Uma obra escrita para crianças na década de 1950 mostrando personagens em situações do cotidiano – em casa, no parque de diversões, na escola, na rua, no trabalho etc – facilmente seria desqualificada, nos dias de hoje, por reproduzir valores, preconceitos e estereótipos. A mãe na cozinha avisa o pai que o almoço está pronto; no parque infantil, meninas brincam de roda e meninos de bolinha de gude – eram ilustrações comuns em livros infantis de algumas décadas atrás. Historinhas em quadrinhos também transmitiam padrões consolidados e socialmente aceitos. Mas mesmo os clássicos podem acompanhar as mudanças nas relações de gênero como aconteceu com a obra de Richard Scarry.
O americano Richard Scarry (1919-1994) foi autor e ilustrador de mais de 300 livros infantis. Seu primeiro trabalho foi publicado em 1950 e, desde então, os livros conquistaram crianças de todo mundo que adoravam seus personagens em forma de animais com características humanas. Mais de 100 milhões de exemplares foram vendidos em dezenas de línguas.
Em 1976 a empresa Playskool produziu uma série de brinquedos com os personagens de Scarry feitos de plástico acompanhados de cenários de papelão para a criança criar sua própria história. Nos anos 1980 e 1990, a obra de Scarry foi convertida em desenhos animados para televisão e disponíveis em VHC e DVD que também se tornaram muito populares.
Scarry continuou escrevendo e ilustrando seus livros infantis até seu falecimento ocorrido em 1994. Ao longo dessas quatro décadas, contudo, muita coisa mudou nas relações étnicas e nos papéis de gênero. Scarry acompanhou essas mudanças e fez alterações em sua obra eliminando tudo que pudesse parecer ofensivo, preconceituoso ou estereotipado por questões de gênero, étnicas ou religiosas. Em alguns casos, as alterações exigiram a remoção de seções inteiras.
As alterações feitas nos desenhos e nos textos revelam como padrões sociais transformaram-se ao longo da segunda metade do século XX. O autor mesmo tendo uma obra que se consolidou já na década de 1950, mostrou sensibilidade em responder às mudanças que ocorreram e manteve uma produção atualizada.
Veja as mudanças operadas por Scarry nas 5 imagens abaixo extraídas de seu livro “Best Word Book Ever”. Observe que, muitas vezes, bastam pequenas mudanças para dar outro sentido e outra mensagem às crianças. São exemplos que inspiram como abordar papéis de gênero e relações étnicas na educação infantil.
Mudanças na capa de “Best Word Book Ever”
A capa do “Best Word Book Ever” na edição 1963 mostrava uma coelha no fogão, situação perfeitamente normal para os padrões da época. As revistas femininas aconselhavam, então, as jovens a serem boas esposas e donas de casa. No final daquela década, porém, o mundo passou por grandes e decisivas transformações que afetaram as relações sociais e familiares. Isso se refletiu nas ilustrações do livro infantil: a edição de 1990 trazia na capa um coelho e uma coelha trabalhando na cozinha.
Outras mudanças foram feitas: o policial urso da edição de 1963 foi substituído por uma policial ursa em 1990. A nova edição recebeu também uma coelha trabalhando na terra junto como coelho, e a mamãe-gata foi substituída pelo papai-gato levando o bebê para passear.
A palavra “mailman” para carteiro, tornou-se “letter carrier” – um termo de gênero neutro.
Mudanças no papel da mulher
A figura da mulher como responsável pela alimentação da família desapareceu das ilustrações infantis de Richard Scarry. As edições posteriores trazem um coelho e uma coelha na mesma função.
Brincadeiras no parque
As brincadeiras no parque ficaram mais diversificadas na edição de 1990. Na roda, há um gatinho junto com as gatinhas; jogar bolinha de gude não é mais brincadeira só de meninos; no pega-pega é uma gatinha que está correndo atrás do gatinho.
Papai Urso
A imagem do Papai Urso é a mesma nas duas edições, porém mudou o comando e a mensagem subliminar. Na edição de 1963, a frase “Ele vem prontamente quando é chamado para o café da manhã” deixa entender que alguém, certamente a mulher, preparou a refeição para o homem e ele gentilmente atende o chamado para ir à mesa. A edição de 1990, diz “Ele vai à cozinha para tomar seu café da manhã”, não deixa nada subentendido e dá ao homem maior autonomia.
Consultório do dentista
O consultório do dentista também recebeu mudanças. O ameaçador rinoceronte foi substituído por uma tranquila doutora ursa mostrando a presença da mulher na atividade profissional de formação universitária. A atendente, antes uma simples auxiliar, recebeu um papel mais ativo e significativo: ela explica ao gatinho como escovar os dentes.
“A higienista dental não tem cáries nos dentes. Escove bem os dentes e você não terá também”, diz a edição de 1993.
“A dentista procura cáries e a higienista dental explica como cuidar dos dentes”, na edição de 1990.
Conclusão
Os livros de Richard Scarry mudaram ao longo de suas várias edições, adaptando-os conforme os valores sociais mudavam. Seu Best Word Book Ever , que apareceu pela primeira vez em 1963, foi recebendo alterações nos anos seguintes para remover material que poderia ser percebido como ofensivo devido a conceitos errôneos de gênero, raça ou religião. Personagens em trajes estereotipados de cowboy ou de índio foram removidos ou receberam roupas indefinidas.
Elementos morais e religiosos e representações de papéis de gênero foram alterados ou removidos. Nas edições mais recentes, surgem mulheres cientistas, expressão “aeromoça bonita” foi alterada para “comissária de bordo”, personagens masculinos em atividades tradicionalmente masculinas, como dirigir um trator, foram transformados em personagens femininos pela adição de fitas no cabelo ou flores.
Suas obras ainda são publicadas e continuam com grande aceitação no mercado.
Fonte
- The Best Word Book ever, 1963 and 1991 Flickr.
- WADE, Lisa. “Social Change and Richard Scarry’s Best Word Book Ever”. The Society Pages, 22 set 2010.
Joelza, Professora É CÔMICO, no ensinamento de época A MULHER esta taxada como serviçal de FORNO E FOGÃO,…
Eram padrões de uma época que não é tão distante.
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[…] Pequenas mudanças nos livros infantis alteram os papéis de gênero Os livros infantis constituem uma fonte histórica para conhecer costumes e mentalidade de uma época. Suas imagens e textos dizem respeito a valores e padrões sociais que marcaram uma geração e que podem ser alterados para se adequarem às novas gerações. O artigo mostra como mudanças sutis em um livro infantil operaram transformações significativas nas relações de gênero. […]
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