A expressão “Escola Sem Partido” carrega, à primeira vista, uma conotação ardilosamente interessante: apresenta-se como uma escola não partidária, neutra, sem ideologias ou vínculos políticos. De fato, o artigo II do projeto de lei do Escola Sem Partido define que a “educação atenderá aos seguintes princípios: neutralidade política, ideológica e religiosa do estado”. Defende os valores de ordem familiar e condena com veemência ideias que conflitam com “convicções morais”. Um belo discurso que interessa a quem?
Vale lembrar que o projeto Escola Sem Partido nasceu no bojo de um processo de democratização da educação básica cujo acesso para a população de 6 a 14 anos só se universalizou no início da década de 1990. Se, em 1950, apenas 36% dessa população estava na escola, em 1990 esse índice havia atingindo 88%, chegando a 91% em 2010 (IBGE 2011). A porcentagem de analfabetos com mais de 15 anos de idade caiu de 50% (1950), para 8,7% em 2012. Além disso, o tempo de escolarização obrigatória duplicou, passando de quatro anos (Lei 4024/1961) para nove anos (Lei 11.274/2006).
Assim, graças à atuação positiva do Estado que fornece educação pública e gratuita, milhões de crianças tiveram acesso à educação formal nas últimas décadas. Temos hoje adultos jovens que são os primeiros em suas famílias a terem concluído o Ensino Médio e até mesmo a faculdade. Apesar de todas as deficiências que nossa educação padece, ainda assim, frequentar os bancos escolares por nove anos ou mais transformaram esses jovens e lhes deram outro horizonte de vida. Eles já não se parecem com seus familiares adultos semianalfabetos.
A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil o que significa que, finalmente, começa a surgir no país uma população escolarizada, consciente de seus direitos e deveres como cidadãos. Essa população não se submeterá tão facilmente à manipulação de pregadores, de chefes falsamente cordiais, à desigualdades, injustiças, desmandos, discriminações e moralismos excludentes. Talvez esteja aí a resistência daqueles que vociferam contra uma educação para a cidadania que acusam de doutrinadora e, contra ela, erguem a bandeira da Escola Sem Partido.
O movimento Escola Sem Partido vem ganhando adesão o que torna imperiosa a análise mais cuidadosa de suas propostas à luz da Constituição Federal e dos princípios do Estado laico e republicano. É o que se segue.
Origens do Programa Escola Sem Partido
O movimento Escola Sem Partido foi fundado em 2004 pelo procurador de Justiça de São Paulo, Miguel Nagib. Durante anos, suas propostas não encontraram eco até que, em 2014, um encontro com a família Bolsonaro mudou essa realidade. Naquele ano, o deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC/RJ), pediu para que Miguel escrevesse um anteprojeto de lei. O texto foi, então, apresentado à Assembleia Estadual do Rio de Janeiro (Alerj) como Projeto de Lei 2974/2014. O líder do movimento fez uma versão municipal que foi apresentada pelo outro irmão da família, Carlos Bolsonaro, na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
Atualmente, tramitam, em âmbito nacional, diversos projetos semelhantes na Câmara dos Deputados que, em síntese, propõem o que se segue abaixo. O detalhamento de cada projeto está disponibilizado na Internet.
Com exceção do PL 6005/2016, todos os demais projetos de lei estão em acordo com o programa Escola Sem Partido. Como os projetos do Escola Sem Partido assemelham-se entre si, analisaremos todos em conjunto.
1. Uma escola sem liberdade de ensinar
Todos os projetos de lei do Escola Sem Partido subtraíram intencionalmente a norma constitucional disposta no art. 205, II da Constituição Federal, que fala da liberdade de ensinar. Eles ressaltam que os valores de ordem familiar têm precedência sobre a educação escolar – o que ameaça o caráter educativo da escola pois, segundo o Escola Sem Partido, que quem educa é a família.
A proposta é inconstitucional, uma vez que nossa Constituição, determina no art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Os pais devem acompanhar a educação escolar de seus filhos, mas isso não quer dizer que é dada à família o direito de interferir diretamente nos conteúdos dados em sala de aula e, especialmente, em exigir que a escola cumpra os conceitos morais da família.
Outorgar direito individual a cada pai de exigir educação moral na escola pode resultar em mais complicações no âmbito escolar, ante as múltiplas visões particulares de moralidade. Não se pode permitir que crenças populares, senso comum, dogmas religiosos e emoções político-partidárias interfiram, limitem ou pautem o debate plural a ser aflorado em sala de aula.
Portanto, famílias, Estado e sociedade devem colaborar na educação, pautada pelos valores republicanos. As bases da educação escolar e os avanços acumulados nos últimos anos, tais como pluralidade cultural, ética e cidadania no currículo, seriam desconstruídas com a aprovação desses projetos.
2. Fim da liberdade de expressão
Ao tentar pautar o professor com diversas regras obrigatórias, proibindo-o de veicular ideias que “possam estar em conflito com as convicções morais” ou que “possam induzir a um determinado pensamento”, as propostas abrem caminho à arbitrariedade, afinal quem vai determinar os limites entre ensinar-informar-induzir-conflitar-educar?
Os projetos do Escola Sem Partido criam um cenário de insegurança para os professores agredindo, de forma grave, os direitos fundamentais do cidadão.
O Art. 206, II, da Constituição Federal, garante, dentro do sistema educacional de ensino, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, razão pela qual tais interferências pautadas pelos projetos do Escola Sem Partido constituem afronta grave aos valores mais básicos da Constituição Federal.
Curiosamente, os mesmos setores que querem criar uma censura às escolas e aos professores são defensores da liberdade de expressão das grandes mídias, alguns donos de impérios midiáticos.
3. Quem legisla sobre educação nacional
A competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional é privativa da União (Art. 22, XXIV) cabendo aos Estados e Municípios expedirem normas suplementares para atender às peculiaridades locais. Portanto, as leis dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não podem contrariar disposições da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), uma vez que esta é uma norma geral expedida pela União.
As questões que envolvem o programa Escola Sem Partido não dizem respeito às particularidades de Estados, Distrito Federal e Municípios mas sim envolvem uma temática a ser discutida em âmbito nacional.
E ainda, a LDB atribui às escolas a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica (Art. 12, Lei 9.394/96). Portanto, Estados e Municípios, pais de alunos, autoridades religiosas ou qualquer outro agente externo não pode interferir na autonomia dos estabelecimentos de ensino na elaboração de sua proposta pedagógica nem estabelecer quaisquer limitações ou pautas.
4. Ameaça a autonomia das Universidades e de outras educações
Os projetos do Escola Sem Partido não deixam claro a qual etapa do ensino eles devem ser aplicados. Com isso, permitem englobar até as Universidades!
Outra inconstitucionalidade, uma vez que artigo 207, da Constituição Federal, dispõe que as Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.
A autonomia didática-científica diz respeito à forma de transmissão do conhecimento, que permite às Universidades a capacidade de organizar o ensino, os métodos de pesquisa e as atividades de extensão.
Além disso, sem especificar a que ensino se refere, o movimento Escola Sem Partido deixa em aberto (e, portanto, fragilizada) outras modalidades de educação como a de jovens e adultos, a educação indígena, a educação do campo etc.
5. A ilusória neutralidade
Os projetos do Escola Sem Partido defendem o princípio de “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”.
Determinar por lei a neutralidade na política e ideologia chega a ser pueril de tão absurda. É acreditar que o Estado é Deus e os seres humanos são anjos que vivem sem conflitos, interesses e contradições. É impor por lei uma sociedade de idiótes, como os antigos gregos chamavam quem não se metia em política – o idiota, pessoa isolada, sem nada para oferecer às demais, fechada em seus próprios valores e pensamentos e, afinal de contas, manipulada por todos.
A neutralidade absoluta não existe. O professor assim como a família e a sociedade em geral tem sua própria visão de mundo e é no diálogo entre eles que o aluno cria referências e faz escolhas que, por sua vez, nunca serão neutras.
A neutralidade é um argumento falacioso que coloca os professores em insegurança ante as diversas interpretações e falhas humanas de terceiros, que terão direito de exigir punições em caso de suposta ausência dessa “neutralidade”.
O programa Escola Sem Partido confunde não-alinhamento com neutralidade. O primeiro é a decisão de não se posicionar a favor ou contra; o segundo é uma quimera. O primeiro admite a coexistência de sistemas, princípios ou teorias diferentes e não elimina possibilidades de escolha; o segundo, naturaliza os conflitos, aplaina as contradições, impõe a indiferença e a insensibilidade. Nem da justiça se espera neutralidade! Espera-se, sim, imparcialidade, isto é, que a Justiça não se comprometa com uma das partes.
6. Obrigar o professor a fornecer uma versão contraditória
Os projetos do Escola Sem Partido defendem que o professor “ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito”.
Nem sempre ou na maioria das vezes, há contrapontos confiáveis e reconhecidos para questões políticas, sócio-culturais e econômicas. Obrigar o professor a sempre apresentar o contraditório é forçá-lo a aceitar qualquer coisa veiculada e divulgada sem qualquer base científica.
Assim, por exemplo, ao discorrer sobre preconceitos e racismo, o professor do programa Escola Sem Partido deverá ler em classe trechos do Mein Kampf de Hitler e as teorias racistas de Arthur Gobineau e, em nome da neutralidade e do contraditório, não poderá tomar partido, nem a favor e nem contra. Ao contrário, ele deverá apresentar essas teorias “com a mesma profundidade e seriedade” (!!!).
O professor de História precisará fazer um malabarismo intelectual para buscar argumentos que defendam “com a mesma profundidade e seriedade” o trabalho escravo, o massacre indígena, o criacionismo, a inferioridade da mulher, as guerras religiosas etc. Como fará o contraponto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão?
7. “Formar cidadãos” não é “fazer a cabeça”
Os defensores do Escola Sem Partido têm verdadeira repulsa por algumas expressões consagradas na educação como “formar cidadãos”, “educar para a cidadania”, “consciência crítica”, “transformar para um mundo melhor”. Consideram que esses princípios escondem uma perigosa doutrinação ideológica que está “fazendo a cabeça dos alunos”.
Em um teste feito pelo Instituto Sensus (2015), 78% dos professores brasileiros afirmaram que a principal missão das escolas é “formar cidadãos” – resposta que os analistas traduziram como prova incontestável de doutrinação ideológica. O que os defensores do Escola Sem Partido esqueceram é que “formar cidadãos” é o objetivo final da educação e para atingi-lo há que se ensinar as matérias e contribuir para a formação profissional. Ora, os professores apenas escolheram a resposta mais abrangente.
Confundir formação/aprendizagem com doutrinação ideológica é retórica maliciosa para atrair incautos. Doutrinação é o processo de incutir ideias, atitudes e estratégias cognitivas sem que o doutrinado tenha chance de questionar ou analisar criticamente a doutrina que está recebendo. Doutrinação ocorre nas casernas, nas escolas militares, nos seminários religiosos e até nas igrejas (sob a forma de catequese).
Bastaria entrar em uma sala de aula para ver o quanto nossa educação está distante de uma doutrinação. Nossos alunos não são um bando de cordeiros silenciosos e apáticos, sem opinião própria. A escola não é a única instituição educadora e formadora no país. Ela participa com a família, as mídias, as ruas e faz a interlocução entre todos esses meios.
E, possivelmente, a escola seja a única instituição formadora sem interesses imediatos – ela não vende produtos, não explora bens e serviços, não impõe regras religiosas, não cria modismos, não seduz com novidades fúteis, não trata com consumidores e clientes… enfim, a escola não “faz a cabeça”, mas libera consciências e dá autonomia.
Conclusão
Nosso país se fez sobre uma profunda desigualdade marcada por séculos de escravidão, racismo e sexismo. Democratizou tardiamente a educação básica. Durante todo o século XIX, quando, nos países desenvolvidos, ampliava-se a cidadania e universalizava-se a educação básica, o Brasil permanecia uma sociedade escravocrata. Fomos o último país ocidental a abolir a escravidão africana.
Foi somente no início deste século que a extensão da cidadania à maioria da população foi tratada como uma questão social. Para essa parcela expressiva, a escola não fazia parte da perspectiva de vida e nem integrava seu horizonte cultural. A universalização do ensino básico trouxe (e trará ainda mais) mudanças de tradições, valores e hábitos sejam para atender às exigências do mercado de trabalho, ou como instrumento de mobilidade social e melhoria da situação de vida, ou de reivindicações de benefícios sociais.
Por muito tempo, as elites conservadoras resistiram a essas mudanças pela dificuldade em aceitarem e promoverem o ideal da escolarização universal como fundamento das políticas públicas. Não é mais possível deter essa onda transformadora.
O programa Escola Sem Partido reflete o medo das mudanças, uma tentativa desesperada (e inconstitucional) de reverter a história. Almeja uma escola neutralizada de discussões e de conflitos. Defende uma escola uniforme, com valores padronizados, classicista, cristianizada, etnocêntrica, hetero, sexista, persecutória, policialesca, idiotizada… enfim, uma escola de pensamento único, de partido único.
SE A FAMÍLIA NÃO TEM O DIREITO SOBRE A EDUCAÇÃO DE SEU FILHO, NÃO SERÁ O ESTADO QUE TERÁ. ACASO VOÇÊ QUE É PAI, IRÁ QUERER O MAL PARA SEU FILHO? A EDUCAÇÃO É DEVER DA FAMÍLIA E NÃO DO ESTADO. O PROFESSOR NÃO É EDUCADOR.
ALIAS, ME RESPONDAM: ONDE ESTÁ A EDUCAÇÃO NAS ESCOLAS ATUALMENTE?
Professora, ia escrever uma resposta a esse texto mas um canal que sigo já postou um vídeo que abarca muito bem meu pensamento sobre o assunto.
Professora Joelza, quando estudei o ensino básico nos ANOS 60/70 ÉRA-MOS OBRIGADOS a rezar um Pai nosso e uma ave-maria, ANTES DE “CANTAR” O HINO NACIONAL BRASILEIRO,…Este Projeto (de Princípios Fascista) tem A TENDÊNCIA de retornar a estes costumes (claro o pais estava sob uma ditadura) mas, ESTA INICIATIVA (para os não idiotas) é direcionar uma educação básica A LONGO PRAZO para um pensamento único, O ENSINO BÁSICO BRASILEIRO PELA DIVERSIDADE EXISTENTE É IMPERIOSO A APLICAÇÃO DO ENSINO CIDADÃO, para os CRÍTICOS a Paulo Freire (taxando de ensino com tendências de esquerda) fica bem claro a INTENÇÃO de controlar para… Leia mais »
Concordo Eduino. O que preocupa, neste caso, é querer impor normas de conduta por lei. Isso é mais pernicioso do que o mal que o Escola Sem Partido diz pretender acabar. Os projetos têm, em si, mais doutrinação do que a doutrinação que eles combatem. Aí está a armadilha. Há um princípio do Direito Romano que diz “o abuso não tolhe o uso”, isto é, a prática danosa de uma lei não pode eliminar ou mudar a lei, deve-se sim, eliminar a prática/o abuso e manter a lei. Os brasileiros tem uma mania perniciosa: querem legislar sobre tudo, colocar regras… Leia mais »
Professora Joelza! Primeiramente, meus parabéns por esse artigo! A senhora é uma profissional das mais capacitadas na área de ensino de História e os seus esforços com este blog beneficiam milhares de professores por esse Brasil afora. Somos todos gratos, pode crer. Gostaria apenas de trazer alguns relatos do meu cotidiano em sala de aula para endossar o seguinte trecho do artigo: “Bastaria entrar em uma sala de aula para ver o quanto nossa educação está distante de uma doutrinação. Nossos alunos não são um bando de cordeiros silenciosos e apáticos, sem opinião própria. A escola não é a única… Leia mais »
Olá Ronaldo, A respeito de seu comentário sobre a oração do Pai Nosso no ambiente escolar e até de uma prática “exorcista” por uma professora, são exemplos que me fazem lembrar os budistas que, séculos antes de Cristo, estabeleceram o princípio da fé universal e ecumênica que abraça todas as crenças e religiões (inclusive a ausência delas) sem hierarquias, sem predominâncias, sem regras, sem limitações. Tudo seria mais simples se, no lugar de uma manifestação exterior de fé (como a oração em voz alta, a leitura da Bíblia, a missa etc.) adotássemos o minuto de silêncio para que cada um… Leia mais »
Seus exemplos confirmam a inexistência de doutrinação dentro da escola mas, revelam uma doutrinação fora dela. Isso é preocupante. Por outro lado, nos exercita a tolerância e o respeito à divergência. Acredite, sua postura está ensinando muito mais do que você imagina. Nossos alunos precisam de modelos de adultos autênticos em suas convicções porém tolerantes e empáticos diante das diferenças. Obrigada por sua valiosa contribuição.
Professora, eu já tinha lido seu artigo ano passado, achei muito elucidativo e compartilhei o link exaustivamente. Em 2017 tivemos uma vitória com a rejeição dos PLs relacionados ao assunto, mas isso voltou à pauta do Congresso e das redes sociais novamente neste fim de ano, infelizmente.
Gostaria de sugerir uma atualização do artigo, falando sobre o que aconteceu do ano passado até agora e, por que esse “novo” projeto continua inaceitável e inviável. Obrigado. Abraços.