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O carnaval sob o olhar de Debret

2 de fevereiro de 2016

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BNCC

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Durante os quinze anos de sua permanência no Brasil (1816 a 1831), o pintor francês Jean-Baptiste Debret registrou cenas da vida cotidiana entre as quais o carnaval no Rio de Janeiro. Em cartas enviadas a Paris e no livro que escreveu mais tarde – Viagem pitoresca e histórica ao Brasil – ilustrado com 220 gravuras em 151 pranchas, fez descrições pormenorizadas sobre os acontecimentos que presenciou.

Selecionamos abaixo, os comentários de Debret sobre o carnaval que ele viu nas ruas da Corte, em 1823.

O carnaval no Rio de Janeiro

“O carnaval no Rio e em todas as províncias do Brasil não lembra, em geral, nem os bailes nem os cordões barulhentos de mascarados que, na Europa, comparecem a pé ou de carro nas ruas mais frequentadas, nem as corridas de cavalos xucros, tão comuns na Itália.

Os únicos preparativos do carnaval brasileiro consistem na fabricação dos limões-de-cheiro, atividade que ocupa toda a família do pequeno capitalista, da viúva pobre, da negra livre que se reúne a duas ou três amigas, e finalmente das negras das casas ricas, e todas, com dois meses de antecedência e à força de economias, procuram constituir sua provisão de cera.

O limão-de-cheiro, único objeto dos divertimentos do carnaval, é um simulacro de laranja, frágil invólucro de cera de um quarto de linha [meio milímetro] de espessura e cuja transparência permite ver-se o volume de água que contém. A cor varia do branco ao vermelho e do amarelo ao verde; o tamanho é o de uma laranja comum; vende-se por um vintém, e os menores a dez réis.

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Escrava vende limões-de-cheiro em seu tabuleiro. Cena de Carnaval, detalhe, Debret, 1823.

A fabricação consiste simplesmente em pegar uma laranja verde de tamanho médio, cujo caule é substituído por um pedacinho de madeira de 10 a15 cm que serve de cabo, e mergulhá-la na cera derretida. Operada essa imersão, retira-se o fruto ligeiramente coberto de cera e mergulha-se em água fria, a fim de que se revista de uma película de um quarto de linha de espessura, bastante resistente, entretanto. Parte-se em seguida esse molde, ainda elástico, a fim de retirar a laranja, e, aproximando-se as partes cortadas, solda-se o molde de novo com cera quente, tendo-se o cuidado de deixar a abertura formada pelo pedaço de madeira para a introdução da água perfumada com que deve ser enchido o limão-de-cheiro.

O perfume de canela, que se exala de todas as casas do Rio de Janeiro durante os dois dias anteriores ao carnaval, revela a operação, fonte dos prazeres esperados.

Para o brasileiro, portanto, o carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às 5 horas da manhã, entre as alegres manifestações dos negros, já espalhados nas ruas a fim de providenciarem o abastecimento de água e comestíveis de seus senhores, reunidos nos mercados ou em torno dos chafarizes das vendas. Vemo-los aí, cheios de alegria e saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis.” (DEBRET, 1971)

A guerra de limões-de-cheiro

Continua Debret, descrevendo como se brincava o carnaval no Brasil:

“Com água e polvilho, o negro, nesse dia, exerce impunemente nas negras que encontra toda a tirania de suas bobagens grosseiras (…). Um tanto envergonhada, a pobre negra entregadora, vestida voluntariamente com sua pior roupa volta para casa com o colo inundado e o resto do vestido com as marcas das mãos imundas do negro que lhe lambuzou de branco o rosto e os cabelos.

(…) Nesses dias de alegria, os mais bagunceiros, embora sempre respeitosos para com os brancos, reúnem-se depois do jantar nas praias e nas praças, em torno dos chafarizes, a fim de se inundarem de água, mutuamente, ou de nela mergulharem uns aos outros por brincadeira (…). Quanto às negras, somente se encontram velhas e pobres nas ruas, com o seu tabuleiro à cabeça, cheio de limões-de-cheiro vendidos em benefício dos fabricantes.

Muitos negros de todas as idades são empregados nesse comércio, até a hora da ave-maria, quando se suspendem os divertimentos.

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Carnaval na Rua do Ouvidor (detalhe), de Ângelo Agostini, 1884. Sessenta anos depois da cena pintada por Debret, a folia com água e limões-de-cheiro continuava nas ruas.

Vi, durante a minha permanência, alguns grupos de negros mascarados e fantasiados de velhos europeus lhes imitavam muito jeitosamente os gestos, ao cumprimentarem à direita e à esquerda as pessoas instaladas nos balcões; eram escoltados por alguns músicos, também de cor e igualmente fantasiados.

Mas os prazeres do carnaval são também animados e compartilhados por um terço da população branca brasileira, isto é, a geração de meia-idade, ansiosa por abusar alegremente, todas suas forças e habilidade, consumindo em enorme quantidade os limões-de-cheiro disponíveis.

Domingo depois do almoço, o vendeiro procura provocar o vizinho da frente com incidentes insignificantes, a fim de atraí-lo à rua e jogar-lhe o primeiro limão ao rosto. Alguns jovens franceses, empregados no comércio, passeiam como se fossem sentinelas avançadas, armados de limões, e aproveitam a oportunidade para inundar uma senhora, também francesa, ocupada no fundo da loja semifechada. Veem-se também jovens negociantes ingleses, consagrando de bom grado a um quarto de hora de brincadeira lícita, passar com orgulho e arrogância, acompanhados por um negro vendedor de limões, cujo tabuleiro esvaziam pouco a pouco, jogando os limões às pessoas que nem sequer conhecem.

Alguns gritos, entrecortados de gargalhadas, revelam ao locatário do primeiro andar, cujo cômodo da frente já foi esvaziado de seus móveis, por precaução, que chegou a hora de abrir as janelas, ou para evitar que se quebrem os vidros ou para se preparar ele próprio para a batalha de limões.

(…) Durante mais de três horas, vê-se grande quantidade desses projéteis cruzando-se de todos os lados nas ruas da cidade e estourando contra um rosto, um olho ou um colo. O banho decorrente, de mais ou menos um copo de água aromática, suporta-se agradavelmente, em vista do calor extremo da estação.

É natural que, após semelhante combate, todo grupo de um balcão, molhado como ao sair de um banho, se retire para mudar de roupa; mas logo volta com o mesmo entusiasmo. E uma moça sempre se orgulha do grande número de vestidos que lhe molharam nesses dias gloriosos para seus dotes de habilidade.

Se a batalha de limões, graças a essa familiaridade espontânea tolerada durante três dias seguidos, se torna muitas vezes a causa de novas relações entre beligerantes, é ela, por outro lado, motivo de isolamento para as pessoas tranquilas, que se fecham em casa e não ousam sair à janela.” (DEBRET, 1971)

Leitura da imagem “Cena de Carnaval”

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Cena de Carnaval, Debret, aquarela sobre papel, 18 x 23 cm, 1823.

Debret explica a cena que ele pintou em aquarela sobre papel:

“A cena se passa à porta de uma venda, instalada como de costume numa esquina. A negra sacrifica tudo ao equilíbrio de seu cesto, já repleto de provisões que traz para seus senhores, enquanto o moleque, de seringa de lata na mão, joga um jato de água que a inunda e provoca um último acidente nessa catástrofe carnavalesca.

Sentada à porta da venda, uma negra mais velha ainda, vendedora de limões e de polvilho, já enlambuzada, com seu tabuleiro nos joelhos, segura o dinheiro dos limões pagos adiantado, que um negrinho, tatuado voluntariamente com barro amarelo, escolhe, como campeão entusiasta das lutas em perspectiva.

Perto deste e da porta pequena da venda, outro negro, orgulhoso da linha vermelha traçada na testa, adquire um pacote de polvilho a um pequeno vendedor de 9 a 10 anos; em cima, uma negra dispõe-se a vingar com um limão o punhado de polvilho que lhe recobre a face e parte do olho; ao lado da mesma porta, outro negro, grotescamente tatuado, está de tocaia. O vendeiro, tendo retirado precipitadamente todos os comestíveis que de costume expõe à sua porta, deixou tão-somente garrafas cobertas de palha trançada, abanadores e vassouras.

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Cena de carnaval (detalhe), Debret, 1823.

No fundo do quadro podem-se observar famílias tomadas da loucura do momento, uma vendedora ambulante de limões, negros lutando e um pacífico cidadão escondido atrás de seu guarda-chuva aberto e que circula por entre restos de limões de cera.

A ave-maria impõe uma trégua e algumas rondas policiais acabam por implantar a paz.” (DEBRET, 1971)

O entrudo no Brasil

O carnaval presenciado por Debret era chamado, então, de entrudo. Fora introduzido no Brasil pelos portugueses, provavelmente no século XVI, mas sua origem remonta à Idade Média e designava uma série de brincadeiras que variavam de aldeia em aldeia.

Brincava-se o entrudo dentro das casas senhoriais em que os jovens lançavam entre si limões-de-cheiro, como registrou o pintor inglês Augustus Earle, em sua segunda passagem ao Brasil, em 1822. Até mesmo o imperador D. Pedro II participou da brincadeira, conforme noticiado pelo jornal Gazetinha, de 1882.

Mas a folia maior acontecia nas ruas das cidades envolvendo escravos e forros. O conteúdo dos limões-de-cheiro variava de água de chafarizes, a café, groselha, tinta, lama e até mesmo urina. O lançamento de polvilho ou outro tipo de pó completava a molhadeira.

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Jogos durante o entrudo no Rio de Janeiro, aquarela, Augustus Earle, 1822.

A partir de 1830, a brincadeira passou a sofrer críticas por parte de alguns setores da população levando a repressões policiais e a proibições legais. A festa da rua, popular e negra começou a ser vista como uma manifestação grosseira e perigosa.

Em meados de 1840, um grupo teatro italiano organizou no teatro São Januário, no Rio de Janeiro, “um carnaval veneziano de máscaras”. Inaugurava-se uma nova fase do carnaval brasileiro, separando os festejos da sociedade branca do entrudo dos negros. Clubes privados passaram a organizar o carnaval para seus sócios. Lojas da Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, anunciavam a venda de fantasias e máscaras. Entre elas, ganhou popularidade as dos personagens da commedia dell’arte italiana – Pierrô, Arlequim e Colombina – que acabaram se incorporando ao folclore urbano e literário nacional.

Depois de algumas tentativas de coibir o entrudo, ele foi proibido em 1854. Mesmo assim, continuou sendo realizado, porém em menor escala.  Ainda na década de 1880, o entrudo anárquico ocorria nas ruas centrais da corte, como registrou Ângelo Agostini, enquanto nos salões aristocráticos brincava-se o carnaval organizado da elite imperial.

“Os bailes carnavalescos de salão – privatizando um divertimento público para os sócios dos clubes e os que podiam adquirir ingresso – haviam se tornado a marca de distinção, coisa de gente fina. Em oposição ao “entrudo moleque”, festa pública para o grande público, evento de rua e alvo designado das cacetadas da polícia. (ALENCASTRO: 1997, p.53.)

Fonte

  • ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • ARAÚJO, Hiram. Carnaval: seis milênios de história. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.
  • DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, 1816-1831. São Paulo: Melhoramentos, 1971.
  • FERREIRA, Felipe. Inventando carnavais: surgimento do carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
  • FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do carnaval brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
  • MORAES, Eneida de. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: 1987.
  • PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras. São Paulo: Unicamp, 2015.
  • PINHEIRO, Marlene Soares. Sob o signo do carnaval. São Paulo: Annablume, 1995.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • Estudos de Carnaval. IN Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares, revista digital, UERJ, v. 8,n. 2, 2011.

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Joelza Ester
Joelza Ester
7 anos atrás

Sobre carnaval, veja, também a revista “Estudos de Carnaval” com artigos diversos escritos por especialistas:
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tecap/issue/view/757

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