Em sua “Relación de las cosas del Yucatán”, frei Diego de Landa, missionário franciscano naquela península no século XVI, deixou escrito uma espécie de alfabeto silábico coletados oralmente de antigos nobres maias. Ele serviria no futuro para decifrar parcialmente os caracteres maias
Depois dele, muitos outros tiveram a mesma intenção, embora sem muito sucesso. Entre eles, Heinrich Berlin, um especialista independente que vivia na Cidade do México, e fez explorações nos sítios arqueológicos de Palenque e Mayapán no México, e Tikal na Guatemala entre outros. Em 1958, ele decifrou juntamente com Tatiana Proskouriakoff, da Carnegie Institution of Washington, o significado e o uso do glifo-emblema usado pelas cidades maias como topônimos ou para distinguir a dinastia reinante. Dois anos depois, alcançou um novo marco: a anotação precisa das datas dos monumentos para especificar as fases estilísticas.
Mas, a decifração definitiva estava acontecendo a milhares de quilômetros dali, na Rússia por um obstinado estudioso: Yuri Valentinovich Knorozov (1922-1999). Sua história e seu trabalho se entrelaçam com a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e as disputas acadêmicas entre Ocidente e Oriente que poderiam tê-lo impedido de continuar, mas não conseguiram.
Quem era Yuri Knorozov

O famoso retrato de Yuri Knorozov com seu gato siamês Asya (Aspida).
Nascido na Ucrânia, Yuri Knorozov ingressou, em 1939, aos 17 anos de idade, na faculdade de História na Universidade Nacional de Kharkiv. De todas as disciplinas, a etnografia foi a que mais o atraiu. Ele interessou-se especialmente em práticas religiosas e xamanismo da Ásia Central. Além disso, ele estudou a língua egípcia e os hieróglifos.
Mas Yuri só conseguiu completar dois anos de estudo na universidade. As aulas foram interrompidas com a Segunda Guerra Mundial e a ocupação da Ucrânia pelas tropas nazistas. Em 1943, Knorozov conseguiu cruzar a linha de frente e fugir para Moscou. Na capital russa tentou continuar seus estudos de História matriculando-se no segundo ano do departamento de História da Universidade de Moscou. Não conseguiu concluir seus estudos, pois, já em 1944, foi convocado para servir no 158º regimento de artilharia soviética como operador de telefone.
Foi mandado para a frente de batalha e participou do ataque a Berlim, em maio de 1945.
O lendário achado no meio das chamas
Conta-se que, durante a batalha de Berlim, Knorozov conseguiu resgatar de um incêndio na Biblioteca Nacional (hoje Biblioteca de Berlim) dois livros raros: uma edição de 1933 dos “Códice Maia de Drésden” e uma cópia da obra “Relação das coisas de Yucatán”, do frei Diego de Landa, de 1570.
A história é linda, mas é uma lenda. O próprio Knorozov daria sua versão, ao afirmar em entrevista: “Não houve fogo. As autoridades alemãs encaixotaram a biblioteca para a evacuação e deveriam levá-la para os Alpes, na Áustria. Os livros colocados em caixas estavam no meio da rua. Então, escolhi dois…”
De volta aos estudos em Moscou, Knorozov graduou-se em 1948. Debruçou-se sobre o glifos maias, dos quais muito pouco podia ser compreendido.
A decifração da escrita maia
O manuscrito do frei Diego de Landa, que serviu de base para Knorozov, afirmava ter transliterado hieróglifos maias para o alfabeto espanhol com base em informações fornecidas por maias alfabetizados.
No entanto, o “alfabeto” do frei espanhol não abrangia muitos glifos maias e também não incluía múltiplas variações para algumas letras. Além disso, algumas das letras de De Landa nem sequer eram conhecidas por outras fontes.
Por isso, todas as tentativas anteriores de usar o “alfabeto de Landa” como chave para decifrar o sistema de escrita maia foram infrutíferas. Na época da pesquisa de Knorozov, os linguistas haviam decodificado apenas os números maias e pequenos fragmentos de textos relacionados à astronomia e ao calendário, mas a escrita completa permanecia desconhecida.
A principal ideia de Knorozov foi tratar os glifos maias não como um alfabeto, isto é, como som separado, mas como uma sílaba, palavra ou morfema. Ele descobriu que os 355 signos dos códices maias correspondiam à escrita fonética e morfemo-silábica. Essa foi a chave que lhe permitiu decifrar a escrita maia.
Atualmente, mais de 800 caracteres maias são conhecidos, incluindo alguns puramente hieroglíficos e outros sinais que representam sílabas.

Escrita entre 1563 e 1572 por Diego de Landa, essa obra baseou-se nas tradições orais dos antigos maias. Contém informações sobre edifícios, meio ambiente, costumes, crenças e história.

Códice de Dresden, livro maia datado do século XI ou XII, uma das quatro obras maias sobreviventes. Levado para a Europa, foi redescoberto na cidade de Dresden, Alemanha, daí o nome atual do livro. O códice contém informações relacionadas a tabelas astronômicas e astrológicas, referências religiosas, estações da Terra, doenças e medicina.
As disputas acadêmicas em clima de Guerra Fria
Em 1952, Knorozov publicou um artigo que mais tarde seria aceito como um trabalho seminal na área, intitulado “Escrita Antiga da América Central”. Suas descobertas sobre os glifos maias lhe renderam o doutorado em 1955. Publicou seu trabalho mais importante sobre a escrita maia em 1963.
Seus trabalhos provocaram grande polêmica em todo o mundo. Seu principal rival era o arqueólogo britânico John Eric Thompson, o mais respeitado especialista dos povos Maias da época. A autoridade mundialmente renomada ficou chocada ao ver que um jovem pesquisador desconhecido, de um país ideologicamente hostil, tivesse se intrometido de forma tão imprudente em sua área, causando uma verdadeira revolução.
O britânico descartou as descobertas de Knorozov como propaganda marxista e garantiu que o trabalho de Knorozov não fosse levado a sério pela maioria no Ocidente. Thompson chegou a questionar a capacidade científica de Knorozov. Criticava o fato do ucraniano nunca ter ido às terras dos Maias. Knorozov respondia a essas críticas afirmando: “Sou um cientista de poltrona. Para trabalhar com textos, não é preciso ficar pulando pirâmides”.
Thompson continuou suas críticas ácidas. Tomou pequenas imprecisões no texto de Knorozov para desacreditá-lo. Por exemplo, quando Knorozov erroneamente viu uma onça em uma imagem estilizada de veado, Thompson zombou: “Bem, talvez seja uma onça marxista-leninista, mas não é uma das nossas, é um veado.”
Apenas os arqueólogos e epígrafos estadunidenses David Kelley (1924-2011) e Michael D. Coe (1929-2019), ambos especialistas sobre a Mesoamérica pré-colombiana aceitaram que o método de Knorozov poderia estar correto. A opinião errônea de Thompson prevaleceria até sua morte em 1975. Somente depois disso, as descobertas de Knorozov foram integralmente recuperadas. Hoje, ele é mundialmente conhecido como o linguista que decifrou a escrita maia.

Knorozov trabalhando em seu estúdio, URSS, 17 de julho de 1952.

Glifos maias de Palenque, em Chiapas, México.
Finalmente pisando em terras maias
Knorozov só pôde visitar as terras maias no final de 1990, apenas um ano antes do colapso da URSS e 35 anos após sua decifração da escrita maia. Ele foi convidado pelo presidente da Guatemala, Vinicio Cerezo. Pela primeira vez, o ucraniano viu pessoalmente as estruturas que antes só tinha visto em fotos e até escalou a Grande Pirâmide do Jaguar, em Tikal. Viajou na companhia da historiadora linguista e epígrafa russa Galina Gavrilovna Yershova e seu marido, o historiador Guillermo Ovando Sanz.
Em 1992, Michael D. Coe publicou o livro “Breaking the Maya Code” (Quebrando o Código Maia) no qual reconhecia oficialmente o sucesso de Knorozov e os erros de Thompson. “Somos todos ‘knorozovists’ agora”, disse Coe em entrevista.
Knorozov fez outras viagens à América. Em 1994, o governo mexicano concedeu-lhe a Ordem Mexicana da Águia Asteca na Embaixada do México em Moscou. Na Guatemala, foi presenteado com a Grande Ordem do Quetzal, a mais importante distinção do governo guatemalteco.
Em 1995 Knorozov visitou o México para participar do III Congresso Internacional de Mayanistas e em 1997 o cientista realizou sua última viagem ao México, onde visitou vários sítios arqueológicos em Yucatán.
Com seus estudos, Yuri Knorozov deduziu que devia haver um túmulo de mulher em Palenque ainda não descoberto. Em 1995, sua teoria foi comprovada ao ser encontrado o túmulo da Rainha Vermelha (assim chamado por causa da quantidade de cinábrio vermelho que o cobria).
Knorozov também é conhecido por ter apontado um lugar nos Estados Unidos como a provável localização de Chicomoztoc, o lendário lar ancestral dos astecas mexicas e outros nauatles, local considerado mítico pelos estudiosos. Para o ucraniano, esse local seria Mesa Verde no Colorado.
Homenagem póstuma a Knorozov

O selo postal russo de 2022, para celebrar o 100º aniversário do nascimento de Yuri Knorozov. No fundo, hieróglifos maias do Templo XVIII em Palenque (Chiapas, México).
Yuri Knorozov morreu em 30 de março de 1999 em São Petersburgo, Rússia.
Em 2018 a Rússia ofertou ao povo maia de Yucatán, no México, um monumento dedicado a Yuri Knorozov, em reconhecimento à contribuição do linguista ucraniano, para o desenvolvimento da ciência que estuda a cultura Maia.
Fonte
- Dez anos de história da ciência: como um “cientista de poltrona” decifrou a escrita maia. Humanidades, 19 nov 2022.
- DAVIES, Diana. O sistema de escrita maia. Maya Archaeologist.