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Eleições na Primeira República: um outro olhar sobre o voto de cabresto

11 de maio de 2022

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Há uma charge muito conhecida dos professores e alunos do Ensino Básico que apresenta um político conduzindo um eleitor caracterizado como um burro e amarrado por um cabresto, para depositar seu voto na urna. A charge é de Alfredo Storni e foi publicada na revista Careta em 1927. Ela já foi reproduzida inúmeras vezes em livros didáticos, blogs, vestibulares e está até na Wikipedia.

A charge com o título “As próximas eleições… de cabresto” consolidou a noção de que o voto no Brasil da Primeira República não era livre, não expressava a vontade do cidadão pois o eleitorado era coagido a votar no candidato governista. Era, portanto, o “voto de cabresto”, tal como diz o título.

  • BNCC: 9 ano. Habilidades: EF09HI01, EF09HI02

“As próximas eleições… de cabresto”, charge de Storni, revista Careta, 19 de fevereiro de 1927, p.14.

Liberdade para votar e ser votado

Os historiadores Cláudia Viscardi e Vítor Figueiredo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, se debruçaram sobre o processo eleitoral da Primeira Republica e revelaram um cenário um tanto diferente do que os manuais escolares induzem pensar.

De acordo com a ideologia liberal em voga na época o cidadão tinha autonomia e não estava sujeito aos eventuais arbítrios do Estado. Ele gozava de total liberdade em relação às eleições.

O voto não era obrigatório como hoje, as eleições eram responsabilidade dos cidadãos, e não do poder público. Prova disso é que os locais de votação podiam ser residências privadas.

O voto poderia ser “a descoberto”, isto é, o eleitor podia dar seu voto oralmente e pedir para a mesa eleitoral assinar e depositar na urna. Podia, também, trazer de casa a cédula já preenchida.

A cédula podia ser adquirida em papelarias ou recortadas de jornais que as divulgavam em favor de algum candidato.

O eleitor podia votar em qualquer pessoa, até em quem não era candidato, incluindo ele próprio, sem que isso fosse causa de anulação de seu voto.

O candidato poderia se lançar na disputa eleitoral de forma independente, sem filiação a partidos. Rui Barbosa, por exemplo, recebeu votos em todas as eleições presidenciais, até depois de sua morte.

Presidente e vice-presidente concorriam separadamente. Não formavam uma chapa única como hoje.

Importante lembrar que tamanha liberdade de votar e ser eleito não era direito usufruído pela grande massa da população, mas por uma restrita minoria que atendia aos requisitos eleitorais, como veremos mais a frente.

Bagunça, improvisação e fraudes nas eleições

Tamanha liberdade dava margem a muita desorganização e muitas reclamações. As eleições ocorriam de forma muito improvisada: mesários faltavam, seções permaneciam fechadas ou eram deslocadas para outro lugar sem aviso prévio.

Episódios de violência eram comuns – o que afastava ainda mais os eleitores das urnas. Há casos em os mesários eram coagidos por capangas, de eleitores também reagindo com violência, de policiais interferindo com brutalidade.

Essa situação era propícia às fraudes e elas eram feitas tanto pela oposição como pela situação. Todos fraudavam, as minorias e as maiorias.

As fraudes ocorriam nas quatro fases que compunham o processo eleitoral: alistamento dos eleitores, eleição, apuração e diplomação. Não havia Justiça Eleitoral (instituída só em 1932) para coordenar todas as operações envolvidas no processo eleitoral.

Eleitorado reduzido e abstenção elevada

A Constituição de 1891 extinguiu completamente o requisito de renda para a participação eleitoral. Uma grande modernização, considerando que, na época, a maioria dos países em que existiam eleições, o voto era censitário. O voto universal só se difundiu amplamente no mundo a partir de 1910.

Tinham direito de voto: apenas homens, alfabetizados e maiores de 21 anos. Ficavam de fora as mulheres, os analfabetos, os mendigos, os soldados de baixa patente (“praças de pré”) e integrantes de ordens religiosas que impunham renúncia à liberdade individual. Isso significava, no final, um eleitorado muito reduzido, entre 5% e 6% da população total do país.

Em relação à quantidade de eleitores da época do Império, pouco mudou. As novas leis eleitorais mantiveram o número limitadíssimo de votantes e cidadãos elegíveis para os cargos públicos. Em 1894, por exemplo, tendo uma população estimada em 15.400.000 habitantes, somente 1.050.000 dos homens estavam habilitados a votar, pouco mais de 6% da população total do país.

Essa situação contribuiu para consolidar o sistema representativo oligárquico na Primeira República.

Por outro lado, a abstenção era muito alta. Nas eleições de 1898, a abstenção foi superior a 40%, e em 1906 foi de quase 67%, ano em que as eleições ocorreram no sábado de carnaval. A escolha da data revela a absoluta falta de planejamento e de preocupação das elites dirigentes em incentivar a participação cidadã dos eleitores.

Nas eleições presidenciais de 1898, que elegeram Prudente de Morais, apenas 356.000 cidadãos compareceram às urnas, representando 2,2% da população do país.

Eleitores que não comparecem às eleições são representados, na charge, como abortos da democracia. “A esterilidade democrática”, charge de Storni, revista Careta, 19 de fevereiro de 1927, p. 14.

Nem o Rio de Janeiro, Distrito Federal, com um eleitorado supostamente mais consciente, tinha maior participação política. Nas eleições de 1898, mais de 85% dos eleitores cariocas não compareceram às urnas. Aliás, a capital do país era, habitualmente, a região com menor presença de votantes.. Este dado indica que mesmo em áreas urbanizadas, com meios de transporte mais regulares, o eleitor deixava de exercer o seu direito.

Sendo o voto facultativo e a abstenção muito alta – o que dificultava consolidar no cidadão a importância do direito de voto -, o maior desafio era convencer o eleitor a ir votar, e menos o de coagi-lo a votar em determinado candidato. Neste sentido, o “voto de cabresto” era mais uma expressão pejorativa para chamar a lealdade do votante ao chefe local do que uma prática física de conduzir o eleitor à boca de urna.

Eleitorado reduzido, abstenção elevada, candidatos previamente escolhidos para ganhar as eleições e arranjos políticos entre as elites criaram um cenário político peculiar, como destaca o professor Wanderley Guilherme dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

Os primeiros quarenta anos da República Oligárquica brasileira transcorreram sem qualquer transtorno sério e eficaz na obediência às normas políticas. Não houve interrupção nas eleições legislativas, não houve deposição de presidente antes de 1930, nem houve manifestações militares bem-sucedidas. Algumas tentativas de revolução da década de 1920, sim, embora todas fracassadas, violência na política local, sim, como é usual na política de sistemas oligárquicos, mas golpe de estado bem-sucedido, não. (SANTOS, 2013, p.14.)

Tal estabilidade era garantida pelo processo eleitoral onde o voto era entendido como moeda de troca que movimentava as  negociações entre chefes locais (os coronéis), os presidentes dos estados (governadores), e destes com o presidente da República.

O coronel era, assim, parte fundamental do sistema oligárquico. Ele hipotecava seu apoio ao governo estadual na forma de votos, e, em troca, o governo garantia o poder do coronel sobre seus dependentes e rivais, especialmente através da cessão dos cargos públicos, que iam do delegado de polícia à professora primária. E desse modo se estabilizava a República brasileira no início do século XX, na base de muita troca, empréstimo, favoritismo, negociação e repressão. Visto desse ângulo, e como diziam os jornais satíricos de época, o país não passava de uma grande fazenda. (SCHWARCZ e STARLING, 2015, p.322.)

Fonte

  • VISCARDI, Cláudia M.R.; FIGUEIREDO, Victor Fonseca. Eleições na Primeira República: uma abordagem alternativa acerca da participação popular. Juiz de Fora, MG: Revista de História, v. 25, n. 2, 2019.
  • RICCI, P. e ZULINE, Jaqueline. Partidos, competição política e fraude eleitoral: a tônica das eleições na Primeira República. Rio de Janeiro: Dados-Revista de Ciências Sociais, v. 57, abr./jun 2014.
  • PORTO, Walter Costa. Eleições presidenciais no Brasil: Primeira República. Brasília: Senado Federal, 2019, p. 115.
  • SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O sistema oligárquico representativo da Primeira República. Rio de Janeiro: Dados-Revista de Ciências Sociais, v. 56, jan-mar, 2013.
  • SCHWARCZ, Lília Moritz; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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