A tradicional explicação de que a agricultura levou à sedentarização e daí ao surgimento das cidades não se sustenta mais. Muitas descobertas ocorreram desde que o arqueólogo australiano V. Gordon Childe mencionou a “revolução neolítica” em seu livro Man Makes Himself (1936).
A história dos povos pré-históricos é muito mais complexa do que se imaginava e eles tiveram experiências muito diversas em seus modos de viver. Sociedades de caçadores-coletores não foram povos errantes em permanente deslocamento à procura de subsistência e vivendo em abrigos improvisados. A invenção da agricultura não levou à sedentarização, há um intervalo de pelo menos dois milênios entre elas. E, mesmo depois da agricultura ter se consolidado, houve o caso de sociedades agrícolas, forçada pelas circunstâncias, retornarem à caça-coleta.
Escavações arqueológicas realizadas nas décadas de 1950 e 1960 em cavernas na Palestina, na Cisjordânia e Israel resultaram em estudos e interpretações que reescreveram a história do Neolítico. As pesquisas trouxeram à luz a chamada cultura natufiana.
Quem foram os natufianos?
O termo natufiano deriva do nome do riacho Natouf e do vale Wadi em-Natouf, na Cisjordania, onde foram descobertos os primeiros indícios dessa cultura pela arqueóloga britânica Dorothy Garrod, em 1928.
Sítios natufianos foram descobertos em uma área do Sinai ao médio Eufrates, na atual Síria, abrangendo territórios do Líbano, Israel, Palestina e Cisjordânia. A região de Monte Carmelo e da Galiléia parece ser o coração da cultura natufiana.
Os natufianos eram povos caçadores-coletores que se estabeleceram nessa região há 15.000 anos, período do Epipaleolítico – a fase final do Paleolítico e da era geológica do Pleistoceno, isto é, o fim da última glaciação, quando ocorreu uma mudança do clima que abriu espaço ao Holoceno. É, portanto, o período que precede o Neolítico, marcado pelo aumento da temperatura, degelo, mudanças na vegetação e fauna.
O que há de especial na cultura natufiana?
A cultura natufiana (12.500 a 10.200 a.C.) surpreendeu os arqueólogos sob vários aspectos. Eram caçadores-coletores sedentários ou semissedentários, milênios antes da introdução da agricultura. Acredita-se que os natufianos estejam entre as primeiras populações a abandonarem o nomadismo e se estabelecerem em lugares permanentes, e o fizeram não em razão da agricultura.
Construíram casas circulares, enterradas em covas redondas (chamadas “construções de poço”). A terra servia, assim de material isolante. Tinham diâmetro de 3 a 6 metros, sem divisões internas e com uma lareira no centro. Um muro de pedras circundava a casa e sustentava uma estrutura de madeira provavelmente coberta com galhos ou peles de animais.
As casas estavam dispostas em semicírculo.
A economia natufiana baseava-se na caça, especialmente de gazelas, e na coleta de cereais silvestres (aveia, cevada, trigo Triticum monococcum). Consumiam as sementes que eram descascadas e moídas em mós ou pilões para fazer farinha. A farinha era amassada com água e assada, resultando no pão plano, ázimo (sem fermento). Pesquisa recente de 24 migalhas carbonizadas encontradas em uma lareira confirmou que os natufianos inventaram o pão milhares de anos antes do trigo ser cultivado (Revista PNAS, 2018).
Os cereais eram guardados em uma cova comum, o que indica que os natufianos desenvolveram técnicas de armazenamento e preservação de cereais antes mesmo da introdução da agricultura. Acredita-se que esta técnica tenha contribuído para a fixação destas populações.
O sedentarismo dos caçadores-coletores natufianos rendeu-lhes outro pioneirismo: foram os primeiros grupos conhecidos a estabelecer cemitérios, espaços definidos onde enterravam seus mortos ao longo de gerações.
Foram nesses cemitérios, mais especificamente, o de Ain Mallaha e da caverna Hayonim, em Israel, que os arqueólogos encontraram ossos de cães enterrados ao lado dos humanos. Eram cães domesticados (há uma diferença na morfologia do animal domesticado e isso pode ser identificado na análise dos ossos). Não foram os natufianos que domesticaram o cão – isso teria ocorrido numa fase inicial do Paleolítico Superior, entre 40 mil e 20 mil AP (antes do presente). Mas são os enterros de cães com humanos mais antigos que se conhece.
Na cultura natufiana, o único animal doméstico era o cachorro. Era usado como auxiliar na caça, especialmente de animais pequenos e rápidos, como a lebre. Ainda levariam uns milênios para a domesticação de ovelhas, cabras, porcos e vacas.
Os natufianos eram uma sociedade igualitária?
A organização das comunidades nômades é caracterizada por um baixo grau de diferenciação. Com exceção do xamã e/ou do chefe do grupo que, às vezes, ocupam um determinado lugar na organização social, as relações dentro dessas comunidades tendem a ser igualitárias: todos os meios e bens que garantem a sobrevivência pertencem à comunidade, sendo os objetos pessoais limitados ao que cada pessoa pode levar consigo durante o deslocamento.
O fato de todos participarem na procura de alimentos e a impossibilidade de armazenar excedentes alimentares exclui o desenvolvimento de uma estrutura hierárquica e de uma divisão de propriedade. Claramente, a coesão social é o que permitiu a sobrevivência destas comunidades.
A arquitetura indiferenciada das aldeias natufianas reflete este igualitarismo social e econômico. A cova comum de armazenamento de cereais indica a distribuição de alimentos de forma comunitária e sinaliza a ausência de uma privatização, seja da terra ou dos seus produtos. A disposição das casas em semicírculo circundando um espaço central revela que o consumo dessa produção também é feito de forma conjunta.
Esta organização social em que a comunidade tem precedência sobre o indivíduo é ainda confirmada pela ausência de divisão dentro das casas: não há indícios de uma privatização do espaço. Além disso, nenhuma construção indica diferença de status, que possa sugerir qualquer estrutura hierárquica. Assim, a organização da habitação, tanto do ponto de vista político como econômico, aponta um ambiente social não individualizado, igualitário, público e aberto.
Como a cultura natufiana terminou?
Por volta de 10.200 a.C., a maioria dos sítios natufianos foram abandonados: um possível efeito da súbita mudança climática do Dryas Recente que trouxe um resfriamento abrupto. O período frio e seco provocou mudança dos padrões de subsistência dos natufianos, forçando-os a voltar ao nomadismo. A caça continuou a fornecer a maior parte dos recursos.
Os arqueólogos identificaram muitas mudanças na vida dos natufianos ocorridas a partir de então. Gradualmente, as casas elevaram-se acima do solo e adotaram uma planta retangular. O espaço interior das casas foi dividido e estruturado com bancos, muros baixos e silos. As aldeias aumentaram consideravelmente de tamanho.
A coleta de cereais silvestre continuou, mas os arqueobotânicos identificaram a presença de ervas daninhas misturadas às sementes de cereais silvestres. Isso sugere que os natufianos não estavam apenas coletando cereais, mas manipulando o solo para as primeiras tentativas de cultivo. Seria, então, uma fase de protoagricultura. Foram tentativas de muitos fracassos. Os cereais pesquisados não apresentam transformações morfológicas, isto é, continuavam selvagens. Não foi antes de 8.500 a.C. que surgiram os primeiros vestígios de cereais morfologicamente domesticados (cultivados).
Mas a agricultura não pôs fim imediatamente à coleta e à caça, estas se mantiveram por muito tempo. Até cerca de 6.000 a.C., a agricultura representava menos de 50% dos recursos alimentares de uma comunidade agrícola.
Fonte
- ARRANZ-OTAEGUI, A; CARRETERO, L. G., et alli. Archaeobotanical evidence reveals the origins of bread 14.400 years ago in northeastern Jordan. PNAS, 16 julho 2018.
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