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Peste negra pode ter começado no Quirguistão, mostra análise de DNA

6 de julho de 2022

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A peste negra provavelmente surgiu a partir de uma escala na Roda da Seda, no atual Quirguistão, na Ásia Central. O Quirguistão pode ter sido o epicentro de uma das pandemias mais destrutivas da humanidade.

O DNA da bactéria causadora da doença foi identificado nos restos mortais de pessoas enterradas na região a partir do ano de 1338, menos de uma década antes que a peste negra chegasse ao território europeu.

O material genético do micróbio do Quirguistão é praticamente idêntico ao encontrado em vítimas da pestilência na Europa, mostra a pesquisa sobre o tema que acaba de sair na revista científica Nature. E as inscrições nos túmulos asiáticos sugerem que já se tratava de uma epidemia —boa parte das mortes dessa época no local parece ter sido causada pela infecção.

O Quirguistão é um país da Ásia Central, ex-integrante da antiga União Soviética. Tem fronteira ao norte com o Cazaquistão, a oeste com o Uzbequistão, a sul com o Tajiquistão e a leste com a China. Sua capital é Bisqueque, a maior cidade do país. O país fazia parte da Rota da Seda, antigo trajeto comercial entre a China e o Mediterrâneo.

A pesquisa multidisciplinar

Anos atrás, Philip Slavin, historiador econômico e ambiental da Universidade de Stirling, Reino Unido, e co-autor principal do estudo, encontrou registros de dois cemitérios do século XIV no Quirguistão que, segundo ele, poderiam conter pistas para as origens da Peste Negra. Os cemitérios, conhecidos como Kara-Djigach e Burana, continham um número incomumente alto de lápides datadas de 1338 e 1339, dez das quais faziam referência explícita a uma peste.

Para determinar se os enterros tinham alguma relevância para a Peste Negra posterior, Slavin trabalhou com Johannes Krause, paleogeneticista do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, Alemanha. O objetivo era rastrear os restos mortais do cemitério do Quirguistão – que havia sido escavado nas décadas de 1880 e 1890 e transferido para São Petersburgo, na Rússia. A equipe, liderada pela arqueogeneticista Maria Spyrou da Universidade de Tübingen, na Alemanha, sequenciou DNA antigo de sete pessoas cujos restos mortais foram recuperados, descobrindo DNA de Y. pestis em três enterros de Kara-Djigach.

Combinando os novos dados genômicos com o que já se sabia sobre os aspectos arqueológicos e a história da peste negra, o estudo tem potencial para encerrar o longo debate sobre as origens da doença, considerada a pandemia mais devastadora da história humana.

“Fazia muito tempo que já sabíamos da existência desses cemitérios cristãos do Quirguistão, no qual foram achados materiais epigráficos [inscrições] maravilhosos”, contou Slavin em entrevista coletiva online.

No século XIV, embora a região estivesse sob o domínio do Império Mongol, a comunidade cristã local adotava o idioma siríaco (próximo do aramaico, que era a língua nativa de Jesus e dos apóstolos) em seus textos.

A lápide de um dos túmulos, com a imagem de uma cruz, diz o seguinte: “Ano 1649 [equivalente a 1338 no nosso calendário], o Ano do Tigre [‘Bars’ na língua turca]. Este é o túmulo do fiel Sanmaq. Ele morreu de ‘mawtana’ [pestilência, em siríaco]”. Referências semelhantes aparecem em dois cemitérios contemporâneos na região do lago Issyk-Kul, perto das montanhas na atual fronteira com o Cazaquistão.

Na lápide é possível ler: “Ano 1649 [equivalente a 1338 no nosso calendário], o Ano do Tigre [‘Bars’ na língua turca]. Este é o túmulo do fiel Sanmaq. Ele morreu de ‘mawtana’ [pestilência, em siríaco]”

Uma lápide gravada de uma pessoa que morreu da praga da Peste Negra, do cemitério Kara-Djigach, no que hoje é o Quirguistão.

Essa pista já apontava para o território quirguiz como uma possível fonte da peste negra, cujos primeiros registros na Europa remontam a 1346, na região da Crimeia. Os genomas da bactéria Yersinia pestis encontrados nas tumbas cristãs pelos pesquisadores têm exatamente as características que se esperariam de um ancestral comum próximo das bactérias que começariam a dizimar os europeus poucos anos mais tarde.

Cepas muito parecidas do micróbio ainda circulam nas populações de roedores selvagens  como as marmotas do Quirguistão. Os bichos são considerados o reservatório natural da bactéria —hoje em dia, seres humanos só são infectados quando entram em contato com os animais.

Krause suspeita que o contato próximo de humanos com marmotas infectadas desencadeou a epidemia do Quirguistão, enquanto populações de ratos imunologicamente ingênuos na Europa alimentaram a Peste Negra.

Conexões de longa distância

Se as montanhas do Quirguistão hoje podem parecer relativamente remotas e desconhecidas, é importante lembrar que a situação durante o fim da Idade Média era muito diferente.

A cordilheira de Tian Shan faz sentido como epicentro da Peste Negra. A região está no antigo trajeto comercial da Rota da Seda, e os túmulos do Quirguistão continham pérolas do Oceano Índico, corais do Mediterrâneo e moedas estrangeiras, sugerindo que mercadorias distantes passavam pela área.

A cordilheira de Tian Shan, onde os pesquisadores encontraram cepas modernas de bactérias causadoras de pragas relacionadas às antigas do Quirguistão.

“Podemos levantar a hipótese de que o comércio, tanto de longa distância quanto regional, deve ter desempenhado um papel importante na disseminação do patógeno para o oeste”, disse Slavin. “Estamos falando de uma comunidade de mercadores que tinha conexões de longa distância com muitos lugares diferentes, a julgar pelos artefatos encontrados por arqueólogos na região”.

O próprio grupo cristão ao qual pertenciam os mortos, a Igreja Nestoriana, estava espalhada por uma área ampla da Eurásia, chegando até a Índia. A presença unificadora do Império Mongol também facilitava o comércio.

Ou seja, essas conexões podem muito bem ter facilitado o espalhamento do surto inicial rumo ao Ocidente. O momento exato em que a pandemia foi desencadeada, porém, é um pouco mais complicado de explicar.

A tradição nômade do Quirguistão reflete-se nos Jogos Nômades realizados de dois em dois anos em memória de Gengis Khan.

Fatores que facilitaram a difusão da doença na Europa

“De certa maneira, é uma tempestade perfeita que reúne vários fatores casuais”, diz Johannes Krause. “Um elemento importante é que fazia vários séculos que uma epidemia de peste bubônica não afetava a Europa, o que significa que, no século XIV, a bactéria passa a infectar uma população que não tinha defesas naturais contra ela.”

Outro fator central é, claro, a falta de higiene dos europeus e outros povos de então. A principal forma de transmissão da doença era a picada das pulgas carregadas por ratos. Ou seja, cidades imundas e cheias de gente convivendo com ratos por causa da falta de higiene eram prato cheio para a disseminação da doença.

“Na verdade, as pulgas só acabavam sugando o sangue dos seres humanos quando os ratos morriam em peso. Ou seja, as pessoas eram só dano colateral causado por uma pandemia de roedores, em certo sentido”, explica Krause.

Os principais sinais da doença eram os chamados bubões, grandes inflamações dos nódulos linfáticos na virilha, pescoço e axilas. Os infectados tinham febre alta, vomitavam sangue e morriam em poucos dias.

Embora casos esporádicos aconteçam até hoje, a imensa melhora nas condições de higiene e a existência de antibióticos acabaram com os surtos de peste bubônica, ao menos por enquanto.

Krause espera analisar os restos mortais da China para ver como uma pandemia que tanto marcou a Europa reverberou no leste da Ásia, diz ele. “Nós realmente gostaríamos de obter a parte oriental da história.”

Afinal quantas pessoas morreram?

Especulou-se que a Peste Negra matou cerca de 50 milhões de europeus, metade da população europeia. Outros apontaram uma cifra ainda maior, afirmando que ela exterminou por volta de 60% ou mesmo 65% da população europeia.

Estudo publicado na revista Nature, em fevereiro de 2022, de pesquisadores alemães, conclui que a mortandade não foi geral. Se isso tivesse acontecido, significaria o desaparecimento, de uma hora para outra, de milhões de servos. Muitos feudos teriam ficado incultos, com o mato crescendo e florestas tomando conta das áreas. Segundo o estudo, algumas regiões da Europa de fato sofreram mortandade devastadora, mas outras regiões se mantiveram estáveis e ainda outras chegaram a prosperar.

Fonte

  • Texto de LOPES, Reinaldo José. Peste negra pode ter começado no Quirguistão, mostra análise de DNA. Folha de S.Paulo. Ciência, 20.06.2022.
  • CALLAWAY, Ewen. Ancient DNA traces origin of Black Death. Nature, 15 Jun 2022.
  • IZDEBSKI, A et alli. Palaeoecological data indicates land-use changes across Europe linked to spatial heterogeneity in mortality during the Black Death pandemic. Nature Ecology & Evolution, 10.02.2022.

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