticar o absolutismo e exaltar a liberdade individual, a tolerância religiosa e a defesa da propriedade privada. A consolidação da monarquia parlamentar fortaleceu a burguesia inglesa permitindo-lhe participar das decisões políticas e ter seus interesses atendidos.
Defoe participou dessas mudanças como jornalista político, panfletista, espião e comerciante. Muitas vezes adotava pseudônimos ou outra personalidade para carregar na retórica contra seus adversários. Em 1703 foi preso por causa da sátira The Shortest Way with the Dissenters” (“O caminho mais curto com os dissidentes”) onde critica o extremismo da Igreja. Foi encarcerado na prisão de Newgate e submetido ao pelourinho.
Breve resumo de Robinson Crusoé
Robinson Crusoé (em inglês, sem acento, pronuncia-se “crusou”) foi lançado em 1719 com o título A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé. Logo se popularizou, tornando-se um dos romances mais vendidos do século XVIII. Uma das razões do sucesso foi a linguagem adotada pelo autor, um estilo simples e direto, sem rebuscamentos que exigissem erudição do leitor. Defoe foi um inovador ao escrever com a linguagem do homem comum sendo, por isso, considerado um dos fundadores do moderno romance inglês.
O autor se inspirou nos relatos de Alexander Selkirk, marinheiro escocês que, durante quatro anos viveu sozinho em uma ilha deserta no Chile, experimentando toda sorte de aventuras. Defoe estendeu essa história verídica fazendo seu personagem viver exatos vinte e sete anos, dois meses e dezenove dias em uma ilha deserta no mar do Caribe.
Robinson Crusoé tem 18 anos, no início do romance, quando sai da casa dos pais e começa suas diversas aventuras marcada por naufrágios. Chega na África onde é escravizado. Foge dali e aporta no Brasil onde se torna um bem-sucedido fazendeiro de cana de açúcar, na Bahia. Envolve-se no comércio de escravos e embarca para a África Ocidental mas o navio naufraga no mar do Caribe, na altura da ilha de Trinidad. Ele é o único sobrevivente do desastre.
O navio não afunda imediatamente o que permite a Crusoé fazer várias viagens a nado para retirar tudo o que possível salvar da embarcação: alimentos, pólvora, armas, ferramentas, uma luneta, papel e tinta – estes últimos, fundamentais para ele escrever o seu diário. Ele reconstrói a sua vida a partir dos escombros.
Crusoé constrói, na ilha, dois refúgios que ele chama de “castelo” e “fortaleza” protegidos por paliçadas. Domestica cabras selvagens, planta cereais, fabrica laticínios e pães, faz suas próprias vestimentas e até um guarda-sol.
A obra e suas diversas leituras
A obra recebeu centenas de traduções. Foi adaptada para o público infanto-juvenil, ganhou versões para o cinema, foi transformada em história em quadrinhos e desenhos animados, e inspirou outras obras.
As adaptações privilegiam, em geral, os aspectos mais exóticos e as aventuras vividas pelo personagem: os naufrágios, o temor em ser devorado por índios antropófagos, a sobrevivência na ilha etc. Contudo, deixam de lado um aspecto importante do romance: sua dimensão moral e as reflexões de Crusoé que, isolado e solitário, estabeleceu um grande diálogo consigo próprio e com Deus. Neste sentido, o romance destaca o indivíduo em sua plena individualidade, seus medos e conflitos interiores em sua jornada ao autoconhecimento.
“A essas alturas, já tinha consciência de minha solidão irremediável, e às vezes vacilava em plena caça, detendo-me para pensar na situação difícil em que me encontrava e pondo em dúvida a importância dos meus esforços para sobreviver. Logo concluí, porém, que, embora não fosse uma situação agradável, era, contudo, o resultado do rumo que eu próprio escolhera. Fora exclusivamente minha a responsabilidade pela decisão tomada, cabendo-me, portanto, enfrentar-lhe as consequências. Além disso, havia um motivo bastante ponderável para que eu me sentisse alegre: longe das cidades, onde homens como meu pai viviam e obrigavam seus semelhantes a viver uma vida sem sentido e cheia de preocupações com as convenções sociais eu podia, enfim me considerar livre. [Ediouro, 1970, p. 42].
No quarto ano de minha permanência na ilha, senti fortalecer-se em mim a convicção de que o mundo dos homens era uma realidade distante que já não me dizia respeito. Submisso à vontade divina, podia contemplar serenamente o mundo maravilhoso que tinha à volta: a melodia dos pássaros, a variedade de flores e árvores estranhas, os regatos de águas cristalinas (…) E me agradava particularmente o fato de ter livrado minha vida da perniciosa influência dos fatores mais negativos do mundo civilizado: a competição, a exploração do homem pelo homem, a maldade e a injustiça.” [Ediouro, 1970, p. 50-51.]
A obra ressalta também a importância da determinação e da persistência imprescindíveis à sobrevivência mesmo em um ambiente hostil e com parcos recursos. Neste sentido, são exemplares as passagens em que Crusoé se vê às voltas em construir seus refúgios, fabricar cerâmica, moer grãos, fazer o pão, construir uma canoa, costurar suas roupas e até fabricar um guarda-sol para se proteger dos raios solares – aprendizados empíricos que o personagem detalha as dificuldades e os avanços possibilitando uma interessante reflexão sobre técnicas e a tecnologias pré-Revolução Industrial.
“Eu andava então muito empenhado na tentativa de fabricar potes de barro, apesar de ignorar completamente o processo de sua fabricação. Considerando o calor daquela região, não havia dúvida de que era possível secar os utensílios modelados; bastaria, portanto, encontrar o barro adequado à modelagem. Tinha esperança de que, depois de secos ao sol, os potes ao menos pudessem servir para guardar alimentos secos.
Eis alguns dos fracassos que enfrentei (…): às vezes os potes rachavam por excesso de sol; outras, ao contrário, eles se desmantelavam ao mais leve toque, por não haverem endurecido o suficiente; (…) ao fim da secagem, os potes estavam estranhamente deformados.
Após dois meses de trabalho, somente conseguira produzir dois modestos e grosseiros potes.
(…) Mas eu tinha uma pretensão mais audaciosa: fazer um pote capaz de suportar o fogo e que servisse para cozinhar e guardar alimentos líquidos. (…) Não tinha a menor ideia de como consegui-los (…).” [Ediouro, 1970, p. 45-46.]
A marcação do tempo é uma das primeiras preocupações de Crusoé. Ele calcula o dia em que chegou à ilha e busca um meio de registrar o tempo, principalmente dos dias de descanso – preceito religioso importante para um presbiteriano. Ergue uma enorme cruz e, em seu tronco, marca a passagem dos dias com traços feitos a faca. Dessa forma, sob o símbolo da cruz e do registro temporal, Crusoé mantêm-se ligado aos costumes e valores de sua sociedade.
“Segundo os meus cálculos cheguei a esta ilha deserta em 30 de Setembro, na época do equinócio do Outono, quando o Sol lançava os seus raios perpendicularmente sobre a minha cabeça. Por esta observação que fiz julguei que me encontrava a 9° 22′ ao norte do Equador.
Ao cabo de dez ou doze dias refleti que, por falta de papel, penas e tinta não podia calcular nem a marcha do tempo nem distinguir os dias de descanso dos de trabalho. Para vencer este inconveniente fixei no solo, sobre o ribeiro, no mesmo local onde tocara terra, um poste de madeira em forma de cruz, no qual gravei com a ponta da minha faca as palavras seguintes: “Aqui cheguei em 30 de Setembro de 1659.”
À volta do poste fazia um traço todos os dias; em cada sete um maior e no primeiro do mês outro muito maior; deste modo tinha um calendário que marcava exatamente os dias, as semanas, os meses e os anos.” [Disponível em Livros Digitais.]
Um dos mais famosos momentos do romance é a cena em que Crusoé descobre uma pegada humana na areia. Depois de vinte e cinco anos de solidão, sobrevivendo num meio hostil e mal falando sua própria língua, Crusoé fica aterrorizado diante aquele sinal que indicava a presença de mais alguém na ilha. O trecho remete à uma reflexão ética, da convivência entre seres humanos. Crusoé que então já tinha pleno domínio de sobrevivência, sente-se inseguro diante da possibilidade de encontrar um semelhante que, para ele, só podia ser um inimigo. Durante meses ele se ocupa da tarefa de reforçar sua segurança construindo uma trincheira e uma nova paliçada. Mesmo sem nunca ter visto ninguém na ilha, Crusoé passa os dois anos seguintes atormentado pelo medo do desconhecido.
“Caminhava tranquilamente pela praia, quando, junto a meus pés, vi umas marcas que me fizeram disparar o coração. Logo reconheci a natureza das marcas: eram de pés humanos! As pegadas de um homem!
Parei estarrecido. Subi numa árvore e depois numa colina, para observar os arredores. Não vi ninguém. Voltei à praia para me certificar de que não estava enganado. Mas não me tinha enganado: era exatamente a marca de um pé humano, os dedos, o calcanhar, enfim, todos os sinais de um pé.
Assustado, voltei para casa, parando sobressaltado ao menor ruído. Queria muito encontrar alguém, mas temia o tipo de pessoa que poderia encontrar. Porque era quase certo que se tratava de algum selvagem antropófago. E não via com bons olhos a ideia de terminar meus dias transformado em churrasco.
Cheguei em casa pulando de dois em dois os degraus da escada de mão. Nem uma lebre espavorida ou raposa perseguida seriam capazes de igual destreza. A dúvida e o medo me dominavam, quase não podendo acreditar na inquietante descoberta.
(…) Ao regressar, pensei em tornar mais segura a defesa da casa e, para isso, construí uma nova cerca de fortes estacas, bem afiadas na parte superior. Para melhor proteção, abri orifícios na paliçada, de tamanha suficiente para neles introduzir o cano da espingarda.” (Ediouro, 1970, p. 55-57)
O encontro de Crusoé com Sexta-Feira
Certo dia, chegou à ilha, um nativo fugindo de seus inimigos que pretendiam sacrificá-lo. Crusoé assiste a luta do homem contra outros dois e decide ajudá-lo. Dá uma coronhada em um deles e atira no segundo matando-o. A cena que se segue é uma das mais conhecidas da literatura ocidental. O encontro do homem europeu com o nativo é carregado de estereótipos e preconceitos em que o primeiro representa a mentalidade do colonizador e o segundo, o colonizado que, em sinal de gratidão, se deixa naturalmente colonizar. É exemplar a cena em que o nativo, ajoelha-se e coloca sua cabeça sob os pés de Crusoé em submissão, revelando que “queria servi-lo toda a sua vida”.
Crusoé batiza o nativo com o nome de Sexta-Feira, negando-lhe, assim, até um um nome humano ou mesmo cristão. É significativo constatar que Crusoé, sempre dedicado a registrar todos os eventos, esqueceu-se de dizer a data em que ocorreu o encontro. Apenas lembra-se que era uma sexta-feira e daí a escolha do nome para o nativo.
Crusoé ensina Sexta-Feira a chamá-lo de “amo” (“senhor” ou “mestre”, conforme a tradução), a dizer “sim” e “não”. Em nenhum momento, o autor transcreve uma única palavra do nativo, apenas descreve sua linguagem de sinais, reforçando com isso seu primitivismo. É Crusoé quem lhe dá uma linguagem humana, ensinando-lhe a falar inglês e, ainda mais, a denominar as plantas, animais e outras coisas da ilha. Ensina-lhe novos costumes, a se vestir, a se alimentar com carne animal e a rejeitar carne humana. Transmite-lhe, enfim, a religião cristã. O processo de colonização de Sexta-Feira é total.
Sexta-feira aprende tudo rapidamente, com satisfação e gratidão. Ele é um “criado fiel”, “sem teimosia, sem más intenções”, inteiramente dedicado a Crusoé. Refletindo a respeito, Crusoé comenta conforme sua visão de homem “civilizado” do século XVIII:
“A sua conduta fez-me refletir e compreender que se Deus, na Sua infinita sabedoria privara um grande número de criaturas humanas do melhor uso de suas faculdades intelectuais, tinha-lhes dado, apesar disso, os mesmos sentimentos, a mesma noção do dever, o mesmo ressentimento para as injúrias, a sinceridade, a fidelidade, enfim, todas as qualidades para fazer e decidir o bem (…).” [Disponível em Livros Digitais.]
Por todos esses aspectos, Robinson Crusoé é um excelente material para um projeto interdisciplinar no Ensino Fundamental II e no Ensino Médio, permitindo estabelecer conexões com as disciplinas de História, Literatura, Inglês, Filosofia e Sociologia. Os fragmentos mostrados acima dão uma amostra dessa possibilidade.
Para acessar o texto, as questões e respostas inscreva-se abaixo.
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Material do download
- PDF (5 páginas) contendo:
- Fragmento da obra: Encontro de Robinson Crusoé com Sexta-Feira
- 10 questões com respostas
Trabalhando a obra em sala de aula
Há numerosas versões e adaptações de Robinson Crusoé que tornam a leitura bem acessível aos alunos, além de versões para o cinema e televisão. É importante lembrar que os cortes e simplificações podem mudar o sentido de um diálogo, dificultar a compreensão do episódio ou mesmo impedir uma análise mais apurada.
Selecionamos o encontro de Crusoé com Sexta-Feira para trabalhar com os alunos. O trecho permite uma boa discussão sobre a mentalidade do colonizador europeu no início do século XVIII, um período anterior à Revolução Industrial e ao imperialismo propriamente dito. Contudo, é possível perceber padrões de pensamento, em especial o eurocentrismo, que embasaram, no século seguinte, o conceito de civilização, as ideias racistas e o domínio imperialista sobre os povos nativos.
Questões para analisar e contextualizar a obra
- Como Crusoé considerou o nativo: como alguém igual, superior ou inferior ao europeu? Justifique.
- Crusoé interessou-se em conhecer a língua e a cultura de Sexta-Feira?
- Como Crusoé se coloca perante o nativo?
- Como Sexta-Feira recebeu os ensinamentos de Crusoé?
- Em sua opinião, a história foi escrita sob um ponto de vista do europeu ou do nativo? Justifique.
- Se fosse ao contrário, como poderia ser o diálogo entre Crusoé e Sexta-feira?
- Que período histórico vivia a Inglaterra e o resto da Europa quando esta obra foi escrita?
- Que reflexão Crusoé faz a respeito da conduta de Sexta-Feira e da criação do ser humano por Deus?
- Você concorda com Crusoé de que Deus criou seres inteligentes (os europeus) e outros sem inteligência, só com instintos e sentimentos (os nativos)?
- Que visão o autor nos passa sobre a civilização britânica em relação às outras culturas: de superioridade, de igualdade ou de inferioridade? O que você pensa a respeito disso?
- Nos primeiros tempos das grandes navegações (séculos XV e XVI), os povos indígenas americanos eram vistos como “selvagens” e perigosos canibais, que os europeus deveriam evitar ou eliminar. O romance de Defoe mostra uma mudança na maneira de ver o nativo. Que mudança é essa?
- Quando a obra foi publicada, a Inglaterra lucrava muito com o tráfico de africanos escravizados. Liverpool era, então, a capital do comércio transatlântico de escravos. Considerando isso, na sua opinião, como poderia ser a relação entre Robinson Crusoé e Sexta-Feira se este fosse africano?
As respostas estão na página de download
Fonte
- Daniel Defoe. Blog da Companhia das Letras.
Outras edições de Robinson Crusoé, em português
- FLAKSMAN, Sérgio (trad.). Robinson Crusoé. São Paulo: Penguin Companhia, 2012.
- FEIST, Hildegrd (trad.). Robinson Crusoé. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1999.
- ZOTZ, Werner (trad./adap.). Robinson Crusoé. São Paulo: Scipione, 1998.
- BACELLAR, Paulo (trad.). Robinson Crusoé. Rio de Janeiro: Ediouro, 1970.
- BOIDE, Alexandre (adap.) Robinson Crusoé. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011 (versão em quadrinhos).
Excelente texto! Me deu vontade de ler o livro. Conhço a história mas não lembro se li na infância…..
É uma excelente leitura para quem vai se lançar a uma aventura.