Um dos livros obrigatórios da Fuvest 2018, “A cidade e as serras”, do escritor português Eça de Queirós, possibilita um interessante trabalho interdisciplinar com Língua Portuguesa e História ao traçar um panorama da sociedade europeia burguesa do final do século XIX, em plena Belle Époque e Segunda Revolução Industrial. Publicado em 1901, sem ter recebido a última revisão do escritor que falecera pouco antes, é considerada a sua obra mais importantes. Com fina ironia, Eça de Queirós contrapõe a urbana e cosmopolita Paris à rural e decadente Tormes, em Portugal (foto acima).
A obra e sua época
Eça de Queirós (1845-1900) é considerado o maior romancista português do século XIX. Suas obras apresentam uma forte sátira aos costumes burgueses, à aristocracia decadente, ao moralismo e à mediocridade da sociedade portuguesa da época.
Em A cidade e as serras, Eça de Queirós confronta dois mundos: o moderno e industrial, representado pela cidade, a “civilização”, e mundo rural (serras), “atrasado” e primitivo. O escritório de Jacinto é o símbolo da modernidade tecnológica, exibindo uma parafernália de instrumentos de comunicação, biblioteca abarrotada de livros de todas as ciências – resultado de sua ânsia em adquirir todas as novidades do conhecimento e da tecnologia, em comprar as melhores bebidas e comidas, em participar de todas as atividades da cidade.
O narrador-personagem, Zé Fernandes, é quem conta a história do amigo Jacinto. A narrativa se desdobra entre os anos 1880 e 1887 e, nos trechos selecionados, passa-se em Paris. A capital francesa era, então, considerada a capital da Europa e o centro do mundo. Paris fervilhava de novidades: telégrafo, telefone, água encanada, rede de esgoto, tubulação de gás, transporte público, ruas movimentadas, população numerosa, grandes lojas. Portugal, no entanto, terra-natal dos personagens, mantinha-se um país agrário e decadente.
Zé Fernandes e Jacinto são conterrâneos, de Tormes, Portugal. Depois de sete anos sem se verem, eles se encontram. Jacinto continua morando em Paris, no mesmo endereço: Campos Elíseos, n. 202. É o ano de 1887, e Jacinto parece feliz encarnando o espírito burguês do século XIX. A rapidez das transformações tecnológicas é alucinante e surpreende Zé Fernandes que encontra o amigo cercado de outras novidades: o edifício de Jacinto é equipado com um elevador, apesar de ter somente dois andares, e em seu escritório ele possui telefone, telégrafo, fonógrafo, máquina de escrever, máquina de calcular e jornais internacionais recentes.
Contexto histórico
Final do século XIX, época da chamada Belle Époque marcada pela vida cosmopolita das grandes capitais europeias, pelo clima intelectual e artístico e pelas profundas transformações culturais que se traduziam em novos modos de pensar e viver o cotidiano. A expansão industrial, novas invenções e descobertas inauguravam a Segunda Revolução Industrial.
A descoberta da conversão do ferro em aço abriu a era das grandes usinas siderúrgicas. A produção do aço, em larga escala e abaixo custo, levou à substituição do ferro nos armamentos, nas máquinas e na construção possibilitando erguer os primeiros arranha-céus, equipados com elevadores (1884, primeiro arranha-céu).
Novas fontes de energia, a eletricidade e o petróleo, mudaram o modo de vida ao serem aplicadas na iluminação urbana, nas indústrias, nos veículos (bondes, metrôs, locomotivas, carros etc.). O primeiro metrô foi o de Londres, inaugurado em 1863, usando trens a vapor e, a partir de 1890, trens elétricos. Seguiram-se os metrôs de Chicago (1892), Budapeste (1896), Boston (1897), Paris (1900) e Berlim (1902).
A invenção do telégrafo (1844) revolucionou a comunicação. Em 1858, na Europa, já havia 160 mil quilômetros de fios estendidos, inclusive em cabos submarinos (1851). Junto com a invenção do telefone (1876) e do rádio (1901) encurtou ainda mais as distâncias.
A imprensa também se beneficiou dessas novidades, que permitiam uma divulgação mais rápida das notícias, e ainda da invenção da rotativa (1845), da máquina de escrever (1867) e da linotipo (1884), máquina com teclado que permitiu compor rapidamente uma página a ser impressa.
Outras invenções e descobertas da época foram: fotografia (1839), elevador mecânico (1852), bonde elétrico (1873), fonógrafo (1877), bacilo da tuberculose (1882), vacina contra a raiva (1885), automóvel (1885), fogão elétrico de cozinha (1893), bacilo da peste bubônica (1894), raio X (1895), cinema (1895), submarino (1898), mosquito transmissor da febre amarela (1900) e balão dirigível (1900).
Ao cidadão “civilizado” não bastava, porém, só a tecnologia, era também importante a erudição intelectual como transparece na enorme biblioteca de Jacinto, de mais de trinta mil volumes de ciências e humanidades. Em Paris, andavam em voga as teorias positivistas, das quais Jacinto era um entusiasta.
Zé Fernandes admira-se com as modernidades que tanto entusiasmam Jacinto, mas não deixa de carregar um tom irônico em seus comentários, mostrando o ridículo da pretensa superioridade dos parisienses. Assim, por exemplo, o episódio do telégrafo que transmite a informação de que “a fragata russa Azoff entrara em Marselha com avaria”. Zé Fernandes, pergunta a Jacinto “se o prejudicava diretamente aquela avaria da Azoff”. A resposta do entediado Jacinto é: “Da Azoff?… A avaria? A mim… Não! É uma notícia”.
O episódio é muito significativo e ainda atual: o homem mergulhado em informações de todos os lugares do mundo – através do telégrafo, imprensa, telefone etc. – muitas sem nenhuma relação aparente entre si, torna-se um mero espectador que não pode tomar nenhuma atitude.
A modernidade, contudo, tem seu custo social: os inúmeros impactos ambientais causados pelo desmatamento, emissões de carbono, a poluição dos rios. O despejo de esgoto doméstico e industrial nas águas causou sérios desequilíbrios ao regime de águas e intenso mau cheiro. Isso transparece no romance na coleção de águas diversas que Jacinto possui e que justifica “é por causa das águas da Cidade, contaminadas, atulhadas de micróbios”.
Ressaltando com ironia os problemas da vida urbana, a futilidade reinante em Paris, em seu jogo de aparências que tornam a pessoa infeliz e entediada o romance acaba por mostrar a superioridade da vida tranquila e simples das serras em relação à cidade, cheia de agitação fútil. Ao final, Jacinto, insatisfeito e apático com a vida que levava em Paris deixa a cidade e vai viver no campo.
“A cidade e as serras”, de Eça de Queirós, trechos para download AQUI.
a-cidade-e-as-serras-ensinar-historia-joelzaO romance na aula de História
“A cidade e as serras” permite um trabalho significativo sobre a sociedade europeia no final do século XIX destacando o contraste entre as inovações e a vida burguesa da época com as permanências de padrões rurais e provincianos. Importante lembrar que, a despeito das novidades tecnológicas e da vida cosmopolita das grandes capitais europeias, a Europa não era plenamente urbanizada no final do XIX, mas, ao contrário, permanecia predominantemente rural.
Sugerimos inserir a obra como documento histórico na aula sobre Segunda Revolução Industrial, final do século XIX. É interessante pedir para os alunos pesquisarem sobre as invenções e descobertas da época ressaltando como elas interferiram em diferentes aspectos da vida humana.
Selecionamos dois trechos de “A cidade e as serras”, de Eça de Queirós, sugerindo questões para discutir com os alunos.
Trecho I
- Em que época se passa a narrativa?
- Jacinto e Zé Fernandes moram em dois mundos diferentes. Como esses mundos estão caracterizados no texto?
- Que invenções e modernidades urbanas o texto menciona?
- A que classe social provavelmente pertence Jacinto?
- Como Jacinto se sente perante as novidades?
- Porque ele associa civilização à cidade? Você concorda com essa ideia?
- Ao se referir à população de Paris, o personagem menciona a “solidariedade humana” e “dois milhões de seres arquejando na obra da Civilização”: que crítica o autor faz neste comentário?
- Que modificações ocorreram nas cidades em função do grande crescimento populacional?
Trecho II
- Quais são as novidades tecnológicas apresentadas nesse trecho?
- Em que medida essas novidades revolucionaram a comunicação?
- A rapidez das informações significa, necessariamente, maior consciência e participação social? Explique. Isso vale para os dias atuais?
- Entre os livros na biblioteca de Jacinto, qual deles é a obra que melhor reflete o pensamento econômico do século XIX? Por que?
- Que elementos nos dois trechos refletem o gosto burguês de Jacinto?
- Que impacto ambiental é denunciado neste trecho? Isso ainda ocorre?