A homossexualidade era severamente condenada pela Igreja. A Inquisição portuguesa, instituída por bula papal em 1536, tinha jurisdição especial na condenação e perseguição aos “sodomitas”, como eram chamados os homossexuais e todos aqueles que “desperdiçavam” o sêmen. Isso, porém, não impediu que reis, príncipes e nobres da alta e baixa aristocracia levassem uma vida escandalosa aos olhos da época. Mas também não foram denunciados por isso. Uma das razões, é que um monarca homossexual ou bissexual podia ser uma oportunidade. Em uma sociedade de corte, criar vínculos com figuras do alto escalão era a principal estratégia de ascensão. Contar com o afeto do rei era como ganhar na loteria. Alguns soberanos adotaram essa política de promoção sem disfarçar o favorecimento a cortesãos jovens.
Conheça cinco figuras importantes da corte portuguesa cujos nomes célebres ocultam uma vida pessoal nem sempre exitosa.
CONTEÚDO
- Dom Pedro I (1320-1367)
- Infante Dom Henrique (1394-1460)
- Dom Sebastião (1554-1578)
- Dom Afonso VI (1643-1683)
- Dom João V (1689-1750)
- Sodomia, homossexualismo e homossexualidade
1. Dom Pedro I (1320-1367)
D. Pedro I (1320-1367) ficou conhecido pela paixão por Inês de Castro, a mulher que coroou depois de morta. O monarca, contudo, era bissexual e teve outro amor: seu escudeiro Afonso Madeira. A história acabaria por não correr muito bem para o escudeiro.
Afonso Madeira teria sido apanhado na cama de Catarina Tosse, mulher casada com Lourenço Gonçalves, o corregedor da corte. D. Pedro I, conhecido pelo apelido de “o Cruel”, ficou furioso e mandou castrar Afonso Madeira. Segundo as crónicas oficiais, a castração era uma punição pois o rei não admitia adultérios na sua corte. O cronista Fernão Lopes, contudo, deixa subentendido outro motivo:
“E como quer que o el-rei [D.Pedro I] muito amasse [o escudeiro Afonso Madeira], mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda bem-querença, mandou-o tomar dentro em sua câmara, e mandou-lhe cortar aquele membro que os homens em mór preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse cortado.” (Fernão Lopes, Crônica de el-rei D. Pedro I, capítulo VIII.)
Tamanha severidade na punição de adultério alimentou os boatos da época que afirmavam ser, na realidade, um ataque de ciúmes do rei por seu amante e fiel escudeiro ter se envolvido com uma mulher.
2. Infante Dom Henrique (1394-1460)
O infante D.Henrique (1394-1460), “o Navegador” e herói dos Descobrimentos, passou à história como um príncipe casto, já que nunca se casou e nunca teve qualquer ligação com mulheres.
Segundo o historiador Fernando Bruquetas de Castro, a homossexualidade do infante ficou claro quando ele perdeu um amigo na campanha em Ceuta, em 1414. D. Henrique fez um luto de três meses e chorou muito. Tanto que seu pai, o rei D. João I, chegou a pedir-lhe que se contivesse. O comportamento incomum levou até seu irmão, o futuro rei D. Duarte, a dizer-lhe para que “não desse mais prazer aos homens para além do que se deve fazer de forma virtuosa”.
Em Sagres, D. Henrique estava sempre rodeado de navegadores jovens que lhe traziam como prenda escravos negros. O mais estranho, contudo, é o desaparecimento do seu cronista, seu contemporâneo, que escreveu a sua história. “Por que desapareceu? Porque estava lá tudo e não queriam que a Igreja soubesse”, afirma Brusqueta de Castro.
3. Dom Sebastião (1554-1578)
Sebastião (1554-1578) teria contraído gonorreia aos 10 ou 11 anos e a doença provocou-lhe uma “disfuncionalidade”, conforme registros médicos da época, isto é, impotência sexual. Seria por isso que o Rei evitou o casamento e as mulheres. Adiou sucessivamente os possíveis casamentos que lhe foram propostos ao longo da vida.
No entanto, há quem atribua a falta de descendência do rei não ao fato de ter ficado impotente, mas por ser homossexual. O cronista português Bernardo da Cruz, relata em sua Crônica d’el rei D. Sebastião, que um dia, em plena caçada no Alentejo, os nobres que acompanhavam o rei ouviram barulho e foram ver o que se passava. Encontraram, então, no meio do bosque, D. Sebastião abraçado a um escravo negro, que tinha fugido de uma propriedade na noite anterior. Ouviram da boca do monarca a justificação de que pensava ter agarrado um javali, porque já estava escuro.
Como D. Sebastião ele era caçador e sabia distinguir um javali de uma pessoa, fica-se a dúvida, se ele de fato mentiu ou se referiu a um escravo como um animal.
D. Sebastião desapareceu durante a batalha de Alcácer-Quibir, na África, em 1578. Tinha, então, 24 anos de idade. Não deixou herdeiros e seu desaparecimento e suposta morte arrastaram Portugal para uma crise dinástica.
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4. Dom Afonso VI (1643-1683)
D. Afonso VI (1643-1683) tinha fama de ser um jovem rebelde e arruaceiro, e um rei fraco. Apesar da paralisia parcial do lado direito do corpo (sequela de uma febre hemiplégica, talvez meningoencefalite), do excesso de peso e da bulimia, gostava de sair à noite com um grupo de amigos de reputação duvidosa.
O seu companheiro favorito de farra era o comerciante genovês Antônio Conti que tinha uma loja de cintos, meias e adornos femininos. Segundo o historiador português Joaquim Serrão, este astuto genovês soube insinuar-se nas boas graças do monarca, “aplaudindo os seus protegidos e ofertando-lhe bugigangas condizentes com o seu pouco apurado gosto, sempre que o rei descia ao pátio para conversar com ele. Conti tratou de lhe apresentar o seu irmão e também outros rapazes, incluindo negros, lacaios, mouros e outros de ínfima estirpe”.
Em pouco tempo, Conti passou a frequentar o Paço, com acesso direto ao quarto real. Tornou-se o moço da câmara do rei, estando presente no ritual de vestir e despir e ainda sendo o responsável pelo guarda-roupa real. O rei tornou-o fidalgo e lhe concedeu o hábito da ordem de Cristo.
São conhecidas as aventuras e arruaças do rei e seu amigo Conti com mulheres incluindo as freiras do Convento de São Dinis em Odivelas. Contudo, D. Afonso VI, devido à sua hemiplegia, dificilmente conseguiria concretizar o ato sexual por não ter ereção
Em 1666, D. Afonso VI casou com D. Maria Francisca Isabel de Saboia, mas pouco tempo depois a rainha pedia a anulação do casamento por este não ter sido consumado, ou seja, não tiveram relações que permitissem assegurar a sucessão ao trono. Parecem existir documentos suficientes que atestam a incapacidade do monarca em ter relações sexuais.
Farta do comportamento inadequado do filho, D. Luísa de Gusmão mandou prender e deportar Conti para o Brasil. O rei passou a levar um estilo de vida mais discreto, mas nunca deixou de receber rapazes.
5. Dom João V (1689-1750)
D. João V (1689-1750) teve os cognomes de “o Magnânimo” e “o Rei-Sol Português”. Foi durante o seu reinado que ocorreu o auge da mineração de ouro e diamantes do Brasil. O rei ficou conhecido, também, como “o Freirático” por sua predileção por freiras.
Tudo se passaria no Convento de São Dinis em Odivelas, o mesmo convento que Afonso VI frequentava. No tempo de D. João V, este convento criou má fama, por causa dos escândalos das freiras com os fidalgos seus amantes e com o próprio rei. Segundo os boato da época, D. João V era tão religioso, que só buscava amantes entre as freiras.
D. João V era assíduo frequentador do convento amando muitas freiras, de quem teve vários filhos, os chamados “meninos de Palhavã”, como eram chamados os bastardos de D. João V, reconhecidos pelo monarca em documento de 1742.
A mais célebre amante do rei foi madre Paula de Odivelas. Bela e jovem (teria 18 anos quando o rei a conheceu), madre Paula tornou-se a favorita e logo foi nomeada madre superiora do convento e recebendo todas as atenções do monarca. Para ela, D. João V mandou construir aposentos luxuosos no convento.
A generosidade real era extensiva à família da amante. O pai de Paula foi armado cavaleiro e recebeu o hábito da Ordem de Cristo. Paula e todos seus herdeiros e sucessores receberam vultosa pensão paga pelo tesouro real (alimentado pelo ouro do Brasil). O rei mandou construir para D. José de Bragança, seu filho com a freira, um palacete em Lisboa onde hoje está instalada a Embaixada de Espanha.
Sodomia, homossexualismo e homossexualidade
A sodomia, termo bíblico para chamar o sexo entre duas pessoas do mesmo sexo, foi condenada pela Igreja desde o início do cristianismo. As Ordenações Afonsinas, a primeira consolidação de leis de Portugal, feita no século XV, declararam que a sodomia era o mais torpe, sujo e desonesto pecado ante Deus e o mundo, impondo ao infrator que fosse queimado até virar pó, para que não restasse memória de seu corpo e sepultura.
A partir do século XVI, a Inquisição encarregou-se de investigar, julgar e condenar à fogueira os sodomitas.
Esta visão moralista da sexualidade manteve-se até finais do século XIX, quando a homossexualidade passou a ser vista como doença – daí ser chamada de homossexualismo, mas ainda assim condenava pela sociedade.
O Império do Brasil foi uma das primeiras nações das Américas e uma das primeiras do mundo a revogar a lei de sodomia vigente, herdada de Portugal, em 1830, durante o reinado de D. Pedro I, quando foi promulgado o Código Penal do Império.
Em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).
Em 1994, a CID substituiu o termo “homossexualismo” (ainda hoje utilizado) por “homossexualidade”, pois o sufixo “ismo” indica doença, enquanto “dade” relaciona-se ao modo de ser (comportamento). Uma alteração que parece corresponder à mudança na forma como determinadas sociedades passaram a encarar a relação homossexual, entendendo-a como decisão individual.
Contudo, em 70 países a homossexualidade ainda é criminalizada, com casos de prisão e até de pena de morte.
Fonte
- CASTRO, Fernando Bruquetas de. Reis que amaram como rainhas. Lisboa: Esfera dos Livros, 2010.
- SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Lisboa: Editorial Verbo.
- CABAÑAS, Miguel. Reyes sodomitas: Monarcas y Favoritos en las Cortes del Renacimiento y Barroco. Editora Egales, 2012.