Há músicas ditas “clássicas”, o correto seria dizer eruditas, que ganharam tamanha popularidade que hoje estão presentes nas festas de casamento, nos bailes de formatura, nos temas musicais de novelas e cinema, em anúncios publicitários, em jogos eletrônicos e até em desenhos animados.
Sua popularidade tem um motivo óbvio: elas se inspiraram em canções e danças populares tradicionais que, nas mãos de grandes compositores, ganharam arranjos, ritmos e melodias sofisticados para orquestras. São peças compostas no século XIX, em pleno despertar do nacionalismo.
CONTEÚDO
- Origem da nação e do nacionalismo
- O nacionalismo nas artes
- O nacionalismo na música erudita
- O nacionalismo alemão na ópera de Wagner
- O nacionalismo italiano na ópera de Verdi
- A popularidade das valsas vienenses
- O nacionalismo musical brasileiro
1. Origem da nação e do nacionalismo
No século XIX, a Europa foi incendiada por diversos movimentos embalados por um forte sentimento nacionalista e patriótica. A ideia de nação e o nacionalismo ganhavam, então, uma força popular nova que gerou movimentos separatistas (caso da Hungria, Polônia e Grécia), lutas pela unificação (caso da Alemanha e Itália), políticas de expansão territorial (caso dos Estados Unidos) e de modernização do país (caso do Japão, na chamada Era Meiji).
As origens da ideia de nação remontam ao final da Idade Média e início dos Tempos Modernos, mas o conceito de Estado-nação ganhou força a partir do século XVIII com as revoluções Francesa e Industrial.
O ideal iluminista de fraternité (fraternidade) fundamentou a ideia de nação, de pertencer a um Estado que impõe a todos cidadãos a unidade de língua, cultura e tradições ultrapassando o sentimento local de comunidade. A Revolução Francesa realizou essa unificação elegendo uma língua nacional que todos deveriam falar. Em 1789, o francês era falado somente pela metade dos franceses e apenas 12 ou 13% o falavam corretamente. Na Itália, citando outro exemplo, no momento da unificação (1860), apenas 2,5% da população usava o italiano nas atividades cotidianas (HOBSBAWN, 1998). Daí a importância do ensino primário público e da imprensa para fixar a língua e a cultura oficial – elementos forjadores da ideia de nação.
A Revolução Industrial, por sua vez, quebrou as pequenas unidades produtivas agrícola-artesanais que constituíam os horizontes de vida da maioria da população. A produção industrial em larga escala ampliou o contexto econômico-social a que o indivíduo pertencia, estendeu as relações de produção e de troca até a formação de um mercado e de uma sociedade de dimensões nacionais.
2. O nacionalismo nas artes
Na pintura, o nacionalismo incorporou-se à estética do romantismo privilegiando os temas históricos de forte dramaticidade, em especial, os movimentos pela liberdade. Nesta linha, são emblemáticas as telas O Fuzilamento de 3 de Maio (1814-15), de Francisco Goya, e A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Delacroix (usada na abertura desse artigo, em montagem fotográfica).
Aliás, este último, foi o pintor das lutas pela liberdade. O nacionalismo grego, que resultou na independência da Grécia contra o Império Otomano, inspirou Delacroix a pintar duas telas famosas: O massacre em Chios (1824) e A Grécia nas ruínas de Missolonghi (1826), nas quais ele exaltou a heroica resistência do povo grego frente às tropas turcas.
3. O nacionalismo na música erudita
A música foi um eficiente instrumento de difusão dos ideais nacionalistas. Muitos compositores europeus utilizaram de melodias e ritmos do folclore de seu país buscando, inclusive, inspiração nas lendas e histórias de seu povo. Criaram composições com forte conteúdo épico e patriótico.
O polonês Frederic Chopin (1810-1849) é um exemplo do sentimento nacionalista na música. Na época, sua pátria, a Polônia estava sob domínio do czar da Rússia, e Chopin compartilhava o desejo dos nacionalistas em libertar o país. Ele residia em Viena quando lhe chegou a notícia da insurreição em Varsóvia. Entusiasmado, Chopin improvisou diante de um público atento e comovido, o Estudo Revolucionário, em cujo ritmo alucinante ele representou a luta pela libertação da Polônia. Outras composições exaltando a Polônia também se tornaram clássicos como Polonesa nº 3 e a Polonesa nº 53, apelidada de “Heroica”.
Estudo Revolucionário (Estudo op. 10, nº 12)
Polonesa nº 3, Op. 40, nº 1
Polonesa “Heróica”, desenho animado com Pica-pau (1946)
O húngaro Frans Liszt (1811-1886), mesmo morando longe de sua pátria, homenageou-a em inúmeras composições inspiradas na música folclórica húngara, de raiz cigana. A Hungria vivia, então, sob o domínio do Império Habsburgo sediado na Áustria. Em 1848, tiveram início manifestações em massa contra o governado imperial nas cidades húngaras de Peste e Buda que resultaram em uma guerra civil. O país não conseguiu a almejada independência, mas diante da resistência e do forte nacionalismo húngaro, em 1867, a Áustria chegou a uma solução alternativa: transformou o Império Habsburgo na monarquia dual da Áustria-Hungria.
Foi nesse clima de lutas nacionalistas que Liszt criou suas célebres Rapsódias húngaras, um conjunto de 19 obras para piano, compostas entre 1846 e 1853, e mais tarde entre 1882 e 1885. Atento aos acontecimentos de sua época, Liszt também compôs peças musicais sobre temas nacionais checos, alemães, italianos, polacos, russos, franceses, ingleses, espanhóis e húngaros.
Rapsódia húngara nº 2
Rapsódia húngara no. 2, desenho animado com Pernalonga
4. O nacionalismo alemão na ópera de Wagner
A ópera, um gênero musical muito popular no século XIX, também serviu de propaganda para a luta nacionalista. As óperas do alemão Richard Wagner (1813-1883), consideradas por muitos especialistas como a essência do espírito alemão, falam de um passado heroico onde se misturam história medieval com mitos germânicos.
A tetralogia O Anel do Nibelungo (1876), baseada na mitologia nórdica, refere-se a um anel mágico carregado de poderes e maldição. O mito profetiza, ainda, a guerra que levaria ao fim do mundo. A interpretação de Wagner para esse apocalipse diverge significativamente das fontes nórdicas. A última cena do último ato é talvez uma das mais complexas na história da ópera, quando o fogo consome todo o cenário e o rio Reno inunda o local, levando as ninfas consigo.
A Cavalgada das Valquírias (a segunda parte da tetralogia) é uma das peças musicais mais conhecidas do público em geral. Tem sido frequentemente usada como tema musical em produções cinematográficas desde o clássico O Nascimento de uma nação (1915) dirigido por D. W. Griffith, até o mais recente Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola, na cena em que uma esquadrilha de helicópteros ataca uma vila vietnamita.
A cavalgada das Valquírias, no filme Apocalypse Now (1979)
5. O nacionalismo italiano na ópera de Verdi
As óperas do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) também refletiram o espírito nacionalista da época. Defensor da unificação da Itália e amigo pessoal de Garibaldi, Verdi compôs óperas que alcançaram enorme popularidade. O nome de Verdi passou a servir de sigla para “Vitorio Emanuele, Rei (da) Itália” em torno do qual ocorria o movimento de unificação italiana. Nos muros das cidades, os patriotas italianos pichavam “Viva Verdi” fazendo propaganda da luta revolucionária.
A música Va, pensiero, sull’ali dorate (“Vai, pensamento, sobre asas douradas”), cantada na cena Coro dos Escravos Hebreus, na ópera Nabucco (1842), tornou-se uma música-símbolo do nacionalismo italiano da época. Foi escrita durante a época da ocupação austríaca no norte da Itália e, por meio de várias analogias, suscitou o sentimento nacionalista italiano. A letra de Va, pensiero é um hino de amor à terra natal ao cantar a “pátria, tão bela e perdida” e a “terra querida”.
Va, pensiero pelo coro infantil do Cambodja e Tibet, festival Música pela Paz (2000)
6. A popularidade das valsas vienenses
Até o século XVIII, a dança nos salões aristocráticos era o minueto, com seus movimentos solenes e ensaiados coreograficamente. Dança da corte, na qual não se pula, não se corre e nem se fica suado.
Com a Revolução Francesa começa uma mudança radical na maneira de dançar. Agora, o casal se abraça, os corpos se tocam, dão-se passos firmes, batendo com os pés no chão. Irrompe uma nova era em que as danças de origem popular – polca, mazurca e valsa – ganham os salões aristocráticos e burgueses.
A valsa foi, sem dúvida, o símbolo da nova era expressando em seu movimento circular vertiginoso a consciência da recém-adquirida liberdade. A valsa não é uma invenção do século XIX, seu compasso três por quatro tem origem antiga. Mas foi no século XIX que ela ganhou maior significado.
O austríaco Johann Strauss II (1825-1899), o músico mais famoso de toda família Strauss, também se inspirou na música e na dança popular compondo quase 500 valsas e polcas que acabaram por se tornar o próprio espírito do povo vienense.
Entre as chamadas valsas vienenses que compôs, a mais popular é O Danúbio Azul (1867) que acabaria se tornando, praticamente, no hino de Viena. Serviu como tema musical do filme de Stanley Kubrick Uma Odisséia no Espaço (1968). Seguiram-se outras composições também antológicas, como Vozes da Primavera, Sangue vienense, Vida de artista, Contos dos bosques de Viena, Vinho, mulheres e música e Valsa do imperador.
Danúbio Azul, no filme Uma Odisséia no espaço (1968)
7. O nacionalismo musical brasileiro
Dois compositores brasileiros do século XIX também se inspiraram em motivos populares imprimindo em suas obras características nitidamente brasileiras.
O paranaense Brasílio Itiberê (1846-1913) segundo alguns especialistas, foi o primeiro a expressar a tendência nacionalista da música brasileira, em sua obra para piano A Sertaneja, composta em 1869. Nela percebemos a inspiração da canção tradicional Balaio, meu bem, balaio, tema musical folclórico recolhido por ele na cidade de Paranaguá.
O paulista Alexandre Levy (1864-1892) também utilizou-se do folclore brasileiro na música erudita na sua composição Variações sobre um tema popular brasileiro, de 1884, baseada na melodia Vem cá, Bitu!
A Sertaneja, de Brasílio Itiberê
Variações sobre um tema popular brasileiro, de Alexandre Levy
Fonte
- LEVI, Lucio. Nacionalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.
- HOBSBAWM, Eric. A questão do nacionalismo. Nações e Nacionalismo desde 1780. Lisboa: Terramar, 1998.
- MAROCHI JR., Mario Luiz. A Sertaneja de Brasílio Itiberê: nacional ou estrangeria, amadorística ou sofisticada? Revista UFMG,v. 8, n. 2, 2008.
- PAHLEN, Kurt. Nova História Universal da Música. São Paulo: Melhoramentos, 1991.
- HELLSTROM, Natacha Tereza. Você sabe qual é a primeira obra erudita nacionalista no Brasil? Site Jam Music.
- Site Multimusica sobre história da música, instrumentos musicais, glossário etc.
Gostaria de ver inserido sambas enredos, bonitos e fiéis a nossa história, abandonada pela maioria dos pesquisadores. Não é possível tornar a sociedade brasileira realmente verdadeira com intolerância religiosa e racial.