Entre as múmias do Museu Nacional da Civilização Egípcia, chama a atenção a do faraó Sekenenré por ter sua cabeça e mãos visivelmente danificadas. O mal estado de conservação de sua múmia e os ferimentos incomuns mostram que o faraó teve uma morte violenta e que sua mumificação foi feita com o corpo já em decomposição. Isso já havia sido observado pelos egiptólogos James Harris e Kent Weeks que fizeram um exame forense na múmia, na década de 1960.
Recentemente, os pesquisadores egípcios Zahi Hawass e Sahar Selim realizaram um estudo mais apurado da múmia com base em imagens de tomografia computadorizada bidimensionais e tridimensionais. Os exames revelaram novos detalhes sobre os ferimentos que levaram Sekenenre à morte aos quarenta anos de idade.
Quem foi Sekenenré Taá
Sekenenré Taá ou Seqenenre Tao, conhecido como “o Bravo”, governou o sul do Egito entre 1560-1555 a.C., durante a 17ª dinastia. Nessa época, o baixo e o médio Egito eram controlados pelos hicsos, povo da Ásia que governou por dois séculos, no Segundo Período Intermediário. Os invasores tinham sua capital em Avaris, atual cidade de Santo El Agar.
Sekenenré viveu exilado em Tebas, no Alto Egito (sul do país). Estava cercado pelos hicsos ao norte e pelo reino kuschita (Kerma) dos núbios aos sul. Teve um governo curto que terminou com seu assassinato. Mas Sekenenré foi um faraó importante, aquele que iniciou a libertação do Egito para a expulsão dos hicsos.
A lenda dos hipopótamos sagrados
Conta-se que o pretexto da guerra contra os invasores foi uma exigência do rei hicso Apófis: ele mandou que Sekenenré matasse os hipopótamos sagrados que viviam no lago de Tebas. Disse que o ronco dos animais não o deixavam dormir, embora ele vivesse em Avaris, a quilômetros de distância de Tebas.
A provocação motivou Sekenenré a abrir guerra contra os hicsos. Ele teve algumas vitórias mas acabou sendo vencido e morto.
Os ferimentos e a morte de Sekenenré Taá
Os especialistas Salima Ikram e Aidan Dodson examinaram a ferida atrás da orelha feita com uma faca ou espada e observaram que ela apresentava sinais que ter sido tratada e curada. Portanto, não foi essa ferida que levou o faraó à morte. Os demais ferimentos foram posteriores e não tiveram tratamento. Pode-se deduzir, então, que o faraó foi ferido em batalha e levado para os médicos e depois foi vítima de um assassinato durante a fase de recuperação.
As tomografias computadorizadas da múmia revelam que Sekenenré sofreu mais feridas do que se sabia anteriormente. Ele tem um corte de 7 cm na testa, que é visível apesar do embalsamamento habilidoso. Ele teria sido causado por um golpe de machado ou espada vindo de cima.
Esse ferimento por si só poderia ter sido fatal, mas o inimigo não parou por aí: outro golpe acima do olho direito feito com machado, potencialmente fatal, causou um corte de 3,2 cm de comprimento. Mais cortes no nariz, olho direito e bochecha direita vieram da direita e de cima e podem ter sido feitos com um cabo de machado ou um porrete.
Alguém na frente do rei parecia ter balançado uma espada ou um machado na bochecha esquerda do faraó, deixando outro ferimento. Da esquerda, provavelmente uma lança havia penetrado na base de seu crânio, fazendo um ferimento de 3,5 cm.
Pelo menos cinco agressores cercaram Sekenenré de diferentes ângulos, cada um empunhando uma arma diferente. Os golpes foram infligidos enquanto ele estava deitado ou caído no chão.
Os ferimentos foram causados por armas usadas pelos hicsos conforme análise feita a partir de armas hicsas preservadas no Museu Egípcio do Cairo incluindo um machado, uma lança e várias adagas cujas lâminas mostraram compatibilidade com os ferimentos em Sekenenré.
“Em uma execução normal de um prisioneiro amarrado, pode-se presumir que apenas um agressor ataca, possivelmente de ângulos diferentes, mas não com armas diferentes. A morte de Seqenenre foi mais uma execução cerimonial”, explica Sahar Saleem, uma dos autoras do recente estudo.
O corpo despedaçado do faraó foi transportado para Tebas onde foi mumificado e enterrado na necrópole real da época, em Dra Abu el-Naga.
O estado do corpo da múmia
Em contraste com a cabeça, o corpo do faraó parece não ter sofrido nenhum ferimento. Não há feridas em seus braços ou mãos, o que sugere que ele não foi capaz de se defender.
Os braços do rei ainda estavam em uma posição rígida. Aparentemente, nenhuma tentativa foi feita para esticá-los antes da mumificação. A deformação dos braços indica que o faraó teve as mãos amarradas nas costas, o que o impediu de repelir o ataque feroz em seu rosto.
Os embalsamadores usaram um método sofisticado para esconder as lesões da cabeça usando um material de embalsamento que funcionava de forma semelhante aos enchimentos usados na cirurgia plástica moderna. Conseguiram, assim, colocar o rosto esmagado do faraó no lugar. Isso sugere que a mumificação ocorreu em um laboratório de mumificação real e não em um local mal equipado, como interpretado anteriormente.
O cérebro não foi removido nem adicionado linho dentro do crânio ou dos olhos, práticas normais de embalsamamento na época. O cérebro ressecado do faraó estava preso do lado esquerdo de seu crânio sugerindo que ele foi deitado de lado após sua morte ou seu corpo ficou nessa posição por um longo período.
O coração, contudo, foi removido na múmia, o que é incomum no processo de mumificação. Os antigos egípcios consideravam o coração a sede da personalidade e da mente e geralmente ele permanecia no corpo, pois tinha um significado mágico nas crenças fúnebres.
Os ossos foram deslocados e mantidos juntos somente pela pele externa.
Os embalsamadores estavam com muita pressa ou intencionalmente queriam evitar a vida do faraó após a morte?
Os egiptólogos que examinaram a múmia na década de 1960 disseram que “um cheiro fétido e oleoso encheu a sala no momento em que foi aberta a caixa em que o corpo estava exposto”. A múmia de Sekenenré é a mais mal preservada de todas as múmias reais mantidas no museu.
O sacrifício de Sekenenré, porém, não foi em vão, pois seu filho mais novo, o faraó Ahmose I, conseguiu capturar a cidade de Avaris, a sede dos hicsos, o povo que matou seu pai. Ele derrotou os hicsos e os perseguiu até o que hoje é conhecido como Gaza (Palestina) conseguindo unificar o Egito. O reinado de Ahmose lançou as bases para o Novo Império, sob o qual o poder egípcio atingiu seu auge entre os séculos XVI e XI a.C.
Fonte
- SALLEEM, Sahar N.; HAWASS, Zahi. “Computed tomography study of the mummy of King Seqenenre Taa II: new insights into his violent death”. Frontiers in Medicine. 17 fev 2021.