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O teatro de Martins Pena: a face popular do Brasil Império

21 de março de 2016

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Martins Pena (1815-1848) foi o maior comediógrafo do Brasil Império. Sua obra, composta por 30 peças, das quais 22 são comédias, retrata a vida cotidiana de pessoas comuns do Rio de Janeiro. Produzida entre 1833 e 1847, anos que abrangem o final da Regência e o início do Segundo Reinado, ela documenta um período marcado por grande crescimento urbano da capital do Império. (Foto de abertura: “O Pena carioca”, montagem teatral reunindo três obras de Martins Pena: “A família e a festa na roça”, “O caixeiro da taverna” e “O judas no sábado de aleluia”. Direção de Daniel Herz, Teatro Leblon, RJ, 2015.)

No final do artigo, download de trecho da peça e sugestões de atividades.

A corte imperial na época de Martins Pena

Meados do século XIX: a cidade do Rio de Janeiro modernizava-se e ganhava ares de capital com calçamento e arborização de ruas, amplas avenidas, jardins públicos e palácios. A rua do Ouvidor enchia-se de novas lojas de chapeleiros, modistas francesas, alfaiates, boticários, floristas, charuteiros, joalheiros e até sorveteiros.

Novas diversões para a “boa sociedade” se disseminavam: cafeterias, concertos, bailes, serões e o teatro – locais para ver e ser visto. Os principais teatros da capital eram o Teatro Constitucional Fluminense, o Teatro Lírico e o mais antigo de todos, o Real Teatro São João (depois chamado Pedro de Alcântara e, atualmente, Teatro João Caetano). A capital recebia companhias teatrais e líricas internacionais. Atores, compositores e escritores de teatro nacionais como João Caetano, Carlos Gomes e Martins Pena, respectivamente.

O fascínio exercido pela corte aparece neste diálogo entre dois personagens da roça:

JOSÉ – Vamos para a corte, que você verá o que é bom.

ANINHA – Mas então o que é que já lá tão bonito?

JOSÉ – Eu te digo. Há três teatros e um deles é maior que o engenho do capitão-mor.

ANINHA – Oh, como é grande!

JOSÉ – Representa-se todas as noites. Pois uma mágica que lá se apresentou…

ANINHA – O que é mágica?

(…)

ANINHA – Que vontade eu tenho de ver todas essas coisas!

JOSÉ – Além disso há outros muitos divertimentos. Na rua do Ouvidor há um Cosmorama, na rua de São Francisco outro e no Largo há uma casa onde se veem muitos bichos, cabritos com duas cabeças, porcos com cinco pernas…

ANINHA – Como é bonita a corte! Lá é que a gente pode se divertir, e não aqui, onde se ouve só os sapos cantarem. Teatros, mágicas, cavalos que dançam, cabeças com dois cabritos… Quanta coisa! Quero ir para a corte!

[PENA, Martins. O Juiz de Paz na roça (1833).

In: DAMASCENO, Darcy. Comédias de Martins Pena. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966. p. 40-1.]

A implementação de um projeto modernizador e urbano deparava-se, contudo, com as tradições coloniais marcadas por uma sociedade rural e escravista. Por volta de 1830, a população das capitais do Império representava somente 8,5% do total sendo que metade desse contingente se concentrava em apenas três capitais: Rio de Janeiro, Recife e Salvador. (SCHWARCZ & STARLING, 2015).

A alta densidade de escravos naquelas cidades era flagrante. Na corte, estima-se que metade da população era formada por negros escravizados. Havia ainda uma multidão de libertos, pobres livres, mendigos e ciganos circulando pelo centro e cercanias da capital imperial. A enorme presença de escravos contradizia a feição civilizada que se pretendia dar ao país, um dos poucos do continente a manter a escravidão. Entre os anos de 1841 e 1850, o destino de 83% do total de africanos transportados para a América era o Brasil.

Real Teatro São João, aquarela de Jean Baptiste Debret,1834.

Aparatos policiais para manter a ordem social

Para manter o controle efetivo e punitivo sobre essa sociedade heterogênea, especialmente da população de escravos, ciganos, mendigos, pobres livres e libertos, ainda no período regencial foi criada a Guarda Nacional (1831).

A Guarda Nacional era uma força paramilitar a ser usada pelo poder central para “manter a obediência às leis, conservar, ou restabelecer a ordem e a tranquilidade pública”. Era composta por homens entre 21 e 60 anos de idade que dispunham de renda suficiente para serem eleitores. Eram dispensados do serviço funcionários públicos, magistrados, deputados, senadores, professores e outros. Sendo assim, o serviço ativo da guarda recaía sobre os mais humildes que eram recrutados e subordinados aos juízes de paz, juízes criminais, presidentes das províncias e ao Ministro da Justiça.

A obrigatoriedade de servir à Guarda Nacional criava embaraços aos convocados, atrapalhando o trabalho de lavradores, artesãos ou comerciantes. Em O Juiz de Paz na roça, o lavrador Manuel João que conta como ajudante somente um escravo, é intimado pelo Juiz de Paz para levar um recruta à cidade. Manuel João reclama muito, mas cumpre sua obrigação sob pena de ser preso.

ESCRIVÃO – Venho da parte do senhor Juiz de Paz intimá-lo para levar um recruta à cidade.

MANUEL JOÃO – Ó homem, não há mais ninguém que sirva para isso?

ESCRIVÃO – Todos se recusam do mesmo modo mas o serviço precisa ser feito.

MANUEL JOÃO – Sim, os pobres é que o pagam.

ESCRIVÃO (zangado) – O senhor juiz manda lhe dizeJ que se não for, irá preso.

(…)

MARIA ROSA – Pobre homem! Ir à cidade somente para levar um preso! Perder assim um dia de trabalho…

ANINHA – Minha mãe, pra que é que mandam a gente presa para a cidade?

MARIA ROSA – Pra serem soldados e irem à guerra.

ANINHA – Coitados!

MARIA ROSA – Maior injustiça! Manuel João está todos os dias vestindo a farda. Ora pra levar presos, ora pra dar nos quilombos…É um nunca acabar.

[PENA, Martins. O Juiz de Paz na roça (1833).

In: DAMASCENO, Darcy. Comédias de Martins Pena. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966. p. 42-3.]

Em 1832, foi criado o Código do Processo Criminal, que trazia uma descrição dos crimes e respectivas penas. Assim, os desordeiros, aqueles que perturbassem a tranquilidade pública, se envolvessem em manifestações político-sociais, se recusassem a trabalhar ou os que desobedecessem a lei seriam enquadrados. O crime de insurreição definido como a reunião “de vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força” tinha como punição a pena de morte ou de galés perpétuas.

Batalhão de fuzileiros da Guarda Nacional.

O Juiz de Paz

Segundo o código do Processo Criminal, o Juiz de Paz (cargo que existia desde 1827) era eleito pelos cidadãos da localidade, não tinha pagamento nem treinamento e não possuía, necessariamente, formação superior. Era, em geral, pessoa pouco instruída e quase sempre subordinada aos interesses dos grandes proprietários que o elegiam.

Suas atribuições judiciais e policiais eram grandes: promoviam conciliações, resolviam dúvidas sobre estradas particulares, pastos, águas usadas na agricultura ou no minério, direitos de caça e pesca, danos causados por escravos e animais particulares etc.

Intervinha com ajuda da polícia em caso de desordem pública, fosse brigas de bêbados e prostitutas até sublevações. Quando havia um crime, o Juiz de Paz tinha que se encarregar de reunir provas. A aplicação dos regulamentos municipais, a prevenção e destruição de quilombos também eram de sua competência. Protegia os bosques públicos e a poda ilegal dos bosques privados, e notificava o presidente da província quando eram descobertos recursos animais, vegetais ou minerais úteis.

Em 1841, a reforma do Código do Processo Criminal reduziu as atribuições do Juiz de Paz que passaram para a autoridade policial nomeada pelo governo central. Mas a reforma não enfraqueceu o poder local. Como lembra Raimundo Faoro, em Os donos do poder: “As autoridades locais não desapareceram, senão que se atrelaram ao poder central, isto é, ao partido que ocupava o ministério. Os capangas dos senhores passaram a ser capangas do império, conduzidos pelos presidentes de províncias e seus agentes”.

Martins Pena e o teatro

Nascido no Rio de Janeiro, Martins Pena destacou-se como comediógrafo sendo considerado o introdutor da chamada comédia de costumes. São peças teatrais ligeiras e repletas de ironias caracterizadas pela representação do cotidiano e dos hábitos de um determinado grupo social. A plateia identifica-se facilmente com os personagens e com as situações vividas por estes. Frases rápidas e incisivas, situações incomuns ou ridículas, e rapidez na sucessão dos eventos mesmo que inverossímil arrancam gargalhadas do público.

As comédias de Martins Pena retratavam a cidade do Rio de Janeiro e a área rural próxima à capital. Seus personagens eram lavradores, fazendeiros, meirinhos, ciganos, moças casadoiras, viúvas, membros da Guarda Nacional, os fazendeiros, malandros, estrangeiros, falsos cultos entre outros. Suas histórias falam de casamentos, heranças, dotes, dívidas e festas da roça e das cidades.

Nem todos, contudo, divertiam-se com as piadas e sátiras e as comédias de Martins Pena estiveram sob ameaça de censura. A figura caricata do juiz em O Juiz de Paz na roça causou desaprovação e a peça só foi liberada pelo voto final do presidente do Conservatório Dramático Brasileiro. Outras peças, como Judas em Sábado de Aleluia, O Noviço e O terrível capitão do mato também tiveram problemas com os membros daquela instituição.

“O noviço”, de Martins Pena, pelo grupo Ato, Teatro Popular do Sesi, 2002.

“O Juiz de Paz na roça”

Escrito provavelmente em 1833, O Juiz de Paz na roça, a primeira comédia de Martins Pena, foi representada em 1838 no Teatro de São Pedro de Alcântara pela célebre companhia teatral de João Caetano, o mais famoso ator e diretor teatral da época.

A peça inovava pelo humor e por mostrar situações, cenários e personagens essencialmente brasileiros que usavam uma linguagem informal de todos os dias. Interessante observar que as comédias de Martins Pena omitiam os escravos e as altas camadas dirigentes. O Juiz de Paz na Roça, contudo, é uma exceção ao apresentar um escravo trabalhando na lavoura junto com seu patrão, além de dar destaque à figura corrupta e ambígua do juiz.

Por retratar a vida popular e cotidiana e mostrar situações que fugiam ao controle (a precária administração da justiça, a ausência ou desmandos da polícia, o recrutamento forçado, as mazelas sociais etc) a obra de Martins Pena é uma valiosa fonte histórica da realidade social na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX.

O Juiz de Paz na roça, de Martins Pena

“O Juiz de Paz na roça”, de Martins Pena, pelo grupo Trapos e Farrapos, Teatro Municipal de Pomerode, SC, 2012.

Trailer de divulgação de “O Juiz de Paz na roça”

Grupo Fios da Roca, direção de Paulo Vieira, Casa de Cultura Laura Alvim, RJ, 2011

Para acessar o texto da peça e sugestões de atividades, inscreva-se abaixo.

Trabalhando o texto em classe

A peça passa-se na roça e aborda com humor o jeito particular de ser dessa população do Brasil do século XIX. É importante destacar que o Brasil era, então, um país rural, com mais de 90% da população vivendo na área rural.

As cenas exploram uma série de situações que mostram a corrupção e o abuso das autoridades (o juiz de paz) em meio a simplicidade e inocência daquelas pessoas. Faz menção ao recrutamento forçado (do personagem José), à repressão aos quilombos, ao contrabando de escravos, a troca de favores entre autoridades e eleitores, e outras mazelas sociais.

O texto para download traz um trecho da peça que permite ser encenado durante o tempo de aula.

Fonte

  • ALMENDRA, Renata Silva. Entre apartes e quiproquós: a malandragem no Império de Martins Pena (Rio de Janeiro 1833-1847). Dissertação de Mestrado. Programa de pós-graduação em História. Brasília: UNB, 2006.
  • DAMASCENO, Darcy. Comédias de Martins Pena. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966.
  • LOPES, Hálisson Rodrigo. O Juiz de Paz no Brasil Imperial. Portal Âmbito Jurídico.
  • MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
  • MAGALHÃES JR., Raimundo. Martins Pena e sua época. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1972.
  • PENA, Martins. O Juiz de Paz na roça. Peça completa.
  • PRADO, Décio de Almeida. Teatro de Anchieta e Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz & STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • VENTURA, Dayse. “Ordem e unidade no império de Martins Pena”. In: ROLLEMBERG, Denise (org.). Que História é essa? Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
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