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Fenícios no Brasil e outros mitos de cidades perdidas

20 de abril de 2017

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Um tema recorrente, quando se fala da chegada de Pedro Álvares Cabral, é mencionar a suposta a presença pioneira dos fenícios em terras tupiniquins. Não faltam livros a respeito e muitos com fotografias servindo de provas visuais incontestáveis. Mencionam-se também os vikings, mas os fenícios são mais surpreendentes dada a antiguidade desse povo.

Citam-se, ainda, outros navegantes que, há mais de dois mil anos, teriam cruzado o Atlântico e atingido as costas sul-americanas: cartagineses (descendentes dos fenícios), gregos, troianos, saduceus e essênios.

Um fato curioso é constatar que foi em meio a esse emaranhado de fantasias que nasceu a pesquisa arqueológica no Brasil. Na mesma época em que o dinamarquês Peter Lund (1801-1880), considerado Pai da Arqueologia e Paleontologia do Brasil, pesquisava fósseis de animais extintos em Lagoa Santa, Minas Gerais, um tal de Onfroy de Thoron escrevia, em 1869, sobre as viagens do rei Salomão, da Judeia, ao rio Amazonas nos anos de 993 a 960 a.C.

A origem desses relatos fantasiosos é muito antiga, remontando a um tempo anterior às grandes navegações. É o caso do mito de Atlântida, contado por Platão, da ilha Tule greco-romana, da ilha Brazil oriunda do imaginário celta, e da lenda das Sete Cidades. As duas últimas alimentaram especulações curiosas envolvendo fenícios, hebreus e “atlântidas” que teriam se refugiado no Brasil.

Olha Thule ou Tile

A mítica Ilha Thule ou Tile cercada por monstros, uma baleia e uma orca, Carta marina de Olaus Magnus, de 1537.

Em busca de Sete Cidades e da Ilha Brazil

A lenda das Sete Cidades foi uma das lendas mais divulgadas na Idade Média. Ela surgiu na Península Ibérica, por volta do século VIII à época da expansão muçulmana. Conta que o arcebispo de Porto Cale (atual cidade do Porto) fugindo dos invasores mouros embarcou rumo ao oeste chegando a uma ilha desconhecida no além-mar, onde fundou uma civilização chamada Sete Cidades. Em outra versão, foi D. Rodrigo, o último rei visigodo, o autor de tal feito.

A lenda popularizou-se e a ilha começou a aparecer nos mapas de navegação em algum ponto do oceano Atlântico como “Insula Septem Civitatum“, que significaria Ilha das Sete Tribos ou Ilha dos Sete Povos. Os mapas traziam, ainda outras ilhas míticas que também povoavam o imaginário europeu: a ilha de Atlântida, mencionada por Platão, a Tule greco-romana e ilha Hy Brazil.

A mítica Hy Brazil é uma ilha fantasma que surgia em determinadas circunstâncias para logo ser encoberta e ficar invisível aos olhos humanos. A ilha aparece na cartografia náutica desde o século XIII, ora localizada perto da Irlanda ora no meio do oceano Atlântico. Recebeu diversos nomes, variantes do original: Hy Bressail, Hy Breasil, Hy Breazil, Bracil, Bersil, Brazir, Bracir, Brasil.  A origem do nome é celta e significa “ilha afortunada”; mas, como a palavra também está associada à cor vermelha, o nome da ilha também pode significar “descendentes do vermelho” ou “os do vermelho”.

Ilha Brasil

A lendária Ilha Brasil (no canto, à direita) mostrada em um mapa da Irlanda, de Abraham Ortelius, 1572.

Com o advento das navegações oceânicas e dos descobrimentos multiplicaram-se os relatos de registros visuais das lendárias ilhas e as expedições marítimas para alcançá-las. Foi o caso da expedição do flamengo Ferdinand van Olm (Fernando de Ulmo ou Fernão Dulmo) que, em 1486, teve autorização do rei D. João II, de Portugal, para achar o reino cristão perdido das Sete Cidades. O rei concedeu-lhe, por carta de doação, a capitania da ilha das Sete Cidades e de quaisquer terras que descobrisse a oeste dos Açores. Fernão Dulmo, contudo, nada encontrou.

A ilha Hy Brazil continuou sendo procurada mesmo após a consagração do nome Brasil para o território descoberto por Pedro Alvares Cabral. A ilha mítica permaneceu na cartografia como, por exemplo, no mapa de Fernão Vaz Dourado, de 1568.

A “inscrição fenícia” de Pouso Alto

No dia 13 de setembro de 1872, o marquês de Sapucaí, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, recebeu uma cópia de inscrições gravadas em uma pedra encontrada em “Pouso Alto”, no vale do Paraíba, por Joaquim Alves da Costa. Elas despertaram grande interesse de Ladislau de Souza Mello Netto.

Ladislau Netto era diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro e doutor em Ciências Naturais pela Sorbonne. Enviou a transcrição das inscrições para Ernest Renan, especialista em línguas orientais e que realizara escavações na Fenícia. O francês afirmou serem inscrições fenícias, datadas de cerca de 3000 anos.

Inscrições de Pouso Alto

Inscrições de Pouso Alto ou da Pedra da Paraíba, ditas como fenícias. Trata-se, porém, de uma transcrição, não se conhece o original e há dúvidas sobre sua origem e descobridor. É considerada, hoje, uma fraude.

Mas logo revelou ser uma grande mentira, a começar pelo local do achado e seu descobridor: o município de Pouso Alto e Joaquim Alves da Costa nunca existiram. Alguém enviou a transcrição de um texto fenício qualquer, dizendo, de má-fé, ter sido encontrado em rochas às margens do rio Paraíba. O próprio Ladislau Netto reconheceu ter sido vítima de uma fraude e o declarou em um artigo publicado em 8 de junho de 1875 no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro.

Ruínas de cidades fenícias ou formações geológicas?

Com o tempo, a falsa Pedra de Pouso Alto ganhou outra localização geográfica. A “Pedra da Paraíba”, como também era chamada (em referência ao rio Paraíba do Sul, onde, supostamente, foi encontrada) acabou sendo identificada com a enigmática e conhecida Itacoatiara de Ingá, na Paraíba.

As formações geológicas e as pinturas rupestres do município de Piracuruca, no Piauí (atual Parque Nacional de Sete Cidades) também atiçaram a imaginação de aventureiros alimentando especulações de todo tipo. As primeiras notícias que se tem registradas sobre aquele lugar foram publicadas na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1887 por Tristão de Alencar Araripe, com o título “Cidades petrificadas e inscrições lapidares no Brasil”.

Formações geológicas do Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí.

O austríaco Ludwig Schwennhagen, professor de História e Filologia, não teve dúvidas: ali estavam as ruínas da fabulosa Sete Cidades, sede do império colonial fenício de além-mar. Schwennhagen percorreu, nas décadas de 1910 e 1920, o Piauí, o Ceará, o Rio Grande do Norte, a Paraíba e Pernambuco – onde os sertanejos o conheciam como “Doutor Ludovico Chovenágua”, pela dificuldade de pronunciar seu nome austríaco. Viu nas pinturas rupestres inscrições fenícias e apontou semelhanças entre as línguas indígenas do Brasil e as antigas línguas semíticas.

Baseado nessas “provas”, Schwennhagen escreveu o volumoso livro “Antiga História do Brasil de 1100 a.C. a 1500 d.C.”, publicado em Teresina (PI), em 1928. Nele afirma que o litoral do Nordeste, entre o Maranhão e a Bahia, foi ocupado por fenícios e troianos que ali fundaram várias cidades, das quais a mais importante seria Tutóia, no delta do Parnaíba.

Fenícios

Pintura rupestre do Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí, que foram interpretadas como inscrições fenícias.

Pintura rupestre - Fenícios

Pintura rupestre do Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí, interpretadas como inscrições fenícias.

Outras buscas: a bíblica Ophir, a cidade “Z” e a Pedra da Gávea

O cônego cearense Raymundo Ulysses de Pennafort trouxe mais argumentos fantasiosos: em seu livro “Brasil Pré-Histórico, memorial encyclographico” (1900, Fortaleza), localizou na Amazônia, o País de Ophir e de Parvaim – ambos mencionados na Bíblia como locais de onde se extraía ouro, prata e madeira para o rei Salomão. O livro faz um esforço criativo para demonstrar a presença de fenícios, cartagineses, hebreus, gregos, troianos, saduceus e essênios no Brasil

A Amazônia também atraiu a atenção do explorador britânico Percy Harrison Fawcett que, em 1906, mapeou a região para a Royal Geographical Society. Entre 1906 e 1924, Fawcett realizou sete expedições em busca de uma cidade perdida que ele chamava de “Z”. Baseado em lendas antigas e registros históricos, ele estava convencido de que essa cidade existia em algum ponto da Serra do Roncador, no Mato Grosso. Ele desapareceu na região do Alto Xingu, em 1925.

Por essa época, o estudioso de Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, debruçava-se sobre as supostas inscrições da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro e da Pedra Lavrada (Jardim do Seridó, RN). Com conhecimentos de diversas línguas, entre as quais, o hebraico, o sânscrito e o fenício, Silva Ramos interpretou as primeiras como sendo fenícias e as segundas, gregas.

Marcas na Pedra da Gávea, Rio de Janeiro que, segundo Silva Ramos, seriam inscrições fenícias. Para os especialistas, são marcas provocadas pela erosão.

O mito insiste em renascer

Com o avanço dos estudos e a sofisticação das técnicas de pesquisa, as histórias fantasiosas foram caindo no descrédito. A fantástica história da vinda dos fenícios ao Brasil é, hoje,  totalmente desacreditada pelos cientistas. Supostas inscrições revelaram ser falsificações ou marcas causadas pela erosão, como é o caso da Pedra da Gávea.

Ainda assim, o mito dos fenícios no Brasil renasce periodicamente, como aconteceu na década de 1960 com os orientalistas Cyrus H. Gordon, da Universidade de Brandeis, em Massachusetts, e Alb Van Den Branden, da Universidade St. Espirit Kaslik, no Líbano.

Gordon afirmou que judeus, fenícios e outros atravessaram o Atlântico na Antiguidade, chegando tanto na América do Norte quanto na América do Sul. Seu argumento baseou-se em seu próprio trabalho sobre a inscrição de Bat Creek encontrada no Tennessee em 1889, e na transcrição da suposta inscrição da Pedra da Paraíba, do Brasil. Traduziu essa última afirmando que era fenícia genuína. Mas, como dito anteriormente, trata-se de uma cópia, desconhece-se o original e seu local de origem, portanto, como afirmar sua autenticidade? Nem mesmo a inscrição de Bat Creek resistiu à uma investigação mais cuidadosa: em 2004, descobriu-se que a inscrição fora copiada de um livro maçônico de 1870. Gordon, contudo, não chegou a saber disso, pois falecera anos antes.

Inscrição de "Bat Creek", Estados Unidos.

Inscrição de “Bat Creek”, encontrada no Tennessee, Estados Unidos, e que Cyrus Gordon afirmou ser fenícia. Em 2004, revelou ser uma falsificação.

Heranças míticas

O que restou de todos esses relatos e buscas está nos nomes de lugares. O arquipélago de Açores tem um vulcão, um lago e uma freguesia denominados Sete Cidades. Açores tem, ainda, o Monte Brasil e uma das ilhas do arquipélago, a Ilha da Terceira, era denominada Ilha do Brasil pelos cartógrafos genoveses e catalães no século XIV.

Nos Açores, sobrevive até nossos dias a lenda da ilha encantada que é avistada apenas por volta do dia de São João (24 de Junho). Na realidade, são comuns, nesse período, os nevoeiros que levam ao fechamento de aeroportos por dias seguidos. As nuvens a emergir no horizonte tomam a forma de uma ilha que os moradores dizem ser Sete Cidades.

O Parque Nacional de Sete Cidades, na região norte do Piauí, é uma alusão direta à lenda medieval e às supostas ruínas da sede do império fenício.

A lembrança da lendária Hy Brazil é ainda conservada na “Brazil Rock”, um rochedo na extremidade mais oeste da Irlanda. Os pescadores das ilhas Aran, na costa ocidental irlandesa, ainda hoje acreditam que a ilha Brazil se torna visível de sete em sete anos.

Finalmente, o nome do Brasil é, indiscutivelmente, herdeiro da mitológica ilha. Para a maioria dos historiadores atuais, é inválida a teoria que a origem do vocábulo estaria ligada ao vermelho do pau-brasil ou ibirapitanga (Caesalpinia echinata).

Parque Nacional de Sete Cidades, Piaui

As imponentes rochas do Parque Nacional de Sete Cidades, Piauí, atiçaram a imaginação de aventureiros e estudiosos que nelas viram as ruínas da lendária Sete Cidades fundada pelos fenícios.

Pedra da Gávea

Muitos acreditam que o “rosto humano” da Pedra da Gávea e as marcas na outra face foram feitos pelos fenícios. São, na verdade, resultado da erosão.

Fonte

  • LOPES, Maria Margareth. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Ed. Hucitec, 1997. pag. 206
  • MONTEIRO, Fernando. “Seres, Sóis e Sinais”. Revista História Viva, edição 17, São Paulo: Duetto, 2005.
  • BARROS, Eneas. A tese de Ludwig Schwennhagen. Piauí.com.br.
  • Martins, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1996.
  • LANGER, Johnni. Dinos, vikings e fenícios: as fraudes arqueológicas das Américas. Neve, 4 julho 2023.

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Marcelo Ribeiro Dos Santos
Marcelo Ribeiro Dos Santos
6 anos atrás

Mais uma vez ,os adjetivos vem antes dos argumentos: relatos fantasiosos, lendas, Ludovico Chovenágua. Todo um esforço para desqualificar trabalhos sérios de pesquisadores mais antigos e a tremenda arrogância de quem se acha detentor de verdades por possuir “técnicas mais sofisticadas” e estar alinhado com o que “todos os cientistas concordam”. Qual o intuito disso? Um historiador que se preze levaria em conta todas as evidências disponíveis para emitir sua opinião, mas se logo de cara já diz que o assunto se trata de mito e lenda (que aliás tem muito peso histórico!), demonstra apenas a arrogância e superficialidade dos… Leia mais »

Joelza Ester
Joelza Ester
6 anos atrás

Os historiadores trabalham com documentos e indícios materiais, a partir deles, levantam hipóteses e constroem teorias. As pesquisas históricas contam ainda com o suporte da bioquímica, da ciência forense, da geologia e da tecnologia de última geração que permitem comparar marcas extraídas de todo canto do mundo e traçar rotas e contatos entre grupos humanos. Quem sabe novos pesquisadores com novas técnicas retomem as investigações sobre a suposta presença dos fenícios no Brasil. Enquanto isso não acontecer, ficamos na suposição e na lenda.

LUCIANO OLAVO DA SILVA
LUCIANO OLAVO DA SILVA
6 anos atrás
Responder para  Joelza Ester

Quer dizer, então, que tudo o que você pode provar segundo as técnicas que considera válidas é história, e o que não consegue provar e nem desmentir cabalmente, é lenda. Interessante o seu “critério”.

Lorenzo Dantas
Lorenzo Dantas
6 anos atrás

Interessante essa hipótese, apesar de poucas provas científicas.
Ainda sim, essas lendas que são fascinantes – e ainda bem que são lendas, se não fossem, não haveria a menor graça.

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