Noite de verão em Roma, 18 de julho de 64 d.C.: um incêndio devastador irrompeu na área mais povoada da cidade onde havia prédios de 3 a 5 andares feitos de madeira. Os ventos espalharam as chamas rapidamente e o fogo se alastrou por outros bairros.
Por três dias, o incêndio ficou fora de controle e levariam outros três para ser vencido. Quase toda Roma foi destruída. Dos 14 distritos, apenas 4 não sofreram danos. O restante, cerca de 70% da cidade, foi devastado pelas chamas.
- BNCC: 6º ano. Habilidade: EF06HI09, EF06HI12, EF06HI13
A memória da tragédia
Logo após o incêndio começaram a circular versões da tragédia. As pessoas buscaram um responsável, afinal não pode haver “acaso” na capital imperial protegida pelos deuses. Nero foi o principal suspeito e os rumores envolvendo seu nome ainda persistem no imaginário coletivo:
- Nero teria enviado homens agindo como bêbados para iniciar o fogo.
- Nero tinha intenções de destruir a cidade para construir uma nova Roma à sua imagem.
- Nero mandou abertamente homens incendiarem a cidade e assistiu tudo na Torre de Mecenas, no monte Esquilino cantando e tocando a lira.
- Nero enviou homens para incendiar a cidade e assistiu tudo em um terraço no Monte Palatino tocando sua lira.
- O incêndio foi um acidente que ocorreu enquanto Nero estava em outra cidade, em em Antium.
- Nero escondeu a sua culpa acusando os cristãos de terem sido os responsáveis o que deu início à perseguição ao cristianismo
A imagem de um imperador tocando lira diante de uma cidade incendida tornou-se símbolo da insanidade e crueldade do governante e da degradação do Império Romano. Na Idade Média, difundiu-se a lenda de Nero, o Anticristo, ideia ainda presente em alguns textos de viés religioso. Autores cristãos antigos e medievais reforçaram a má reputação de Nero lembrado, também, como o primeiro perseguidor dos cristãos.
O clássico romance Quo Vadis (1895), do escritor polaco Henryk Sienkiewicz, não só culpou Nero pelo Grande Incêndio, como o caracterizou como tirano demente, inepto, sanguinário e pervertido. A versão épica de Hollywood, filme de 1951 dirigido por Mervyn LeRoy, reproduziu a caracterização de um Nero enlouquecido na memorável interpretação de Peter Ustinov.
Quo Vadis (1951), cena do incêndio de Roma
As fontes mais antigas conhecidas
Afinal, o que é historicamente comprovado sobre o Grande Incêndio de Roma? Os relatos históricos vêm de três fontes secundárias:
- Tácito (c.56-120), em Anais.
- Suetônio (c.69-122), em Vida de Nero.
- Díon Cássio (c.155-c.235), em História Romana.
É de Suetônio, a versão de que Nero teria ordenado, abertamente, que a cidade fosse incendiada e que assistiu a tragédia da Torre de Mecenas, no monte Esquilino, enquanto cantava e tocava lira.
Díon Cássio retoma Suetônio e acrescenta que Nero queria destruir a cidade para construir um complexo palaciano – a célebre Domus Aurea – e, para isso, teria enviado, secretamente, homens que, fingindo-se de bêbados, incendiaram a cidade. Nero, então, teria assistido a tragédia de seu palácio no Palatino, cantando e tocando lira.
Autores cristãos posteriores, como Sulpício Severo (Chronica, século V), reforçaram a culpa de Nero dizendo que o imperador era louco e teria provocado o incêndio buscando inspiração para compor um poema, tal como Homero ao descrever o incêndio de Tróia. Pesava sobre a reputação de Nero o assassinato da mãe, da primeira mulher e do irmão de criação não sendo, portanto, difícil jogar-lhe mais uma culpa, o do incêndio de Roma.
Tácito, considerado a principal fonte, pode ter testemunhado o incêndio (ou relatos sobre ele) quando menino com 8 ou 10 anos de idade. Em Anais, ele narra o incêndio e cita autores como Fabius Rusticus e o cônsul Marcus Cluvius Rufus cujas obras não sobreviveram, e o renomado escritor e filósofo Plínio, o Velho, autor de História Natural, para quem Nero foi o responsável pelo incêndio.
Segundo Tácito, o incêndio teria sido um acidente que começou em armazéns junto à região do Circo (onde ocorriam as corridas de bigas) – uma zona atulhada de casas, bodegas, mercados e depósitos. O fogo se alastrou pelas ruas estreitas e tortuosas com prédios de madeira de 4-5 andares, onde moravam famílias pobres. Nessa área não havia grandes edifícios de pedra como templos e basílicas, nem áreas abertas de terra para impedir a conflagração. O clima seco, o forte calor da época (era verão), a força do vento e as construções altamente inflamáveis teriam ajudado o alastramento do fogo.
Investigando as versões
Tácito afirma que Nero não estava em Roma ao começar o incêndio, mas no balneário litorâneo de Âncio (ou Anzio, Antium) a uns 60 km de Roma. Informado do caso, ele voltou para a cidade e tomou medidas para deter o fogo e socorrer os desabrigados. Mandou vir de Óstia e das cidades vizinhas suprimentos e alimentos e ordenou a redução do preço do trigo. Mandou abrir jardins, edifícios públicos (como as termas, as basílicas e o Panteão) para acomodar os refugiados.
Depois de seis dias, com o fogo vencido, começou a limpeza das áreas destruídas. De acordo com Tácito, dos 14 distritos de Roma, três foram completamente devastados – entre eles, o Palatino e o Circo Máximo – e, outros sete, reduzidos a ruínas queimadas.
O incêndio destruiu partes do próprio palácio de Nero, o Domus Transitoria que ele tinha acabado de construir e decorar com tesouros da arte grega, e que se perdeu completamente. Nero mandou recuperar parte da decoração de mármore para seu novo palácio, o Domus Aurea cujos afrescos eram semelhantes ao palácio destruído. Domus Aurea foi erguido a 1 km do local onde o incêndio começou. Tais fatos contrariam a teoria da intencionalidade de Nero no incêndio.
Nero se lançou à tarefa de reconstrução de Roma reerguendo a cidade ainda mais bela e segundo critérios urbanísticos mais racionais e funcionais. Proibiu telhados e casas de madeira, prédios colados uns aos outros e limitou a altura a duas vezes a largura da rua. Encheu a cidade de fontes de água e mandou que fossem vigiadas para evitar desvios a particulares.
A ideia de que teria assistido o incêndio do alto do Palatino, como afirma Díon Cássio, é ainda mais fantasiosa. O Palatino estava em chamas e Nero jamais poderia ficar ali.
Cristãos: incendiários ou bode expiatório?
Nero mandou investigar quem eram os responsáveis pelo crime. O processo é confuso: segundo alguns, para desviar as suspeitas sobre sua pessoa, Nero teria acusado os cristãos. Tácito afirma que estes, antes mesmo de serem presos, haviam confessado o crime.
Por que confessariam sabendo que era severíssima a punição para incêndio intencional?
Naquele tempo, extremistas cristãos apontavam Roma como a “nova Sodoma” a ser destruída pela ira do Senhor. A ideia do apocalipse ganhava eco: o mundo corrupto e licencioso dos romanos – a “grande Babilônia” – seria queimado pelo fogo como previa o Apocalipse 18: 8.
Os fanáticos, em sua maioria gente humilde e inculta, poderiam entender essas revelações como um apelo à ação direta. Poderiam tomar ao pé da letra a própria mensagem alegórica de Jesus: “Vim trazer fogo à terra, e como gostaria que já estivesse acesso” (Lucas 12: 49).
São Paulo mostrou-se preocupado pelo extremismo de alguns cristãos e os exortou a não provocarem inutilmente as autoridades. (Epístola aos Romanos, 13:1-7).
Extremistas cristãos podem ter incendiado Roma ou exultado com a tragédia considerando-a um sinal da justiça divina ou ambas as coisas? “É possível que eles tenham confessado uma culpa que não tinham, isto é, que excitados com o incêndio, considerando-o um sinal do início do fim, tenham-se atribuído a sua autoria, conclui Massimo Fini.
Nero e o julgamento dos cristãos
O processo de investigação, interrogatório e prisões durou mais de dois meses, um tempo muito longo para a pragmática e veloz justiça romana.
Os primeiros réus confessos apontaram outros. Aqueles que eram escravos foram torturados, como era prática da época. Ao todo foram condenadas de 200 a 300 pessoas, um número significativo para uma comunidade cristã de cerca de 3 mil membros em Roma. Três penas foram aplicadas aos incendiários: a maior parte foi queimada viva depois de ter as vestes embebidas em material inflamável, outros foram crucificados (estrangeiros e escravos) e outros lançados para serem devorados por cães selvagens.
Não foi, contudo, uma perseguição oficial aos cristãos, mas a condenação de incendiários criminosos. Os demais cristãos de Roma e de fora da capital foram deixados em paz. Até mesmo Paulo que, em 64, encontrava-se em Roma e era bem conhecido das autoridades como líder cristão, sequer foi investigado. Por essa época, a fé cristã não era um delito em si. Isso desmonta a falsa teoria de que Nero teria sido o primeiro perseguidor dos cristãos.
Em matéria religiosa, Nero foi muito tolerante, dentro da melhor tradição romana. Já plebe de Roma – que não tinha clara a diferença entre judeus e cristãos – via com maus olhos os judeus e, com eles, os cristãos. Equivocava-se sobre o significado da eucaristia, acreditando que fosse um ritual antropofágico e difundiam a ideia de que os cristãos cometiam infanticídio, orgias rituais e incesto.
Nero nunca se indispôs com os judeus. Sob o seu governo, um judeu convertido, Tibério Júlio Alessandro, chegou ao ápice da carreira imperial como prefeito do Egito, a mais rica e importante das províncias. Em relação aos cristãos, lembre o episódio de Paulo que, envolvido em um tumulto em Jerusalém com os judeus, “apelou à César” e foi levado para Roma, Ele não teria apelado a Nero se este tivesse fama de tirano, arbitrário e feroz. Paulo Viveu por dois anos viveu em Roma, aguardando seu julgamento, em absoluta liberdade inclusive para pregar sua fé.
Nero condenou os cristãos por um crime de direito comum e não por sua fé. O processo se circunscreveu à capital. Fora de Roma e nas províncias, os cristãos não foram incomodados. As perseguições aos cristãos teriam início muitos anos depois, com Domiciano (81-90), em consequência do imperador assumir um caráter divino e de impor a seus súditos que o adorassem como deus, o que os cristãos não podiam aceitar.
Fonte
- TACITO. Annales. L’incendio di Roma e la testimonianza sui cristiani.
- SUETÔNIO. A vida dos doze Césares. São Paulo: Martin Claret, 2004.
- FINI, Massimo. Nero, o imperador maldito. São Paulo: Scritta, 1993.
- WARMINGTON, Brian H. Nero, reality and legend. Norton: 1969
- LEVI, Mario Attilio. Nerone e i suoi tempi. Rizzoli: 2001
- JOLY, Fábio Duarte. Suetônio e a tradição historiográfica senatorial: uma leitura da “Vida de Nero”. Revista História, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 111-127, 2005.
- VANDENBERG, Philipp. Nero imperador e deus, artista e bufão. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.